Pedes sol
dou-te estrofes.
Pedes verbos
dou-te a planície.
Pedes hoje
dou-te árvores.
Pedes sede
dou-te lugares.
Pedes mar
dou-te o meu corpo.
Pedes luar
dou-te páginas.
Pedes um panteão
dou-te os nós
que desatámos.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Pedes sol
dou-te estrofes.
Pedes verbos
dou-te a planície.
Pedes hoje
dou-te árvores.
Pedes sede
dou-te lugares.
Pedes mar
dou-te o meu corpo.
Pedes luar
dou-te páginas.
Pedes um panteão
dou-te os nós
que desatámos.
Não se compram
os pseudónimos vilões.
Maldita estratosfera
que conspira com o vinho
e nenhum dos pseudónimos escapa.
Não se perdoam
os piratas sem bandeira.
Oxalá houvesse mar
e um sextante profissional
rodasse as marés a preceito.
[Crónicas do vírus, DXXXIII]
Na vizinhança do pesadelo
gastando trunfos
até ficar gasta a manga.
Do tumulto
em forma de lápis
sobra uma montra,
o edificado de palavras
que se sublevam
no tirocínio dos cientistas.
Não se contêm,
as vírgulas e os adjetivos,
no mote da sobre-palavrosa lápide
onde costumam ter poiso
os grandes eruditos.
[Instrução de leitura:
prolongar o som da primeira sílaba
na palavra “grandes”.]
Repito-me.
Não tenho mais nada
para dizer.
O ferro solto
espera pelo selo abraseado
enquanto a fogueira se excita
e o amordaçado ferve de medo
(disfarçado de brio).
Não se estilhaçam
os verbos exauridos:
os carrosséis amadores
não se agigantam
no avesso das dores
e as palavras repetidas
podem não ser matéria gasta.
Repito-me.
Talvez
por não ter nada mais
para dizer;
ou talvez
porque essas palavras
resumem o medo do amordaçado
antes de ser marcado
com o brasão dos estultos.
Repito-me:
o brasão lacrado na pele
é a pior das tatuagens perenes.
[Crónicas do vírus, DXXXI]
O hálito descarnado transpira
na caverna onde a peste
gravou a devastação.
[Crónicas do vírus, DXXX]
Uma espada
perpendicular,
sem saber se abate
sobre as inocentes cabeças.
Ao canto da mesa
escondem-se vultos
disfarçados de anjos,
imberbes.
Falam.
Sobre eles
adejam caixas de diálogo
com as legendas do que dizem.
Nota-se a profusão de onomatopeias.
Ninguém apurou
se os querubins falavam
por interposta metáfora
ou se eram literais
– termos em que
seriam disfarces de anjos
ou os anjos neófitos
ganharam autorização
(superior)
para o vernáculo.
Falta o apuramento dos factos
sem o qual
o sono não deixa de produzir efeitos
e os demais
não são destinados ao desamparo de causa.
[Crónicas do vírus, DXXIX]
Exortação:
não percamos de vista
o juízo
(na forma do siso, que nem sempre há).
Como se adolescentes
fôssemos todos.
[Crónicas do vírus, DXXVIII]
(Variante do #1955)
Somos contramestres
da originalidade
quando menos dela
precisamos.
Estou zangado com as palavras
e atiro a matar
contra as claras que se acastelam
no hipotálamo da cisão.
Não sei se as rasuro,
às palavras dissidentes,
pelo topete de se agigantarem contra mim
e quererem colonizar o meu sangue.
É desigual
o terçar de armas:
as palavras nem sabem
que com elas me zango
e não darão devida conta
do meu rasurar impenitente.
Mas essas palavras insubmissas
que torpedeiam o meu apenas estar
(não poderia dizer que é bem-estar)
colhem o lilás das bandeiras
e enfeitam as janelas com cadáveres de flores
povoando os lugares
com pútrida
poluição.
Não viro a cara ao terçar de armas
com as palavras com que me zanguei,
por mais que elas esbarrem
fragorosamente
no conceito do meu rosto
que parece
a carne para canhão
(como é na linguagem castrense).
[Crónicas do vírus, DXXVII]
Nos outros
um passo atrás
para dois à frente
e nós
um passo à frente
para dois atrás?
As recordações do futuro
– dizias,
mastigando os despojos de um dia
que parecia o disfarce do tempo.
A boca murmurava os hábitos
e as páginas precisavam de aval
para serem levadas a sério.
Não tenho um oráculo
– dizia,
olhando para a escotilha
que vigiava o mar errático.
Os gatos apreciam a noite
e as sentinelas não se apagam
no crepúsculo kamikaze.
Acredito no futuro flamífero
– dizias,
enquanto atiravas fósforos
contra as montanhas que se levantavam
perto do posto de vigia
mesmo na embocadura do nevoeiro.
