O dia
que se adia
no adeus
sem deus.
O deus
que adia
o dia
sem adeus.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Ninguém desiste da luz diurna
enquanto pelo crepúsculo não for vencido.
Jogam-se as peças todas
no tabuleiro onde se atravessam
as possibilidades infinitas.
O conhecimento não chega à fala
com muitas delas.
O periscópio lança-se sobre a âncora distante
o despojamento titula a ousadia.
Os braços desembaraçados
nivelam-se pela estatura do Olimpo.
Num momento
as peças espalhadas pelo chão
disfarçam o inanimado:
querem que todos saibam
que são uma possibilidade
que se joga na aritmética das possibilidades
uma equação emancipada da órbita do criador
os números em vertiginosa roda-viva,
um deles à espera de lugar
na lotaria incandescente que afogueia o dia.
No clandestino amplexo das possibilidades
uma sai do avesso da coorte
e contraria a maré a preceito.
Antes que,
do antebraço das possibilidades,
muitas sejam extintas
e o mapa delas se reduza a um ermo.
Meia-desfeita
a veia regida pelo lenticular céu
impõe-se no cesto impar
onde se afeiçoam
entre desiguais
as fazendas que escondem a pele.
É por desfeita e meia
que as palavras murais se inventariam
antes que o ocaso se faça império
e a memória estiole na varanda servil.
É por esta desfeita
que não se abraça a angústia:
ao sangue apetece ser a lava ingente
o salto sem lanço que atira
por dentro do arnês
o remédio encorpado
contra o músculo forte que desce a serrania.
E assim
meio desfeito
entre os estilhaços dos derrotados
os braços assentam na litania avençada
antes que o tempo ultrapasse a viagem
em contramão.
No corte a eito
o excesso
o caudal que transborda
sem aceitar a margem como limite
o inadiável sufrágio da palavra sem algemas
a boca faminta das fomes sem nome
a convocatória do vulcão sem represas
num desbarato que se move
à velocidade
sem medida.
No corte a eito
onde espiga
o deitar tudo a perder.
Muito se teoriza
sobre a “bomba suja”
mas as únicas bombas limpas
que conheço
são as bombas de água.
O musgo
dava uma ideia
do Outono.
Do mesmo modo,
os cogumelos que medravam
livres
nos baldios à mercê
do sortilégio outonal.
Desta vez,
as estações
não estavam do avesso.
As pessoas
paradoxalmente
andavam tristonhas
refogadas em lume brando
pela chuva instalada há dias consecutivos
e a humidade bafa que emprestava
um ameno quase exótico
aos dias arrastados.
As pessoas
desprezam o bucolismo do Outono.
Não apreciam
a metamorfose das folhas das árvores
escrevendo o seu próprio óbito
na decadência selada pelo acobreado mágico.
Se pudessem
os desavindos com o Outono
saltavam a estação,
melhor dizendo,
saltavam as duas estações
que obrigam a abrigo e agasalho.
Os que desaprovam o Outono
não sabem
que o Outono não é o espelho da decadência;
é um amplexo que se ajuramenta
na renovação que encontra sedimento
na hibernação heurística.
Nós também hibernamos
sem ser um Outono
que nos desaprova.
As pessoas
invejam o Outono
porque não têm mão
na metamorfose
que é a promessa do Outono.
A lagosta é suada.
Pudera.
Com a água a ferver
que lagosta não acaba
suada?
Um dia
disse um poema
e cresci três centímetros.
No dia
a seguir
deixei que outro poema
se aninhasse no colo da manhã
e soube ser aprendiz
dos vultos selados no anonimato.
Dias
mais tarde
só me apetecia organizar
uma coletânea de poesia
diversa,
como diversa deve ser a poesia
enquanto mostruário da vida
em todas as suas conceções.
Tornei-me
ministro de uma coisa qualquer
que,
todavia,
não soube dizer qual,
num governo de um ministro só
(sem a importunação do chefe da hierarquia).
O feitiço da poesia
alcançara o sortilégio
de tornar ministro
um anarquista
que pensava não ter remédio.
Sendo a sátira um jogo de luxo
em que ao tabuleiro não eram admitidos
pobres de espírito
desenganados estivessem
os que fossem em demanda de legendas.
A sátira com legendas não é sátira
é a placa toponímica da indigência.
Dando o ouro da sátira como garantia
fica sempre a garantia
de nas imediações vegetarem
ou os que desconfiam
que a sátira disfarça uma linguagem cifrada
ou os que ficam aquém do sentido alegórico
das palavras em que se encerra a sátira.
Nunca se pode contentar
uns e outros.
Ouvimos
em surdina
os verbos esquecidos.
Lamentamos
em coro
as páginas desfalecidas.
Avisamos
o passado
para não ser vulto.
Arrefecemos
em segredo
a candeia do medo.
Habitamos
de corpo inteiro
o sangue crepuscular.
Admitimos
nas nossas mãos
as bocas impacientes.
