31.3.21

Biografia

Pedes sol

dou-te estrofes.

 

Pedes verbos

dou-te a planície.

 

Pedes hoje

dou-te árvores.

 

Pedes sede

dou-te lugares.

 

Pedes mar

dou-te o meu corpo.

 

Pedes luar

dou-te páginas.

 

Pedes um panteão

dou-te os nós

que desatámos.

#1962

[Crónicas do vírus, DXXXIV]

 

Repatriamos altivez

em vez das encomendas

de fragilidade.

30.3.21

Oriental

Não se compram

os pseudónimos vilões.

Maldita estratosfera

que conspira com o vinho

e nenhum dos pseudónimos escapa.

Não se perdoam

os piratas sem bandeira.

Oxalá houvesse mar

e um sextante profissional

rodasse as marés a preceito. 

#1961

[Crónicas do vírus, DXXXIII]

 

Na vizinhança do pesadelo

gastando trunfos

até ficar gasta a manga. 

29.3.21

Vacina (contra o excesso de sapiência)

Do tumulto

em forma de lápis

sobra uma montra,

o edificado de palavras

que se sublevam

no tirocínio dos cientistas.

Não se contêm,

as vírgulas e os adjetivos,

no mote da sobre-palavrosa lápide

onde costumam ter poiso

os grandes eruditos.

 

[Instrução de leitura: 

prolongar o som da primeira sílaba

na palavra “grandes”.]

#1960

[Crónicas do vírus, DXXXII]

 

Apenas silhuetas

ou mortalhas

sem nada por dentro.

28.3.21

Extinção da espécie

Repito-me.

Não tenho mais nada

para dizer.

O ferro solto

espera pelo selo abraseado

enquanto a fogueira se excita

e o amordaçado ferve de medo

(disfarçado de brio).

Não se estilhaçam 

os verbos exauridos:

os carrosséis amadores

não se agigantam 

no avesso das dores

e as palavras repetidas

podem não ser matéria gasta.

Repito-me.

Talvez

por não ter nada mais

para dizer;

ou talvez

porque essas palavras

resumem o medo do amordaçado

antes de ser marcado

com o brasão dos estultos. 

Repito-me:

o brasão lacrado na pele

é a pior das tatuagens perenes.

#1959

[Crónicas do vírus, DXXXI]

 

O hálito descarnado transpira

na caverna onde a peste

gravou a devastação.

27.3.21

#1958

[Crónicas do vírus, DXXX]

 

Uma espada

perpendicular,

sem saber se abate

sobre as inocentes cabeças. 

26.3.21

Metáforas disfarçadas de anjos

Ao canto da mesa

escondem-se vultos

disfarçados de anjos, 

imberbes.

 

Falam.

 

Sobre eles

adejam caixas de diálogo

com as legendas do que dizem.

 

Nota-se a profusão de onomatopeias.

 

Ninguém apurou

se os querubins falavam

por interposta metáfora

ou se eram literais 

– termos em que

seriam disfarces de anjos

ou os anjos neófitos 

ganharam autorização

(superior)

para o vernáculo.

 

Falta o apuramento dos factos

sem o qual

o sono não deixa de produzir efeitos

e os demais

não são destinados ao desamparo de causa.

#1957

[Crónicas do vírus, DXXIX]

 

Exortação:

não percamos de vista

o juízo 

(na forma do siso, que nem sempre há).

Como se adolescentes 

fôssemos todos.

25.3.21

#1956

[Crónicas do vírus, DXXVIII]

 

(Variante do #1955)

 

Somos contramestres

da originalidade

quando menos dela

precisamos.

Diurese semântica

Estou zangado com as palavras

e atiro a matar

contra as claras que se acastelam

no hipotálamo da cisão.

Não sei se as rasuro,

às palavras dissidentes,

pelo topete de se agigantarem contra mim

e quererem colonizar o meu sangue.

É desigual

o terçar de armas:

as palavras nem sabem 

que com elas me zango

e não darão devida conta

do meu rasurar impenitente.

Mas essas palavras insubmissas

que torpedeiam o meu apenas estar

 

(não poderia dizer que é bem-estar)

 

colhem o lilás das bandeiras

e enfeitam as janelas com cadáveres de flores

povoando os lugares 

com pútrida

poluição.

Não viro a cara ao terçar de armas

com as palavras com que me zanguei,

por mais que elas esbarrem

fragorosamente

no conceito do meu rosto 

que parece

a carne para canhão

 

(como é na linguagem castrense).

#1955

[Crónicas do vírus, DXXVII]

 

Nos outros

um passo atrás

para dois à frente

e nós

um passo à frente

para dois atrás?

24.3.21

Papel por gastar

As recordações do futuro 

– dizias, 

mastigando os despojos de um dia

que parecia o disfarce do tempo.

A boca murmurava os hábitos

e as páginas precisavam de aval

para serem levadas a sério.

 

Não tenho um oráculo 

– dizia,

olhando para a escotilha

que vigiava o mar errático.

Os gatos apreciam a noite

e as sentinelas não se apagam

no crepúsculo kamikaze.

 

Acredito no futuro flamífero 

– dizias,

enquanto atiravas fósforos

contra as montanhas que se levantavam

perto do posto de vigia

mesmo na embocadura do nevoeiro.

 

Não sei dos fogos vindouros 

– dizia,

desde o palácio dos frutos prometidos

dando água aos poetas

que não capitulavam aos barbantes 

das almas aprisionadas por dentro de si.

#1954

[Crónicas do vírus, DXXVI]

 

No puzzle dos acasos

somos peões, 

na espera da lotaria.

