12.11.15

Nocturnale

Primeiro
subia ao promontório mais perto
para desenhar a paisagem
com o lápis que era o meu dedo.
Deixava o rosto nas mãos do vento
enquanto os olhos do avesso
terçavam os ângulos ambíguos
das coisas em redor.
Desembrulhava os equívocos
à medida que as páginas mentais
cosiam as bainhas do tecido roto.
A espuma do rio enfeitava a paisagem.

Segundo
fui ao cais velho
sentir o peso da madeira gasta
e o perfume do musgo perene.
Perguntei ao velho marinheiro
se ainda havia sereias
e se eram deusas como contam os contos.
Mas o velho marinheiro ensurdecera.
Não tive outro remédio
se não adivinhar a resposta.
Combinei as águas salgadas e pútridas do cais
com as demandas trazidas pelas nuvens
alimentadas pelos ventos de norte.
Combinei as palavras urdidas
os rostos entristecidos
as mãos gastas dos marinheiros
como as do velho que não respondera.
Anoiteceu.

Terceiro
errei pelas ruas movimentadas da cidade
entre néones e mulheres ávidas
até desaguar num bar sombrio.
Descobri as palavras desfocadas
através do vinho barato.
Insultei os arrependimentos
que eram memória futura do passado baço.
Descobri os cambiantes da penumbra
e que a penumbra não é palavra singular.
Sem saber
fiquei a saber os segredos de um cozinheiro
que carpia mágoas ao balcão.
Com o olhar embaciado
resolvi meter as pernas ao frio da noite
restante.

Quarto
achei que ainda não era a hora
de me recolher ao quarto.
A cidade,
abandonada ao silêncio
e com pessoas raras nas ruas,
era apetecível.
Ignorei os avisos sobre meliantes noturnos
desconfiei que as desgraças avisam portas alheias
e continuei a andar sem destino
pelo que sobrava da noite
restante.
Dei conta que a noite amaciava
à medida que despontava a alvorada.
Não sabia onde estava o sono
e nem o cansaço apoquentava as pernas.
A revoada de pensamentos incessantes
tropeçava nos passos ávidos
nas ruas e avenidas desertas que,
não tardava,
começavam a ser afluentes de gente.
Não sei onde deixei o sono.
Não sei onde ficaram as respostas
às interrogações formuladas
nem tão pouco me recordo
se, sequer, houve respostas.

Quinto
o tempo fora implacável.
À noite branca
seguia-se um dia como os outros:
o trabalho no escritório
o chefe macambúzio
os colegas tacanhos
as notícias gastas
o outono que mais parecia verão decadente
os mendigos com olhar perdido no firmamento
as mulheres de saltos altos em passo lento
os restaurantes vazios
o condutor de autocarro com óculos de sol
os veios da carne sangrando
dos sobressaltos deitando gotas na carne viva
enquanto as dores eram vertidas
nos outros.

E sexto:
aprendi,
no conciliábulo desenhado a vermelho-sangue,
entre o fumo denso do tabaco
e o cheiro a hálito de vinho,
que os ossos são duros
para serem derrotados
pela decadência. 

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