Resolvemos
sem aviso prévio
as rugas que adejam no ocaso.
Desenhamos
em sílabas desabituadas
os labirintos que se antecipam.
Fintamos
com a destreza do Maradona
as trovoadas impertinentes.
Marcamos
nas costas do segredo
o lugar em Buenos Aires.
Não abro mão
da coroa de espinhos
da tabuada dos sete
do rigor do Correio da Manhã
da feijoada sem tripas
da literatura que é uma chaga
da prolixa fala dos aspirantes ao estrelato
dos negociantes e dos regentes em concubinato
da D. Graça da DGS
dos gurus condutores de almas
dos sebastiões em que o povo insiste
na diarreia verbal de S. Exa.
(o comentador incidental do reino)
dos fingimentos que se fingem a si mesmos
dos condutores que anularam o pisca
do incrível otimismo nacional
e do seu gémeo separado à nascença
o derrotismo federalizado
dos chicos-espertos (essas aves abundantes)
do ministro que ainda não percebeu que já não é
das mentiras que disfarçam as suas próprias farsas
dos agelastas inconsequentes
dos ignorantes que têm sempre uma opinião
dos eruditos do alto da sua pança farta
dos parasitas montados na ética republicana
nos aríetes das moralidades (sem exceção)
dos juízes em causa alheia
dos tribunícios sem palco que não seja o seu espelho
dos que tropeçam no conhecimento de tudo
(vulgo: tudólogos)
do Galamba
dos inovadores semânticos
dos tropistas das modas
da pandemia de influencers
do esgoto terminal que desagua no horizonte
da bandeira pútrida
e dos seus arautos sem saberem da sua decadência
e não abro mão
de um receituário de ironia.
Soubesse da missa a metade
– era em jeito de pretexto
que acendia a ladainha do arrependimento
à espera da absolvição
uma indulgência anónima
que seria um sibilino juntar das mãos
sobre o sono pacífico.
Mas o mar era atlântico
e estava uma tempestade das antigas
(os mais novos quase nem sabem
que a tempestade tem lugar no dicionário)
e, para o mais que contasse,
nem uma metade da missa sabia,
quanto mais o outro meio.
Parecia prometida
a noite como embaraço
e um sono tumultuoso
viajando pelas ondas cavadas
que são o chão próprio
dos arrependimentos sem serventia.
A noção vaga
da chuva torrencial
deu para confirmar
que os cavalinhos
foram todos retirados
para seus aposentos.
Risco a página do dia:
é como se fosse
um baldio
os ossos frios estalam
na embocadura da noite
deixando-a
muda.
À página do dia
sabotada pelo estrénuo movimento
em que se senta a angústia
outra suceder-se-á.
Do lugar em que me encontro
na posse do dia irremediável
não sei como será ornamentada
a página
que se segue.
Só sei que todos os dias
são um fio irremediável
assim que se encontram
com o seu saldo.
As páginas dos dias
quando andam da frente para trás
são um volume de contratempos
o lugar sem nome para
a rendição.
E se da matança não houver ouvidos
os sentidos rasgados desmaiam no caudal
talvez sangrando as palavras opacas,
este o graal consentido.
O ringue está sempre pronto:
os imprevidentes impérios
tutelam-se nas mangas dos burocratas
tornam-se adultos
no avesso das páginas remendadas.
As mentiras sobram nas goteiras
cobrem as vidraças com o orvalho demorado
e as pessoas avançam no meio das ilusões
apagadas
como sempre são as pessoas
no fingimento de serem as peças centrípetas
que sobem a palco
ao palco sem residência nem existência certa.
E as palavras
invisivelmente sangradas
escorrem no meio da podridão coeva.
Não se enfastiam
os mecenas do teatro dos fingimentos;
sabem que só são periscópios
enquanto os demais
forem corsários da grande mentira universal,
a mentira que se entronizou
metáfora da verdade.
Colho
na penumbra do outono
as sílabas sortilégio
o almirante miradouro
que levanta do céu embaciado
as cortinas vetustas
e sei
que o outono é promitente
de outonos que não cumprem
o selo da decadência
nele levitando novos horizontes.
Desse palco soube distância.
O povoado sabia-se torto
sem ser pela impureza
a dissidência:
as fragas
sussurravam na esquina do Outono
e a linhagem das palavras entoadas
soava a farsa invalidada
pela muralha da cidade.
Mas o Outono era tardio.
O ciciar do caudal dele dizia ser timorato
um pouco como as bocas
que eram parentes da afoiteza
mas não passavam da medida pequena
assim encerrando-as
na sua soez descapacidade.
Ao menos
à noite
ninguém via rostos e bocas e rio
e até os murmúrios se metamorfoseavam
em silêncios.
A voz perdeu as sílabas
mas não se calou.
Os calos da boca
enchem-se de brio
e resistem
resistem ao veneno bolçado
pelos apátridas que desadoram
a liberdade.
