Os olhos
fingem mentiras;
nunca avivaram tanto
a verdade.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Somos os cachalotes vilões
mastins embuçando a sede de carne viva
adamastores que transitam nas alheias dores
tiranos seráficos voando sobre a indignidade
lobos incansáveis na solidão déspota
condenados por decreto beato
assanhados apócrifos em piscinas vazias
hereges sem herança
párias devolvidos ao nevoeiro circunspecto
ladrões de nomes
ladrões em forma de plágio
mandantes a soldo de um punhado de moedas
consciências sem consciência;
mas
tirando isso
não nos podem acusar de nada.
Sou
de mim
o luar escondido
verbo afeiçoado no lacre do dia
vulcão sem nome
que ajeita a lava furtiva
peito estuário à procura de cais
devastação que promete um arco-íris
miradouro
por onde entram os olhos plenos
poema inteiro dito no vagar das sílabas
cidade que se deita sem horas
navio sem ser mercante
entre as alvíssaras do medo dos navegantes
e a audácia dos inventores de lugares.
Sou
em mim
cada lugar tangido em demandas acesas
as pessoas que foram morada
as estrofes ainda à espera de vez
um inventário a esmo
os lustros contados de memória
o corpo onde o sol nomeia o paradeiro
um idioma à prova de regras
o general das desregras
em cerimónias sem destinatários
desfilando nas salas vazias
cortejando a solidão
ou
desafiando a solidão.
Se o bom entendedor
fica sempre sem saber
metade das palavras
não passa de meio entendedor.
Bebo
pela flor de lótus
o beijo caritativo
que adia o ocaso da pele.
Pelos meus cálculos
ainda é setembro
mesmo que dezembre
no calendário que tatua a parede.
O que bebo da flor de lótus
não sei dizer.
Não importa saber:
a pele adia a decadência
e tenho o dia inteiro para arrancar
uma folha do calendário
só para mim.
Ainda está por decifrar porque
a tradução de motherfucker é
filho da puta
se o primeiro copula
e o segundo resulta da cópula.
O arnês
em vez da vertigem
o pecado
em vez da obediência
o luar
em vez da reverência
o beijo
em vez da indiferença
o gasto
em vez do monástico
a mentira
em vez da imensidão
a tolerância
em vez da modernidade
a percussão
em vez do tédio
a voz
em vez da prisão
a ponte
em vez da razão
a cura
em vez da ordem
o fogo
em vez do oculto
o silêncio
em vez das mãos
o azulejo
em vez das cores
a partida
em vez da audácia
o verbo
em vez da fantasia
o vulcão
em vez do estertor
a janela
em vez da flor
a cortesia
em vez da armadilha
uma vez
em vez das juras.
O fogo bebe-se
na língua boreal do estuário.
Aviva a cal que avisa o tempo
e todas as dádivas indivisíveis
no penhor da fala arrematada.
Às vezes
o relógio tosse
e as ruas estremecem
tão frágeis
como frágeis são
as crias deixadas sós
no ninho à mercê dos predadores.
Há de vir
a voz cordata
a mão que pousa serena
um olhar que se oferece integral
e da lua retiro a moldura da noite
um lampejo de luz
atravessando todas as cordilheiras
como se fossem
corpos frágeis.
Dizia
as tempestades medem
a força da ira sem freio
os rostos plúmbeos
sentados sobre as nuvens
alugando a chuva abastada
que se precipita
democraticamente.
Dizia
não se encolhe o medo
perante os disfarces
deitando em cima da gramática
a sua contingência
desapalavrando os dicionários
até que as pessoas
não saibam dar sentido
ao que ouvem
e deixem de saber
como inteligíveis são
as palavras que das suas bocas ecoam.
As tempestades salivam
uma amostra de caos
a imagem organizada
de um lugar de Babel.
Mar da palha:
a moldura
para os frequentes fala-barato;
eufemismo dos gongóricos.
Não uses a volumetria da inércia
para sacerdotisar os desterrados
os que por voluntário bocejo
se retiraram das regalias da pertença
e ficaram à mercê
dos mastins habituais.
Não conspires
que ainda te apanham as meças
como se houvesse uma Meca diferente
e os mais diligentes subissem com o arpão
para desfazerem as tiranias
que nunca adormecem.
E todos
depois de desarrumados por sonhos escanções
seriam páginas em branco
baldios sem ordem para arrematar
o pensamento deslumbrante
átomos de poesia à prova de coletâneas
no insensato rumor que morde os ouvidos
e dispara a discordância.
Não são tuas
as lágrimas perecidas no labirinto
e tuas não são as palavras magoadas
colhidas no úbere da solidão.
No apeadeiro
combinas as formas nítidas da lua
com as estrofes sem métrica
e sabes
que de ti não esperam feitos
pois tua
é a arte da desfeita.
O degelo que marca a ferro
a cortina derruída atrás do sol
e um punhado de gente
sóbria
caminha no fino fio do dia haurido.
São os profetas sem causa
sócios correspondentes de nada
um estatuto intumescido na fibra meã
contando por suas
as efémeras raízes dos outros.
Lá fora
está tudo pronto para invernar.
Esperamos pelo pleito
os mantimentos reunidos
para o exílio no labirinto do destempo.
A paisagem
sob a tutela da penumbra
deita a noite larga sobre a testa impaciente.
Quando chegar o Verão
vamos sentir a falta
do invernadeiro.