12.8.24

Injustiças indocumentadas (417)

Pobres,

as saudades, 

que são tantos 

os que as querem matar.

#3243

(A) 

guerra 

(serve-se) 

fria.  

11.8.24

Somos a medula dos nossos sonhos

Somos a medula dos nossos sonhos

hino, bandeira, os corpos em segredo

a redenção do medo

o idioma murmurado em sílabas noctívagas

o espelho que contém o abraço do mundo

arrancamos ao suor honesto 

cordas de violino

um vinho tardio

glaciares que avivam o olhar

um beijo demorado

a maré tempestuosa que disfarça a melancolia

os apeadeiros sem porta da espera

o sangue em ebulição

participando na coreografia do desejo

em palcos inacessíveis.

#3242

Um palco à espera da manhã

enquanto a cortina se levanta 

atiçando os olhos íngremes

no miradouro sobre o devir. 

10.8.24

Injustiças indocumentadas (416)

Ninguém

no seu juízo 

precisa de caçar bruxas.

#3241

Bebo 

a alvorada vagarosa 

no festim do dia completo.

9.8.24

Azoto líquido

Sobre o rio

as asas abertas 

compõem o sonho. 

Os braços amarrados

adiam o cais

no provérbio ínfimo

que adormece a penumbra. 

Sente-se o coaxar

sob a atalaia dos nenúfares:

pela tarde

o hálito do diabo

será uma tortura, 

ninguém aguenta. 

Os lugares são metamorfoses

telas abertas aos olhares mudados

pelo sortilégio do tempo dúplice

(tempo-tempo e tempo-clima). 

Amarramos o olhar

a um mastro à prova de divindades

e compomos

com a diligência dos apóstatas

um hino pária que se esconde do escrutínio.

#3240

Não há lugar 

para onde ir, 

sequestrados 

pelo medo do dia.

8.8.24

Piercing

Levo os diamantes escondidos no sangue

levito a lava que se emancipa nos ossos

e na alvorada 

onde o silêncio acompanha a solidão

rejeito a angústia que ferve no céu plúmbeo

desenhando com dedos frágeis

o contrabando que recusa os lugares-comuns

e as portas sumptuosas por onde entram

usos e costumes com boa casa.

#3239

Desinveste 

o pé-de-meia 

até teres 

os dedos todos  

à mostra.

7.8.24

Coabitação

Escondo do sol

os dedos coloridos 

com o sal diurno. 

 

O céu 

é um imenso espelho

inacabado

o cunho aceso na fala mordaz. 

 

A véspera das lágrimas

inaugura a coragem

as cortinas descidas

sobre os dogmas avulsos. 

 

A pele desnorteada

à mercê do suor apertado

devolve o gasto sem paradeiro. 

 

À noite

o cais demandado

desliga os sentidos

anestesia a idade 

e na hibernação sem intérprete

coabita a carne 

sem cansaço. 

#3238

A ponte dá a mão 

à perna que tem medo 

da outra margem.

6.8.24

Manifesto contra os agelastas

Dissessem dos agelastas 

as piores coisas jamais ouvidas:

não eram de confiar

tão catedráticos de suas certezas

tão impantes 

a suarem uma sobranceria blasé

tão azedamente irritantes

tanto

que até apetecia meter férias na indiferença

para os votar aquela parte

que é afim, 

com costela certificada,

da matéria escatológica. 

Injustiças indocumentadas (415)

Agora que não há canhões

pode-se poupar na carne.

 

[Otimismo disfarçado]

Injustiças indocumentadas (414)

De longe a longe

para não ficar

mais perto.

#3237

Ao contrário 

do que se possa pensar 

dar as horas 

não abraça a generosidade.

5.8.24

Injustiças indocumentadas (413)

Seria mais catastrófico

condenar alguém 

ao diabo a oito.

#3236

Entre o ser e o ter 

um interminável haver.

4.8.24

#3235

As nuvens 

são o acabamento em falta 

para este dia baço 

e interminável.

Injustiças indocumentadas (412)

Há mais pipas

do que massa.

 

[Uma espécie de decadência, à aristocrata]

3.8.24

Injustiças indocumentadas (411)

Mote: “Economia arrefeceu em pleno Verão”

 

A economia não gosta de calor 

– ou aprendeu a ser termostato,

perita na compensação.

Injustiças indocumentadas (410)

A culpa

não vai ficar impune.

À multa

não vai ficar imune.

#3234

A caducidade da coreografia 

entalha a sensatez 

no rosto liofilizado de disfarces.

2.8.24

Tubo de escape

Um escaninho sazonal

emancipa-se da postura municipal

finta o fiscal da obra

e com audácia

aldraba o agente da polícia.

 

Dantes

quando havia polícia montada

era pior do que nas touradas 

– a aritmética dos boçais 

em preparos de matiné sanguínea;

agora

por ser agora

e não agoirar a modernidade

a polícia anda desarmada

e não se faz saber

pelo punho das estatísticas armazenadas

que a desordem tenha subido

para a sela da anarquia.

 

“Manda a verdade”

 

(dizem os apóstolos dela mesma)

 

a rebeldia é o cunho dos inexperientes

e sagra-se

com a sazonalidade consanguínea. 

Injustiças indocumentadas (409)

Fala barato 

o fala-barato 

não pode aspirar 

à volúpia do luxo 

e às dispendiosas palavras 

dos que reclamam o pódio 

da erudição.

#3233

Se é este 

o entontecido escape da memória 

antes sejam convocadas 

as alvíssaras do futuro.

1.8.24

Imperadores do futuro

O roteiro não se faz sem passos em falso

na didascália que dá de beber 

às nossas dúvidas.

Aparentemente

o sol esconde o magma fundente

e nas artérias corre o sangue amotinado

como se estivesse de atalaia

para as batalhas vincendas.

Depois 

há o estrume nas bocas insultuosas

o banal verniz que se abandona de rebate

os poços de morte nas mangas avulsas

um torniquete que aperta os olhos mastins

e as tornas 

que validam o passaporte do futuro.

Não seremos bandeiras à mercê de marés;

não seremos

os bombeiros involuntários 

que escalam montanhas íngremes;

seremos, 

a crer nos ventos dominantes,

ascetas que bebem o vinho novo

sem concessões à letargia

e às danças sem parafuso

que sobem à praça centrípeta.

#3232

Tão vetusto o mundo 

e ainda preso à infância 

de tão inexperiente.

31.7.24

Homem em terra

As premeditações de Ícaro

brandem contra os ventos 

que fustigam cemitérios.

 

Rugem os mastins domados

suplicam pelo verbo pretérito

o véu onde assentava o seu domínio.

 

No mais alto promontório

as divindades seguram o rochedo

vestem-lhe o arnês entesourado.

 

O precipício jura o adiamento

e os braços apuram o beijo do escorpião

no amparo da desonestidade em extinção.

Injustiças indocumentadas (408)

Ora

nem dos fracos 

nem (ó diletante surpresa) 

dos fortes 

ora a História, 

que a História 

não sabe orar.