Não sei dos fogos vindouros
– dizia,
desde o palácio dos frutos prometidos
dando água aos poetas
que não capitulavam aos barbantes
das almas aprisionadas por dentro de si.
Vulgo
o carcereiro da sorte
contra o cão que mija no desdém
sob a vista atenta
do Morfeu (que estava) atrasado
deixando em pulgas
a esgrimista adónica.
Vulgo
a mortalha caída na linha do metro
enquanto o cego balbuciava
uma cançoneta dos National
e as colegiais ignoravam,
exiladas no casulo dos auscultadores.
Vulgo
o peão anónimo
em andanças contra a vida
enquanto a vida conspirava
(na maneira de ver do peão anónimo)
na borda de um pão seco
esfarelado por um velho na ilharga do lago
enquanto o farsante
bem disfarçado
(ou não fosse o farsante)
se escondia dentro da gabardina XXL.
Vulgo
um teatro sem agenda
corrompe o povaréu indiferente
com mulheres nuas
desmúsica popularucha
e couratos banhados em unto
– só para ver
se a populaça comparece
(e para tirar as conclusões a preceito).
Jurava que o contexto
era a parte do verbete
que menos interessava.
Os dias movem-se
pelos dados atirados ao jogo
e ninguém tinha uma teoria
sobre o comportamento dos dados
(e a correspondência dos feitos).
Podia ser da marcha-atrás
que às vezes é o penhor em falta
ou apenas
a indizível farsa
desenhada na silhueta das palavras.
E elas,
as palavras,
reunidas na boca do vulcão,
acertadas no limiar do medo,
entoavam uma prece
murmurada no estreito muro das sílabas
enquanto à volta a chuva entrava no cais
e as palavras impetravam
a luz sibilina que juntava as bocas ávidas.
As sílabas abraçavam-se
num tentava
não vã
de compor os lados visíveis dos sonhos.
Numa estimativa aproximada
as pessoas alinhadas no sopé do vulcão
esperavam pelo sinal das palavras
como se elas fossem
o rastilho sem embaraço
o caudal que se oferecia ao navio
ainda em doca seca,
a contrafação dos boçais.
Já ninguém esperava
pelos engenheiros das almas.
O palco está cheio de partidas.
Por cada tempestade
antecipam-se manhãs puídas
os olhos macilentos
esconjuram as marés vivas
deixando a água a remoer-se
no tamanho do dia.
Não sabiam do que estavam à espera
as palavras pacientes na embocadura do vulcão
e as pessoas que as testemunhavam tão pouco,
como se as palavras
pudessem ser ateadas pela lava
que ninguém esperava.
O palco estava armadilhado,
alguém sussurrou.
Logo se saberia
quando o fermento transbordasse do estuário
e a matéria-primasse se cindisse
nas estrelas avulsas que tutelam as juras.
[Crónicas do vírus, DXXIV]
O efeito
mostarda de Dijon
quando as zaragatoas
forem invasoras dos narizes.
Quando era criança
não sabia dos poetas.
Quando
o tempo chegou
deixei de saber
como é ser criança.
“They turn houses into homes (...)”.
Eistürzende Neubauten, “Youme & Meyou”
Não é apenas o cimento
os móveis que obedecem
ao manual de estilo
os cortinados
que reservam o interior
o número de assoalhadas
o crédito hipotecário
e o condomínio
a paisagem fruída à janela
o código postal
as fundações que ficaram escondidas:
é a casa com nome próprio
o mundo reservado
que não cabe
na vaga do mundo inteiro
as paredes que respiram
as almas residentes
sob o pseudónimo de poetas
servidos à refeição.
Tinjo
a aguarela
com o sangue
do desespero.
O sangue
não é meu,
nem o desespero.
Apenas os ouço
em surdina
querendo feitoria
no meu alabastro.
Da aguarela
pressentem-se
as cicatrizes do medo.
O oráculo
invade o tempo
leva-o
a um forasteiro lugar.
Disseram
que a aguarela
já puída
perdeu valor.
Conservo a moldura
por via das dúvidas
não vá ser precisa
para emudecer
o desespero
por ora
apenas em surdina.
A aguarela
tem paradeiro incógnito.
Nem os aflitos
que a assinaram
convocam a sua posse.
[Crónicas do vírus, DXX]
Uma fundação
engenhosamente artilhada
prepara-se para resistir
aos seus escombros.
O franco atirador
é um fraco atirador
(ou pretendente a ditador).
Pouco lhe vale
ser um atirador franco
que a franqueza
não é atestado de pontaria.
As guerras de todos os tempos
ficariam a ganhar
se os beligerantes
fracos atiradores fossem:
as balas perdidas
seriam proveito para a humanidade,
à medida que fossem destinadas
ao fosso.