26.2.24

Injustiças indocumentadas (301)

Contam-se

as cabeças de gado.

O resto 

(dos corpos)

parece que não importa.

#3075

A régua 

sem o esquadro

também é gente.

25.2.24

Injustiças indocumentadas (300)

Lua 

cheia

de graça.

#3074

O ócio copioso

o óbvio capcioso

o ópio cavernoso.

24.2.24

Injustiças indocumentadas (299)

O que é feito

do tear

do diabo?

#3073

Uns pés que dispensam botas

uns pés a menos

que pesam de mais.

23.2.24

Narizes e matéria nauseabunda

Narizes aduncos

e outros adelgaçados

farejam os interstícios da vulgaridade

assim como porcos usados na apanha de trufas. 

 

A merda gravitacional

não se pondera na hora da soltura. 

 

Diremos:

chiqueiro

 

e não sabemos

mas afocinhamos na balsa fétida

o lugar onde descamisamos linhagens

e ficamos ao nível de uma escatologia sistemática. 

 

Não estranhem

que andem tantas moscas

por aí.

#3072

Antes que seja preciso desconversar

empurram-se os talheres para os dedos

e pergunta-se à lua se vai sair à noite.

22.2.24

Resumo

A boca desenha os frutos

não se importa que sejam 

depois

a medida da podridão:

os frutos também perecem

o que serve de conforto

para o embaraço que é

a finitude aplicada às pessoas. 

 

Os frutos vêm à boca

convocam a madurez 

incógnita para o sangue;

avivamos o magma

com o frescor dos frutos

e não há o que dizer

da boca assim domesticada.

#3071

Eu podia ser

a voz do Inverno

o silêncio dos prantos

o peito sem fronteiras

um poema adiado.

21.2.24

Injustiças indocumentadas (298)

Andar nas bocas do mundo

dá trabalho, e muito,

a muitos dentistas.

#3070

Tramita

o jurisconsulto

no justo travar do locupletamento

repristinando o equânime latejar

convertendo os pirómanos ao sinalagma. 

20.2.24

Partida

O fogo posto

 

tardio

 

convence déspotas

a cuidarem do devir

 

adivinham

que depois do chão

um verosímil precipício

 

inútil o varão que foi 

de torturas muitas. 

 

Fidalgo

 

impenitente

 

desova a possuída tença

da altivez

 

incapaz

de olhar por dentro dos olhos

 

incapaz

 

incapaz. 

 

Já não dorme

(assim sonha)

 

a ceifa sombria em cima dos dias

os dedos trémulos

a voz cegada

só tosse e escarro

 

um espelho

afinal

 

o testamento 

ainda 

em vida. 

 

Os pesadelos:

 

os de outrora

antes do sangue envenenado

pelo medo

eram os sonhos melhores. 

 

Agora

 

a prescrição

prova dos factos

 

a corrosão

 

sobe ao tabuleiro

 

ele

só à espera

de ser peça 

derrubada

 

mera folha 

apanhada

 

no sortilégio

de um vento

 

novo. 

 

O novo


na coroa do velho. 

#3069

Se deus é uma pessoa

tem NIF e CC e passaporte

(e de que país é o passaporte?).

 

[Uma fadista, destas modernas, teve uma epifania a dobrar: deus é uma pessoa]

19.2.24

Dicionário de antónimos

Da matança orgulhosa

não fogem em prantos

os carrascos sem sangue.

Escondem 

as ossadas do saque

e a ferrugem

cobre os rostos dos mercenários

deixa-os com uma pele sem idioma.

Atiram-se à manhã

na extinção do remorso

deles é uma voz sem rugas,

os farsantes que correm 

contra as serenatas sem intenções.

#3068

O presente 

não se conjuga 

no passado.

#3067

Estar na linha de trás 

sossegadamente 

vestido de anónimo.

18.2.24

Corpos entrelaçados

Cobro à noite 

o penhor da carne em combustão. 

Não sei do mais, 

a não ser das tréguas interiores 

que perfumam o tempo. 

Só de ti espero um campo de flores. 

Eu sou o perfume que delas arrancas. 

Só sei da noite a voz fulgurante, 

as tochas ateadas no chão que é pele. 

Até que seja manhã 

e dela a façamos miradouro 

por onde espreitamos 

os corpos nossos entrelaçados.

#3066

As fragas abrem-se ao sol

libertam-se

do seu nevoeiro interior

e falam, 

pródigas como nunca falaram.

17.2.24

#3065

O dedo daninho

dá em dobro

a dádiva do mesquinho.

16.2.24

O sabor do basalto

Os braços contorciam-se

pareciam agitar os fantasmas escondidos

até que fosse vaza a maré

e extintos pudessem ser recolhidos. 

Contorcido já o corpo inteiro

tirando as arestas da bússola

enquanto altiva uma voz advertia

que possivelmente o comboio estava atrasado

um exército de vultos

espreitava pela escotilha 

na diligente atalaia dos distraídos

a carne todavia sem canhão

por omissão das máscaras inválidas. 

Um tremor da mão

aconchegava o suor precipitado

a carne enfim deposta pelo cansaço:

oxalá viessem os procuradores da indigência

ensinar a infecunda aspiração a ser maior

e com eles levassem estas águas puídas

para depois ser noite pura

a porta vedada à insónia

aos lúgubres embaixadores da inocência. 

Pura noite púrpura

a cor odiada

por todavia adiado ódio

se por compensação

a insónia exorcizar.

#3064

[Variação do #3063]

 

Somos nós

que arrastamos decadência.

não é o tempo.

#3063

As cores puídas

à espera da fuligem

um retrato 

da decadência do tempo.

15.2.24

A aguarela sem moldura

Atiras os dados

o calibre das folhas caducas

estilhaçado no frangir das folhas

à mercê da fragilidade cadente

do estanho que tatua a pele.

 

Aos dados dizes segredos

inventas a sobriedade cozinhada

entre páginas consuetudinárias

e palavras coevas que desdizem o futuro.

 

Pela amostra dos sortilégios

não se esperam proezas com arnês:

já se pressente o abismo

antes de chegares ao promontório

e não abrandas o passo.

 

Sabes

que um salto de gigante

não está vedado

e ninguém te ensinou

a proibição dos sonhos.

 

À hora em que escrevo

não sei 

se já te chamam herói

ou 

se te vou visitar ao cemitério.

Injustiças indocumentadas (297)

Nas autoestradas

não há alminhas

é sempre a acelerar

sempre para a frente

é proibido

lembrar os mortos.

#3062

Baixas a arma:

entras no templo

dos heróis.

14.2.24

Injustiças indocumentadas (296)

Já alguém pensou 

no papel dos atores que fazem de mortos 

deitados na maca das autópsias?

#3061

Se muro

não rimasse 

com juro

tudo isto não seria

tão duro.

13.2.24

Injustiças indocumentadas (295)

É carnaval

e mesmo assim

muitos teimam

em levar a mal.

#3060

No cortejo de máscaras

os disfarces disfarçados.