8.11.24

Mapa

À porta

sem fronteira

à espera 

de ser forasteiro em todos os lugares

esquecido o relógio

nas mãos apenas a nudez inteira

e o riso fermentado na saudação do mundo.

#3314

Atiro os dados 

e recolho da toalha pendida 

a rendição do dia mordaz.

7.11.24

Alfa

No ciciar da voz

escondem-se os versos embotados. 

 

As batas escuras

atravessam o deserto 

sob o sol punitivo

os olhos amarelecidos 

como se estivessem colonizados. 

 

Discorrem as páginas divididas

um escafandro depois do dia vindicado

para às mãos erradas não termos entrega

salvam-nos as mães renascidas. 

 

O óbito do pudor

encena-se na câmara de espelhos

na geografia onde mandam os labirintos

os cantos válidos que se combinam

nas bocas que não cedem ao desânimo. 

 

A lua está talvez povoada:

dizem 

que os sonhos têm lá procuração

e no vivo atilho que aformoseia os rostos

se vê projetada a chama do luar

um lugar sem nome 

que chama pelas árvores. 

 

Do amanhã não se enfeitam os lábios 

nem esperam que seja em bancos gastos

pela ordem do dia 

– como se o dia desse ordens 

e uns capatazes resgatados à indigência

vigiassem as ruas todas

as esquinas todas

o dicionário todo

de A a Z. 

 

À porta

o poema cavalga

as rédeas sobranceiras aos despojos matinais

e as vozes que se existam no gradeamento

expulsam vultos tiranetes

senhoras e juízas da atalaia maior. 

#3313

Gaguejas o intempestivo vagar

e esperas que façam de conta 

os figurões em forma de senador.

6.11.24

Etapa cinco

Belo o apogeu que não cresta

aparafusado ao braço que denta no voraz

a não beligerância que aferroa a árvore cega.

 

Apetite que amanhece 

contra os sofás puídos dos estetas 

a vibrante cegueira disfarçada de venda 

o formulário burocrático que adia o tempo.

 

A colmeia rege o rigor da luz 

não se entediam os lúdicos apostadores do dia

e escutam 

com a proverbial atenção dos distraídos

o que dizem os embaixadores do silêncio.

#3312

Não queremos, 

mas somos,

a vingança sobre a História, 

a tragédia arrematada no futuro.

5.11.24

A porta arrombada

O largo ensejo de parecer estátua

devolve ao aço fundido a vontade anestesiada. 

Por fora dos pesares

onde os verbos da angústia foram destronados

só a névoa estremunhada 

que não atraiçoa as palavras. 

E se os dedos trémulos os versos não curarem

atirem-se os medos ao pelotão de fuzilamento

encardidos pelos vetustos embaixadores 

que falam com a cara do avesso. 

Sortes as várias noites sem ouvir o vento

e no pecúlio dos sonhos

em matéria incandescente

as folhas caídas 

no inventário das imagens colhidas

em vez da metamorfose à força

em vez 

do desamparo a caminho da solidão. 

Arrumadas as intransigências

ao ouvido soam tiranas que colonizam as mãos

ou as mães que partiram sem saírem do lugar

mas da sua ausência sobram cinzas avulsas

espalhadas pelo chão paredes-meias 

com as folhas vertidas pelo Outono. 

Ao demais

sufrago as armas depostas

a fidúcia toda empenhada no sangue 

que ensina as veias

o martelo pneumático 

que semeia o ruído mecânico

em quem 

com as costas viradas do avesso

no absurdo equívoco 

desafia os mastins generosamente armados. 

Injustiças indocumentadas (457)

O homem que dava ideias 

– ah, tanta gratuitidade filantrópica.

 

(Ou apenas 

como banalizar o mercado das ideias 

e elas 

residualmente baratas ficam).  

#3311

Somos ourives da filigrana 

em que tecemos a vida.

4.11.24

Areias movediças

O gólgota pardacento 

vomita as vírgulas fora do lugar

e as divindades em consórcio 

abusam do futuro,

combinam sem desacerto 

a alcatifa do tempo.

Injustiças indocumentadas (456)

No que toca a estados de humor 

a lua cheia é pior 

do que o quarto minguante? 

