15.12.24

#3351

Os olhos 

fingem mentiras; 

nunca avivaram tanto 

a verdade.

14.12.24

#3350

Somos 

a carne exposta 

ao gume dilacerante

dos dias contínuos.

13.12.24

Injustiças indocumentadas (471)

Arma da escolha

ou

a escolha como arma? 

Injustiças indocumentadas (470)

Grassa a graça 

a graça graçola 

que tanto nos 

assola.

#3349

Não é gente a falar 

são martelos pneumáticos 

numa tortura gongórica.

12.12.24

Campeonato do mundo

Somos os cachalotes vilões

mastins embuçando a sede de carne viva

adamastores que transitam nas alheias dores

tiranos seráficos voando sobre a indignidade

lobos incansáveis na solidão déspota

condenados por decreto beato

assanhados apócrifos em piscinas vazias

hereges sem herança

párias devolvidos ao nevoeiro circunspecto

ladrões de nomes

ladrões em forma de plágio

mandantes a soldo de um punhado de moedas

consciências sem consciência;

mas

tirando isso

não nos podem acusar de nada.

#3348

Calço o dia 

com a coragem dos audazes, 

o segredo sem máscara 

a gramática do desmedo.

11.12.24

Bilhete de identidade

Sou 

de mim 

o luar escondido

verbo afeiçoado no lacre do dia

vulcão sem nome 

que ajeita a lava furtiva

peito estuário à procura de cais

devastação que promete um arco-íris

miradouro 

por onde entram os olhos plenos

poema inteiro dito no vagar das sílabas

cidade que se deita sem horas

navio sem ser mercante

entre as alvíssaras do medo dos navegantes

e a audácia dos inventores de lugares.

 

Sou 

em mim

cada lugar tangido em demandas acesas

as pessoas que foram morada

as estrofes ainda à espera de vez

um inventário a esmo

os lustros contados de memória

o corpo onde o sol nomeia o paradeiro

um idioma à prova de regras

o general das desregras

em cerimónias sem destinatários

desfilando nas salas vazias

cortejando a solidão

ou

desafiando a solidão.

Injustiças indocumentadas (469)

Se o bom entendedor 

fica sempre sem saber 

metade das palavras 

não passa de meio entendedor. 

Injustiças indocumentadas (468)

Ter o coração na boca

(deve dar) 

muito mau gosto. 

#3347

Poder acender a noite 

as mãos devolvidas ao rosto dormente

e um sonho

amanhecendo a destempo.

10.12.24

Flor de lótus

Bebo

pela flor de lótus

o beijo caritativo

que adia o ocaso da pele.

 

Pelos meus cálculos

ainda é setembro

mesmo que dezembre 

no calendário que tatua a parede.

 

O que bebo da flor de lótus

não sei dizer.

 

Não importa saber:

a pele adia a decadência

e tenho o dia inteiro para arrancar 

uma folha do calendário

só para mim.

#3346

O sabor delido 

contrafação ao alto 

no palco 

onde se afeiçoam as farsas.

9.12.24

Semibreve

Vejo

pelos olhos da aurora

o respirar do dia pródigo

um homónimo da luz quente

que se abraça ao corpo preparado.

#3345

Os braços que abraçam 

não são os mesmos 

que lutam.

8.12.24

Não confies nos tradutores

Ainda está por decifrar porque 

a tradução de motherfucker é

filho da puta 

se o primeiro copula 

e o segundo resulta da cópula.

#3344

Mente e mente 

a mente 

que passa rente.

7.12.24

#3343

De um vário metido no singular, 

o plural maior que reveste a pele.