Estado de sítio:
tomamos a convulsão como verbo
reféns do imorredoiro protesto
contra o estado das coisas.
Consideramos:
é da natureza das coisas
a sublevação
contra a natureza das coisas
pois as coisas
em sua natureza
seriam destinadas ao malogro
se de nós soubessem
a apatia.
E nem que preciso seja
adejar uma conspiração
devolvemos à nostalgia a sua inutilidade
por insatisfatória condição;
preferimos
avançar a desmedo
arroteando os touros à medida que desfilam
desfazendo as bandeiras que se supõem
equinócios baratos
juntando nas mãos a neve vagamente prometida
coabitando na memória do presente
– o maior presente que deixamos
em memória do futuro.
A rendição
não se traduz no nosso dicionário.
Queremos ser procuradores do avesso continuo.
Há quem garanta
tratar-se apenas de feitio mal concebido.
Não somos desmancha-prazeres
nem é da nossa lavra
a contradição condenada a ser um logro.
Não escondemos sob o tapete
as más cores que embaciam
o estado das coisas.
Somos
apenas
seus legítimos artesãos
sem esconder
as reentrâncias da contrafação.
Consulta de saldo
sobre o tempo sobrante
em crédito à conta da vida.
O empenho menor
atraiçoa o sangue murmurado
arrefece os dedos
o étimo da capitulação.
Não se sabe
ninguém sabe
a que úbere se dá a vida a beber
pois de sortilégios vários
cumpre-se
a função mínima.
O recibo da consulta de saldo
dança um número.
Se fossem varandas expandidas sobre o céu
diria palavras inestimáveis,
incomensuráveis,
esse número em forma de aval.
Seria um salvo-conduto
quase
uma garantia vinculativa
amarrada a um cumprimento escrupuloso
sem pretextos como enredo
ou salvaguardas cimentadas em imprevisíveis.
Se fosse assim,
que não é.
A transgressão da garantia
começa na ausência de entidade reguladora:
ainda bem
que não há
uma ASAE
para as vidas.
A cada luar sentado no telhado
uma quimera que entra na fala
e compõe os oráculos sem destino.
A cada fado tresmalhado
uma centelha que não se cala
e anima o vento clandestino.
A cada erro sem ser combinado
a carne arrematada pela dura bala
e um espelho com rosto prístino.
Num pregão dissimulado
a pregoeira lamentava
a sorte maldita.
Ao menos
alguém houvesse
em pose burocrática
a lembrar
que uma sorte maldita
é um oximoro:
se é maldita
entra nos pertences da contrariedade
ou se é sorte sem espinhas
tem de levar na sela
um adjetivo conforme.
Serve de afeição
a cordilheira entrançada
os folhos revirados como se fossem
as entranhas viradas do avesso
que é onde se atesta
a têmpera de que versam as entrelinhas.
No bojo que desalinha do modo
a cordilheira contém
as rugas da palma da mão
fica à mercê desta cartografia
desligada de tudo
frágil
tão frágil que nem parece
o sinaleiro do dicionário sem autoria.
À vista desarmada
limitada pela miopia da distância
dir-se-ia da cordilheira
ser uma cortina de ilusões
o logradouro
onde se entretêm os falsos letrados.
Não é dessas cordilheiras
que se compõe a minha carne combustível:
os veios que rompem como arestas
balbuciam as dores excruciantes
como
as que mortificam
misantropos voluntários.
Os maus são uma minoria
– era da lavra de um espelho
onde se abastavam as desmedidas
e ninguém rimava com ilusão.
Os maus são a minoria
– sempre que os ventos
mugiam os tetos plúmbeos
e só os desatentos fugiam do Éden.
Os maus, minoria
– que uma centelha refulgente
em seu ocaso improvável
devolve os férteis frutos às mãos
e os desvalidos perdem a linhagem.
Os maus são uma minoria
– da tença de quem esgota a inverdade
e dela lança a sementeira
que estilhaça lugares-comuns delapidados
para um fogo de artifício ao menos extasiante.
A lagoa
só pode ser um lago pequeno
se o feminino for o santuário
da pequenez.
Se a lagoa
é um lago pequeno
os farroupilhas da nova língua
andam distraídos.
Se a voz sobe à parada
e desfila
como se entoasse
botas cardadas
a vil menção, desonrosa,
de todo o arsenal promitente
dos Homens saber-se-ia a sepultura
onde em estado terminal
se confundem com o selo de garantia
da sua grandeza.
Mas a voz é eunuca
partidária das fragilidades escondidas
um hino lancinante
ao desespero mascarado de afoiteza.
Nos teatros que não interessam
passeiam avinagradas falas
embotadas pelas balas dilacerantes
devolvidas
como vingança inadiável
sobre os beligerantes sem máscara.
Há lágrimas
que não são prantos.
Derramadas pelo céu
são mecenas do outono
(a preferida estação).
Se o primeiro milho é para os pardais
para quem será o segundo
(e o terceiro e o quarto e o quinto e)?