9.8.24

Azoto líquido

Sobre o rio

as asas abertas 

compõem o sonho. 

Os braços amarrados

adiam o cais

no provérbio ínfimo

que adormece a penumbra. 

Sente-se o coaxar

sob a atalaia dos nenúfares:

pela tarde

o hálito do diabo

será uma tortura, 

ninguém aguenta. 

Os lugares são metamorfoses

telas abertas aos olhares mudados

pelo sortilégio do tempo dúplice

(tempo-tempo e tempo-clima). 

Amarramos o olhar

a um mastro à prova de divindades

e compomos

com a diligência dos apóstatas

um hino pária que se esconde do escrutínio.

#3240

Não há lugar 

para onde ir, 

sequestrados 

pelo medo do dia.

8.8.24

Piercing

Levo os diamantes escondidos no sangue

levito a lava que se emancipa nos ossos

e na alvorada 

onde o silêncio acompanha a solidão

rejeito a angústia que ferve no céu plúmbeo

desenhando com dedos frágeis

o contrabando que recusa os lugares-comuns

e as portas sumptuosas por onde entram

usos e costumes com boa casa.

#3239

Desinveste 

o pé-de-meia 

até teres 

os dedos todos  

à mostra.

7.8.24

Coabitação

Escondo do sol

os dedos coloridos 

com o sal diurno. 

 

O céu 

é um imenso espelho

inacabado

o cunho aceso na fala mordaz. 

 

A véspera das lágrimas

inaugura a coragem

as cortinas descidas

sobre os dogmas avulsos. 

 

A pele desnorteada

à mercê do suor apertado

devolve o gasto sem paradeiro. 

 

À noite

o cais demandado

desliga os sentidos

anestesia a idade 

e na hibernação sem intérprete

coabita a carne 

sem cansaço. 

#3238

A ponte dá a mão 

à perna que tem medo 

da outra margem.

6.8.24

Manifesto contra os agelastas

Dissessem dos agelastas 

as piores coisas jamais ouvidas:

não eram de confiar

tão catedráticos de suas certezas

tão impantes 

a suarem uma sobranceria blasé

tão azedamente irritantes

tanto

que até apetecia meter férias na indiferença

para os votar aquela parte

que é afim, 

com costela certificada,

da matéria escatológica. 

Injustiças indocumentadas (415)

Agora que não há canhões

pode-se poupar na carne.

 

[Otimismo disfarçado]

Injustiças indocumentadas (414)

De longe a longe

para não ficar

mais perto.

#3237

Ao contrário 

do que se possa pensar 

dar as horas 

não abraça a generosidade.

5.8.24

Injustiças indocumentadas (413)

Seria mais catastrófico

condenar alguém 

ao diabo a oito.

#3236

Entre o ser e o ter 

um interminável haver.

4.8.24

#3235

As nuvens 

são o acabamento em falta 

para este dia baço 

e interminável.

Injustiças indocumentadas (412)

Há mais pipas

do que massa.

 

[Uma espécie de decadência, à aristocrata]

3.8.24

Injustiças indocumentadas (411)

Mote: “Economia arrefeceu em pleno Verão”

 

A economia não gosta de calor 

– ou aprendeu a ser termostato,

perita na compensação.

Injustiças indocumentadas (410)

A culpa

não vai ficar impune.

À multa

não vai ficar imune.

#3234

A caducidade da coreografia 

entalha a sensatez 

no rosto liofilizado de disfarces.

2.8.24

Tubo de escape

Um escaninho sazonal

emancipa-se da postura municipal

finta o fiscal da obra

e com audácia

aldraba o agente da polícia.

 

Dantes

quando havia polícia montada

era pior do que nas touradas 

– a aritmética dos boçais 

em preparos de matiné sanguínea;

agora

por ser agora

e não agoirar a modernidade

a polícia anda desarmada

e não se faz saber

pelo punho das estatísticas armazenadas

que a desordem tenha subido

para a sela da anarquia.

 

“Manda a verdade”

 

(dizem os apóstolos dela mesma)

 

a rebeldia é o cunho dos inexperientes

e sagra-se

com a sazonalidade consanguínea. 

Injustiças indocumentadas (409)

Fala barato 

o fala-barato 

não pode aspirar 

à volúpia do luxo 

e às dispendiosas palavras 

dos que reclamam o pódio 

da erudição.

#3233

Se é este 

o entontecido escape da memória 

antes sejam convocadas 

as alvíssaras do futuro.

1.8.24

Imperadores do futuro

O roteiro não se faz sem passos em falso

na didascália que dá de beber 

às nossas dúvidas.

Aparentemente

o sol esconde o magma fundente

e nas artérias corre o sangue amotinado

como se estivesse de atalaia

para as batalhas vincendas.

Depois 

há o estrume nas bocas insultuosas

o banal verniz que se abandona de rebate

os poços de morte nas mangas avulsas

um torniquete que aperta os olhos mastins

e as tornas 

que validam o passaporte do futuro.

Não seremos bandeiras à mercê de marés;

não seremos

os bombeiros involuntários 

que escalam montanhas íngremes;

seremos, 

a crer nos ventos dominantes,

ascetas que bebem o vinho novo

sem concessões à letargia

e às danças sem parafuso

que sobem à praça centrípeta.

#3232

Tão vetusto o mundo 

e ainda preso à infância 

de tão inexperiente.

31.7.24

Homem em terra

As premeditações de Ícaro

brandem contra os ventos 

que fustigam cemitérios.

 

Rugem os mastins domados

suplicam pelo verbo pretérito

o véu onde assentava o seu domínio.

 

No mais alto promontório

as divindades seguram o rochedo

vestem-lhe o arnês entesourado.

 

O precipício jura o adiamento

e os braços apuram o beijo do escorpião

no amparo da desonestidade em extinção.

Injustiças indocumentadas (408)

Ora

nem dos fracos 

nem (ó diletante surpresa) 

dos fortes 

ora a História, 

que a História 

não sabe orar.

#3231

Ah! 

benevolentes déspotas 

que dispensais os suseranos

do incómodo do voto.

30.7.24

Injustiças indocumentadas (407)

Paninhos quentes: 

vem mesmo a calhar 

com este calor de ananases.

Injustiças indocumentadas (406)

Jogos olímpicos;

eliminado,

o adjetivo mais frequente.

#3230

Está por emoldurar 

o trovejar das palavras 

quando alguém diz 

“ainda por cima”. 

29.7.24

Rios

Os rios

de uma maneira ou de outra

são todos afluentes do mar.

Assim podem atestar

que as angústias todas

ficam condenadas à lassidão

mal tocam no rosto do mar.

#3229

No avesso do remorso 

o panfleto da certeza.