31.8.22

Bruma

Uma fotografia

arrependimento venal

tirania da memória

bebida no sangue diuturno

nas danças demenciais

nos dias furtivos 

escondidos da História.

#2508

Desarmadilhado,

o segredo ficou nu

à frente dos olhos.

30.8.22

O prazo não é um dilema

A poeira não sobe à boca:

não está vento de feição

e neste cais 

as paredes são fortaleza. 

Os tumultos desfazem-se na maré

elidindo os sobressaltos com escritura

dissolvidos num nada sem vestígios por dentro. 

Sem os olhos embaciados

a transgressão esconjura-se

e ficam por contar as centelhas venais

contra as miosótis promitentes

e as páginas esplêndidas que amanhecem

a despeito dos maus prognósticos. 

Os rostos 

amontoam-se nas esquinas da memória. 

Não falam:

passeiam as suas expressões sintomáticas

com a ajuda de sucessivas camadas de silêncio,

a proverbial consumição das palavras vãs. 

As folhas das árvores ainda não estão caducas. 

Resistem

como só os espíritos enraizados sabem resistir. 

Daqui a uns meses

quando as folhas cadáveres derem à estampa

saber-se-á da linhagem das gentes

se conservam a volumetria de deuses improváveis

ou se capitulam

na sincera decadência da sua fragilidade.

#2507

Na pele sem mapa

a boca extática,

tatuadora.

29.8.22

Estrelas furtivas

Um astrolábio rudimentar

como oráculo:

se fossem visíveis

as constelações apareciam 

com os nomes de flores

e os nomes outros seriam

imitação das constelações.

 

Dizias:

não quero outro paradeiro

a não ser as tuas mãos desordeiras

e eu concordava;

os molhos de jasmim 

cuidavam da minha estultícia,

a estultícia 

(julgava eu)

irremediável,

à mercê do teu patronato diligente

em forma de dissolução desse mal.

 

Teríamos estrelas de atalaia

no intenso precipício acobreado

o breve flúmen pendido no fundo

quase renunciável

quase martirizado pelo estio a desoras.

 

Sabes:

remexi a terra emoliente com as mãos nuas,

nem parece meu, eu sei,

e de lá trouxe os miríficos saberes

que não se cuidam em compêndios vetustos.

 

Se as constelações arcarem os nomes de flores

sabê-las-ei de cor

mesmo nada sabendo sobre as flores

que têm esses nomes.

Sossegas-me

contemplativamente juntando ao havido

que esses são nomes furtivos

como se pertencessem à curadoria

das estrelas-cadentes.

#2506

A lua

que se quer

(outra vez)

à légua de um sonho.

Injustiças indocumentadas (12)

O coração

ao pé da boca

deve ser um pouco

indigesto.

28.8.22

#2505

Não vale a pena:

o dia ainda traz

muitas ondas a tiracolo.

27.8.22

Ecos

Os ecos

património ou destroços

em equação que sinaliza

a vontade desembaraçada.

Os ecos:

o que fazes com eles

é gramática que é teu assunto

fabulosa erupção sem som.

Desse estendal

retira para o lado 

as mentiras sem quartel.

#2504

Como na matilha 

sabiamente organizada

os despojos repartidos

silenciam o medo.

26.8.22

Elefante

Sou 

esta pele

o mapa sem rugas

sei-me por fora

das janelas,

representação ínfima

estilhaço devolvido

à fonte. 

 

Está é a pele

emigrada

a veia gutural

ferida sem cicatriz

maré que se válida

na posse dos nomes

anestesiados. 

#2503

Faz de conta

que nada conta

no conto que te contam.

25.8.22

Capítulo seis

Os estilhaços do Verão

juntam-se às algas 

em despojos onde a maré termina.

 

Os espíritos estivais protestam:

o Verão devia ser mais duradouro

apesar dos corpos suados

das noites de sono embaciado

das ideias anestesiadas

do torpor hasteado em nome do cansaço 

herdado do tempo precedente

ou talvez 

apenas por causa

da indolência que não paga multa

na demorada temporada

do mui constitucional direito ao ócio.

 

Os estilhaços do Verão

pressentem a temporada consecutiva

o rame-rame outra vez

o adiamento das coisas que importam

a perene sensação da exiguidade do tempo

a sensação de tirania 

exercida sobre quem da faina precisa

para manter o pescoço acima da linha de água

 

(um eufemismo para a sobrevivência).