23.3.21

Dos sobreiros de que se avistam (courela)

Vulgo

o carcereiro da sorte

contra o cão que mija no desdém

sob a vista atenta

do Morfeu (que estava) atrasado

deixando em pulgas

a esgrimista adónica.

 

Vulgo

a mortalha caída na linha do metro

enquanto o cego balbuciava

uma cançoneta dos National

e as colegiais ignoravam,

exiladas no casulo dos auscultadores.

 

Vulgo

o peão anónimo

em andanças contra a vida

enquanto a vida conspirava

(na maneira de ver do peão anónimo)

na borda de um pão seco

esfarelado por um velho na ilharga do lago

enquanto o farsante

bem disfarçado

(ou não fosse o farsante)

se escondia dentro da gabardina XXL.

 

Vulgo

um teatro sem agenda

corrompe o povaréu indiferente

com mulheres nuas

desmúsica popularucha

e couratos banhados em unto 

– só para ver

se a populaça comparece

 

(e para tirar as conclusões a preceito).

#1953

[Crónicas do vírus, DXXV]

 

Da desinfeção dos apóstatas,

ou o tumultuoso 

amanhecer contínuo.

22.3.21

Memória

Jurava que o contexto

era a parte do verbete

que menos interessava. 

Os dias movem-se

pelos dados atirados ao jogo

e ninguém tinha uma teoria

sobre o comportamento dos dados

(e a correspondência dos feitos).

Podia ser da marcha-atrás 

que às vezes é o penhor em falta

ou apenas 

a indizível farsa

desenhada na silhueta das palavras. 

E elas, 

as palavras,

reunidas na boca do vulcão,

acertadas no limiar do medo,

entoavam uma prece 

murmurada no estreito muro das sílabas

enquanto à volta a chuva entrava no cais

e as palavras impetravam

a luz sibilina que juntava as bocas ávidas. 

As sílabas abraçavam-se

num tentava

não vã

de compor os lados visíveis dos sonhos. 

Numa estimativa aproximada

as pessoas alinhadas no sopé do vulcão

esperavam pelo sinal das palavras

como se elas fossem 

o rastilho sem embaraço

o caudal que se oferecia ao navio

ainda em doca seca,

a contrafação dos boçais. 

Já ninguém esperava

pelos engenheiros das almas. 

O palco está cheio de partidas. 

Por cada tempestade

antecipam-se manhãs puídas

os olhos macilentos 

esconjuram as marés vivas

deixando a água a remoer-se 

no tamanho do dia. 

Não sabiam do que estavam à espera

as palavras pacientes na embocadura do vulcão

e as pessoas que as testemunhavam tão pouco,

como se as palavras 

pudessem ser ateadas pela lava

que ninguém esperava. 

O palco estava armadilhado,

alguém sussurrou. 

Logo se saberia

quando o fermento transbordasse do estuário

e a matéria-primasse se cindisse

nas estrelas avulsas que tutelam as juras. 

#1952

[Crónicas do vírus, DXXIV]

 

O efeito

mostarda de Dijon

quando as zaragatoas

forem invasoras dos narizes.

21.3.21

Areia molhada

Quando era criança

não sabia dos poetas. 

Quando 

o tempo chegou

deixei de saber

como é ser criança.

Casa

“They turn houses into homes (...)”.

Eistürzende Neubauten, “Youme & Meyou”

 

Não é apenas o cimento

os móveis que obedecem

ao manual de estilo

os cortinados

que reservam o interior

o número de assoalhadas

o crédito hipotecário

e o condomínio

a paisagem fruída à janela

o código postal

as fundações que ficaram escondidas:

é a casa com nome próprio

o mundo reservado

que não cabe 

na vaga do mundo inteiro

as paredes que respiram

as almas residentes

sob o pseudónimo de poetas

servidos à refeição. 

#1951

[Crónicas do vírus, DXXIII]

 

A ferro e fogo

o nome do insurgente

no esqueleto de um submarino.

20.3.21

#1950

[Crónicas do vírus, DXXII]

 

Um lápis vermelho

constantemente

a rasurar o futuro. 

19.3.21

Ecuménico

Tinjo

a aguarela

com o sangue

do desespero.

O sangue

não é meu,

nem o desespero.

Apenas os ouço

em surdina

querendo feitoria

no meu alabastro.

Da aguarela

pressentem-se

as cicatrizes do medo.

O oráculo

invade o tempo

leva-o

a um forasteiro lugar.

Disseram

que a aguarela

já puída

perdeu valor.

Conservo a moldura

por via das dúvidas

não vá ser precisa

para emudecer

o desespero

por ora

apenas em surdina.

A aguarela

tem paradeiro incógnito.

Nem os aflitos

que a assinaram

convocam a sua posse. 

#1949

[Crónicas do vírus, DXXI]

 

Momento heurístico da peste

(redescoberta do vocabulário):

postigo.

#1948

[Crónicas do vírus, DXX]

 

Uma fundação

engenhosamente artilhada

prepara-se para resistir 

aos seus escombros.

18.3.21

Enigma

Consigo consigo 

– e não revelo 

por que ordem 

aparece o verbo.

 

(E devo dizer

que a ordem

não é arbitrária.)

#1947

[Crónicas do vírus, DXIX]

 

Este caminho

cheio de acúleos

no biscate de uma redenção 

imperativa.

17.3.21

Franco atirador

O franco atirador

é um fraco atirador

(ou pretendente a ditador).

Pouco lhe vale

ser um atirador franco

que a franqueza

não é atestado de pontaria.

As guerras de todos os tempos

ficariam a ganhar

se os beligerantes

fracos atiradores fossem:

as balas perdidas 

seriam proveito para a humanidade,

à medida que fossem destinadas 

ao fosso.