#3310

Os fogos atiçados 

nos saldos da lucidez 

a língua errante 

na voz dos demónios.

3.11.24

Injustiças indocumentadas (455)

Afinal

são puídos

um punhado, ou muitos, 

dos colarinhos brancos.

#3309

Dentro desta irrisória enseada 

descubro a alquimia hasteada

o porto invisível onde faço morada.

2.11.24

Injustiças indocumentadas (454)

Mandou dizer 

que não se podia retratar 

porque não tinha 

a máquina fotográfica à mão.

Injustiças indocumentadas (453)

O uso do fruto.

Usa o fruto.

Usufruto.

#3308

Garfos mudos irrompem 

com a violência da manhã,

disfarçam rostos amestrados.

1.11.24

Injustiças indocumentadas (452)

Não

tenho nada a dizer.

Não tenho 

nada a dizer.

Não tenho nada 

a dizer.

E isto 

é um poema?

#3307

Dançava no fio da incógnita 

o corpo avessado

tartamudeando as sílabas disformes.

31.10.24

#3306

O braço da rendição 

aviva o estuário

e foge à moldura embainhada.

30.10.24

Vendaval

Deixassem falar o vendaval.

Na sombra do sangue agitado

cabiam cinco noites sem dormir.

 

Oxalá 

os pescadores não tivessem ido ao mar.

 

Agora 

as mulheres 

sentem-se viúvas em desassossego

como se contassem a gramática do medo

como prece contínua.

 

Maldito 

era o vendaval.

Não lhe tivessem dado nome

e ela talvez não se amotinasse.

#3305

A tocha acesa 

incendeia as lágrimas errantes 

no distrate do baraço 

que emproava a forca.

29.10.24

Olhos voluntariamente vendados

Vejo 

na alma do mundo tantas cicatrizes

o espólio que se atira de frente 

contra o muro do passado

e em várias toneladas de conhecimento

chega ao estuário exangue, 

extinto.

 

Vejo

as pessoas sem nome

ou com nomes que não sei dizer

reféns de uma penumbra que os atiça

no vulcão perene que os consome

vejo

como falam um idioma que não percebo

e se entregam no luar que é o abismo

disfarçado.

 

Vejo

no miradouro furtivo

as pernas tremidas à medida que avançam

e dos nomes extintos se aproximam

vejo-os

aluados e impassíveis

como se não pudessem ser mais do que peões

ou carne para canhão

que ainda dá direito a uma comenda póstuma

que os heróis querem-se póstumos.

 

Vejo

com as dioptrias todas no ângulo vivo da visão

os banquetes que omitem a miséria

o ultraje dos comendadores em pose hierárquica

um desmodelo afinado pelas mãos usurpadoras.

 

Vejo o que vejo

e desejo

que não visse nada do que vejo.

#3304

Depois da fala 

arrumaste o pensamento 

no gueto que é sua prisão.

28.10.24

#3303

Sem empalidecer

a luz branca agarra-se 

à pele do dia.

27.10.24

Injustiças indocumentadas (451)

As armas 

são uma falcatrua tão grande 

que uma arma branca 

nunca é branca.

#3302

Uma tocha 

apagada 

o sonho do nevoeiro 

e os bombeiros, 

em greve.

Injustiças indocumentadas (450)

Solteiro

ou

bom rapaz.

26.10.24

#3301

Amuro-te estima, 

para que te não perca as rédeas 

e não seja peão da boçalidade.

25.10.24

Os amantes

 

Explosions in the Sky, “Loved Ones”, in https://www.youtube.com/watch?v=ogFLy72Ox4k

Púnhamos as vozes a falar

nós, os arquitetos das palavras,

até que as destinássemos a poemas válidos.

A matéria incandescente a desejar a manhã

um punhado de violinos em desordem

até que as estrofes 

combinassem o silêncio que era alquimia.

Não soubemos das coisas tardias

era em nós que as levávamos

sem sabermos

só por as querermos combustão

e toda a cumplicidade a nascer de um sonho.

Falávamos pelas vozes sem silêncio

os punhos ascendendo ao miradouro

onde o vento secava as lágrimas.

As lágrimas

tornadas pétalas de ouro

tatuadas na pele sem adiamento.