#2502

Serve-se a loucura

em pezinhos de lã

disfarçada

de decretos-lei.

Injustiças indocumentadas (11)

E se fosse o gato

a ser atirado ao pau

o que diria o PAN?

24.8.22

Atirar a mostarda ao nariz-compasso

O terrível nariz de mostarda

espera pela suite prometida

pois 

aos odores não se atraiçoa o delido.

 

O palco não se desfaz nas paredes caiadas

se ao alpendre subirem as divindades perdidas:

 

pratique-se à besta casmurra

o mesmo destrato que aos tiranetes:

 

colheres de mostarda de Dijon a esmo

até as veias do cérebro se esgotarem

nos filões ávidos de ideias 

lisérgicas.

Injustiças indocumentadas (10)

Puxar o pé para o chinelo

é como empurrar o corpo

para o abismo.

#2501

Partidários do nada

no magma

em que tem ebulição

a pátria do eu.

23.8.22

ONU

Os idiomas falavam à vez.

As bocas procuravam nomes

como quem encontra uma morada.

O dia era o espelho das traduções.

Nada ficava por entender

não por falta de correspondência

entre os idiomas.

Alguém supôs um idioma universal

mas todos recusaram a intenção.

A língua franca

condenava os idiomas à insignificância.

Todos

(menos os eruditos do idioma franco)

baniam as intenções 

que baniam a biodiversidade das línguas.

Os idiomas falavam à vez.

Mas falavam todos

uns com os outros.

#2500

Das facas longas

sobra

um nevoeiro cortante

que amanhece no sangue imprudente.

Injustiças indocumentadas (9)

Farinha mágica.

22.8.22

Moderação

Não sejas modesto

na poupança de metáforas:

o carrossel de palavras é o passaporte 

para um idioma sem cansaço,

a avassaladora marca registada

que o cofre reserva

à tua guarda.

Injustiças indocumentadas (8)

Sete são as chaves

que aferrolham os tesouros;

seis não satisfazem a função

e oito serão de mais.

#2499

A porta atrás:

uma artrose sem remédio

dos inertes,

sem acerto do tempo.

21.8.22

#2498

Sobre as probabilidades

conversam os enganos

que a fala emudece

ao primeiro esgar de ilusão.

20.8.22

#2497

Corpos caminham

num chão de mãos:

levitam 

na matéria de sonhos

sem sono por verbo.

19.8.22

#2496

Em matéria finita,

não vá o universo

cansar-se de nós.

 

(Dada a suscetibilidade

do universo.)

18.8.22

Injustiças indocumentadas (7)

No arco da velha

o mal é do arco

ou da velha?

#2495

A matilha

não obediente

suprime as normativas:

são os seus próprios anarquistas

e vítimas prediletas.

"The Beachland Ballroom"

A carne não sangra;

canta 

com os dentes entumecidos

e a gola da alma de atalaia.

O corpo que vocifera

rima com o idioma rouco

e é como se todos,

em uníssono,

pudéssemos morrer à nossa vontade.

 

[Idles, Vodafone Paredes de Coura, 17-18 de agosto de 2022]

17.8.22

#2494

Com a vossa licença,

que a manhã se faz tarde

e os provérbios estão à míngua:

deito o olhar ao rio

a ver se me devolve o sangue.

16.8.22

#2493

Não são 

amestrados 

os sonhos à lareira, 

a direção assistida da vida.

15.8.22

Complemento direto

Se fossemos salteadores

e sonhássemos com montanhas

em vez de bandeiras

faríamos de poemas avulsos

o hino com mastro a propósito.

#2492

Só tem honra de notícia

a deriva para o precipício

(não o desaquartelar de cárceres).

14.8.22

Injustiças indocumentadas (6)

O teatro de guerra

não é um teatro

que se veja.

#2491

Não se cultiva,

a letargia.

 

(Ao contrário

do marialvismo.)

13.8.22

Dolo

O que faço

deste dolo

provérbio gasto

ou apenas

intenção cimentada no mural

cisão entre o eu e o acaso?

 

O que faço

com este dolo

matéria sem linhagem

costuras acima da medida

a manga gasta no pelourinho

sem sentenças por perto

sem regras a servirem de gramática?

 

O que faço

metido 

neste dolo?

Injustiças indocumentadas (5)

Dar com os pés,

como quem couceia.