6.12.24

Angariação

O arnês 

em vez da vertigem

 

o pecado

em vez da obediência

 

o luar

em vez da reverência

 

o beijo

em vez da indiferença

 

o gasto

em vez do monástico

 

a mentira

em vez da imensidão

 

a tolerância

em vez da modernidade

 

a percussão

em vez do tédio

 

a voz

em vez da prisão

 

a ponte

em vez da razão

 

a cura

em vez da ordem

 

o fogo

em vez do oculto

 

o silêncio

em vez das mãos

 

o azulejo

em vez das cores

 

a partida

em vez da audácia

 

o verbo

em vez da fantasia

 

o vulcão

em vez do estertor

 

a janela

em vez da flor

 

a cortesia

em vez da armadilha

 

uma vez

em vez das juras.

 

#3342

Um litro de cortesia por dia 

não faz mal nem arrepia.

5.12.24

Frágil

O fogo bebe-se 

na língua boreal do estuário.

Aviva a cal que avisa o tempo

e todas as dádivas indivisíveis

no penhor da fala arrematada.

Às vezes

o relógio tosse

e as ruas estremecem

tão frágeis

como frágeis são 

as crias deixadas sós

no ninho à mercê dos predadores.

Há de vir 

a voz cordata

a mão que pousa serena

um olhar que se oferece integral

e da lua retiro a moldura da noite

um lampejo de luz

atravessando todas as cordilheiras

como se fossem 

corpos frágeis.

Injustiças indocumentadas (467)

Fora de lei, 

faro de lei.

#3341

Às ondas encolerizadas

fica o mar a dever 

a genealogia.

4.12.24

Tempestade sem nome

Dizia

as tempestades medem 

a força da ira sem freio

os rostos plúmbeos 

sentados sobre as nuvens

alugando a chuva abastada 

que se precipita 

democraticamente. 

Dizia

não se encolhe o medo 

perante os disfarces

deitando em cima da gramática 

a sua contingência

desapalavrando os dicionários

até que as pessoas 

não saibam dar sentido

ao que ouvem

e deixem de saber 

como inteligíveis são 

as palavras que das suas bocas ecoam. 

As tempestades salivam

uma amostra de caos

a imagem organizada 

de um lugar de Babel.

Injustiças indocumentadas (466)

Com os fala-barato

não há inflação que valha.

Injustiças indocumentadas (465)

Mar da palha: 

a moldura 

para os frequentes fala-barato;

eufemismo dos gongóricos.

#3340

Dou-te o escudo 

para à penumbra te remeteres 

em refúgio do mundo tonitruante.

3.12.24

Longitude e latitude (fundação)

Não uses a volumetria da inércia

para sacerdotisar os desterrados

os que por voluntário bocejo

se retiraram das regalias da pertença

e ficaram à mercê 

dos mastins habituais. 

 

Não conspires

que ainda te apanham as meças 

como se houvesse uma Meca diferente

e os mais diligentes subissem com o arpão 

para desfazerem as tiranias 

que nunca adormecem. 

 

E todos 

depois de desarrumados por sonhos escanções

seriam páginas em branco

baldios sem ordem para arrematar

o pensamento deslumbrante

átomos de poesia à prova de coletâneas 

no insensato rumor que morde os ouvidos

e dispara a discordância.

 

Não são tuas 

as lágrimas perecidas no labirinto

e tuas não são as palavras magoadas

colhidas no úbere da solidão. 

 

No apeadeiro

combinas as formas nítidas da lua

com as estrofes sem métrica 

e sabes

que de ti não esperam feitos

pois tua 

é a arte da desfeita.

#3339

A lua nova

é o seu rosto interino, 

à espera de vaga.

2.12.24

Chamamento (Inverno)

O degelo que marca a ferro

a cortina derruída atrás do sol

e um punhado de gente

sóbria

caminha no fino fio do dia haurido.

 

São os profetas sem causa

sócios correspondentes de nada

um estatuto intumescido na fibra meã

contando por suas 

as efémeras raízes dos outros.

 

Lá fora

está tudo pronto para invernar.

 

Esperamos pelo pleito

os mantimentos reunidos

para o exílio no labirinto do destempo.

 

A paisagem

sob a tutela da penumbra

deita a noite larga sobre a testa impaciente.

 

Quando chegar o Verão

vamos sentir a falta 

do invernadeiro.