#2490

O mar

que abre as janelas 

da alma

e a alma que respira

o mar.

12.8.22

Injustiças indocumentadas (4)

A fava

deve ter as costas largas

ou é o embaixador vegetal

do patinho feio.

#2489

A manhã macia

nos despojos

da lua poente.

11.8.22

Injustiças indocumentadas (3)

Às vezes

somos centopeias

mas só fugimos

a sete pés.

Sétima via

Se estes marços não acabam pela tarde

protesto a delação dos espíritos amordaçados

contra a especiosa safra dos clarividentes.

 

Ondas musculadas não amedrontam as rochas

nem sob ameaça pendida sobre a jugular

pois o material previdente assenta em carvão.

 

Atirem os detonadores ao Outono circunstancial

e depois adormeçam numa cama versátil

que das miragens habituais já não há paradeiro.

#2488

À força de tantas certezas

ficaram órfãs 

as perguntas.

10.8.22

Injustiças indocumentadas (2)

Chamavam-lhe

um figo.

 

E quem estabeleceu

que o figo

precede os outros 

na hierarquia dos frutos?

Sobre vendas nos olhos e Salazares em levitação constante

Ninguém vê

a venda sobre os olhos

e não é por acaso

pois a venda veda o olhar

impedido de ver 

o que está impedido de ver.

A tautologia do avesso

não contraria

a litania dos maus espíritos.

Eles confessam a fraqueza

enquanto esmiolam o raciocínio

reduzido 

a um quinhão de pouco mais que nada.

A venda aplicada sobre os olhos,

o ultraje máximo

a depreciação dos espíritos que

(dir-se-ia)

se fomentam livres:

a venda sobre os olhos

é voluntária,

por inação de quem desiste de o ser

ou por cedência aos mastins

incomodados se os espíritos livres

prosperarem.

Confirmado está

que o sangue salazarento 

não ficou sepultado 

quando os cravos deram patrocínio 

à liberdade.

#2487

Da vulnerabilidade

não desçamos 

ao inferno.

9.8.22

Injustiças indocumentadas (1)

Todos lamentam

a pedra no sapato

mas ninguém protesta

contra o sapato na pedra.

Poesia vs. ciência

Uma fatia da lua:

a chave urdida na sementeira

no bolbo da Primavera

e os tribunos extáticos

atribuem aos deuses as causas órfãs.

Uma fatia da lua servida no oráculo:

os destemidos marinheiros trazem os mares

eles que passaram por tantas marés

e que ciciam o sono perdido

antes que fossem serventia à mesa

de criaturas acusadas de naufrágio.

 

O que seria dos mapas

sem os marinheiros intrépidos

ou os exegetas que nos leram

a História?

 

Na pena iconoclasta dos letrados

as talhadas de lua são como aneurismas

pestes que vestem as páginas dos vates

contra os determinismos selados

em matéria irremediável.

As luas de antanho

testemunharam o ocorrido

mas ninguém lhes pergunta

pelo determinismo dos peritos.

#2486

Os dentes macios da estufa

fintam a geografia limítrofe.

8.8.22

Poema à Adélia Lopes

Hoje

(já)

li

dois livros

e qualquer coisa

de poesia.

Peregrinação

Todas as tardes são pusilânimes

quando os aromas se escondem

nos verbos covardes

nos rostos seráficos que, 

étimos de fingimento,

corroem a mais ínfima corrosão

deixando um telúrico vazio por dentro

no raiar do dia assim desapetecido.

 

Não é o vulgar irradiar do sol

que disfarça as intempéries interiores:

o basalto cobre a pele

e as mãos 

tornam-se esquimós com medo do Verão.

 

Se ao menos 

a tirania saísse do dicionário

talvez houvesse um arranjo 

para as entorses do mundo.

#2485

Bulem comigo

em (quase) igual medida

bulas papais

e bulas medicamentosas. 

7.8.22

#2484

As mãos atravessadas

numa floresta de frases

desmatando a mudez da fala.

Verosimilhança

Os olhos a carvão

arrastam a vírgula

na página emaciada.

 

Contam as sílabas

no úbere do tempo

a tempo de não serem tardios.

 

As clepsidras conspiram

braços a desmedo no nadar

o suor lavado no mar.

 

As tardes porfiam

um cessar repetitivo

em versos sentados no luar.

 

As comendas não se revindicam

lugares vazios no idioma

se os silêncios disserem mais.

 

Nada dizemos aos anátemas

às ermas marés

no regozijo dos motes entronizados.

 

No distante lugar

onde nada se faz dicionário

os rostos contam tudo o que é preciso.

6.8.22

Desconsentimento

O logos periférico

larápio da santidade,

todavia visceral,

do sangue bolçado

contra 

os anátemas de tanta linhagem. 

Logo se confessa o esconjurado

em degraus estilhaçados

por manifesta indisposição ao arnês

no fundo

a liberdade sem código de conduta.

Os almanaques passeiam nas mãos serenas

e deixam lacradas sentenças;

as mesmas que habilitam dissidências

na pureza do pensamento sem freios.

Dessas harpas subliminares

levantam-se ecos que desenham as estrofes

em vez dos códigos de conduta:

pois deles só tem carestia

os que à partida sabem

não serem credores de confiança. 

#2483

No estirador sem esconderijos

somos a pele que se mostra

a franqueza possível 

de um nome sem rasuras.

5.8.22

#2482

Avarias, avarias, avarias;

Vinte e seis minutos de avarias:

ou um mundo

com um desenho não caricatural.

 

[GNR, “Avarias”]

4.8.22

Distâncias

Tudo se reduz a nenhures

a largueza de um deserto

resumida a um grão de areia

os mapas que disfarçam imensidões

ou antes se limitam a rasurá-las

na pequena moldura do olhar. 

Os limites não se enganam

na artilharia amputada dos legítimos guerreiros

que cortam tiranos pela raiz. 

Nada se agiganta depois do horizonte;

a finitude 

ou a sensação de ela ter um palco

anestesia as almas sobressaltadas. 

Não precisam de geografias sem fim:

gigantes são as empreitadas

que desassossegam as almas. 

#2481

Se procurares

nas veias dos destroços,

encontrarás uma Bastilha.

3.8.22

A garganta da terra

Na garganta da terra:

os lençóis revirados

marca registada do avesso

tatuavam a crisálida

que avivava a melancolia. 

Tirava as medidas ao comboio

que rompia o silêncio noturno;

de vez em quando

ecoavam os nomes

em seus disfarces

de fantasmas.

Os proveitos versados,

anotados em folhas amarelas,

eram olimpicamente ignorados:

falava-se de desmaterializar a matéria

por tudo o impossível que soasse

nas arcádias povoadas pelo escol.

As falas não eram importunadas

ainda que se atropelassem 

num caudal contínuo.

Delas se dizia serem o manancial

de águas frutadas que empunhavam 

poemas.

Esses poemas

eram as mãos que desciam à terra funda,

as mãos fundamentadas

– mãos sinceramente à prova de medo – 

e traziam à superfície

com a mediação de periscópios rigorosos

uma forma de arroz enfatuado,

mas com a devida autorização

dos tutores da república. 

Pois a terra

tinha a sua garganta

e ai de quem 

a quisesse silenciar. 

#2480

Serve-se imoderação a esmo

no panteão dos vivos

que nenhuma palavra

serve para atapetar o rés-do-chão.

2.8.22

Despatriotismo

De silogismo em silogismo, 

as bandeiras decaíam 

no esgotamento dos costumes. 

Dizia-se:

somos peritos em farsas

e avançamos pelo avental

do fingimento

fundindo em verbos ostensivos

o boçal ornamento da fala intransitável.

Os bocejos tornaram-se adjetivo

e da fundura dos estigmas

ninguém reparou na indigência

no mais aviltante destratar de si.

As loucas vozes gritavam

mas ninguém ouvia o clamor

ninguém

queria saber do livro de estilo

onde se ensinava a decadência. 

As mãos caíram no barro

mas não souberam ser escultoras.

Agora ficávamos à mercê do acaso

antes que do avesso de nós

colhêssemos a agitação própria

de quem está fora de validade. 

As bandeiras despedaçadas 

sem servidão

esqueceram-se do hino.

As pessoas esqueceram-se

do hino e das bandeiras;

esqueceram-se

de quem são.

#2479

Avenidas intermináveis,

esboços mentais

de uma altivez sedutora.

1.8.22

Escola primária

Não tendo vocação

para as grandezas

quando chegou a sua vez

entoou

com a solenidade dos condenados à irrelevância:

 

“quando for grande

quero ser

a ursa menor.”

#2478

Não é em gramas

que se mede

o ânimo.