Cautela
à cautela;
não se torne
a sorte
um revés.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
A mentira
na sua intencionalidade
desenha as fronteiras
da desmemória.
[Antevéspera de campanha eleitoral]
Dizer
já não tenho idade
é o passaporte
para interromper o envelhecimento.
O estribo aperta o corpo ao mastro
e não há mar em convulsão
mas de gigantes ondas perfumado pela ira
a demover a vontade rainha.
O esqueleto sabe de cor as curvas das ondas
sobe pelo mastro até se tornar altivo
o desafio insolente à pureza cínica do mar;
não se tolhe
a coragem de marinheiros desta cepa
não desistem da manhã
nem em noites de medonhos pesadelos
boicotam o mar desarrumado
e ordenam
com voz sibilina e estrofes amadurecidas
para o mar se reduzir à serenidade mirífica.
Os navios erram na bússola predestinada
orquestram os sulcos com que colorem o mar
sabendo-se
que neles habitam
as vozes que desistem da angústia
as vozes que não se esgotam na saliva rarefeita.
São os bancos graníticos que sobem
quando as ondas se desfazem
num punhado de espuma
quando se descobre que não há orquídeas;
são as vozes desistentes dos embarcadiços
que não escondem os arsenais sem recursos
as vozes
que desenham os parapeitos
que ajudam os corpos a serem preces
enquanto lá fora
sob os auspícios de uma tempestade armadilhada
os corpos precoces são despedaçados,
pela centelha que se traduz
em dicionário fora de curso,
por estilhaços.
A página doze
às dezasseis e vinte e quatro minutos
as suas trezentas e quinze palavras
demoraram dois minutos e quarenta segundos
a ler.
A página treze
às dezasseis horas e quase vinte e sete minutos
as suas cento e oitenta e sete palavras
(é o fim do ensaio
sobre a mecânica das vias ferroviárias)
demoraram um minuto e cinquenta e oito segundos
a ler.
A página sem rosto
a página sem número
que se ateiam no vazio
à espera de ficarem grávidas
do precipício;
à espera
que a deslocação do vento
tenha tinta suficiente
para escrever a página catorze
e a quinze e a dezasseis
e a dezassete
e assim sucessivamente.
Dei-te o nome da manhã.
Dei-te a pele em combustão
para seres a candeia
que me resgatou da hibernação.
Os vulcões desenhados
na carne desembaraçada
desmatavam o medo.
Não queríamos fronteiras.
Deixamos em legado
o nome da manhã.
Feito com as estrofes
que depusemos
a mãos juntas.
Não ficou para trás
o comboio impertérrito
a cavalgar
nas lombadas prístinas
de estrofes frescamente matinais.
Um repente
um estatuário sismo
por dentro dos ossos gémeos
sem que haja estandarte por levantar
sem memória que seja para avivar
ou hino para falar:
uma encenação
ou farsa esculpida no barro comum
essa historieta vã
uns olímpicos sebastiões
doutores em saudades do avesso
empunhando archotes
que hibernam o presente
e devolvem trevas irremediáveis.
Nadam
para dentro de um tsunami
no logro participado de uma ilusão fátua
e todos os papelinhos estilhaçados
em fila desordenada
fazendo a vez de confettis
armadilhando o chão suado.
O pensamento faz barulho
onde o corpo se esconde
quando a matéria anoitece.
O pensamento faz barulho
onde se encontra com o silêncio
quando as mãos estrénuas
esconjuram as vozes fraquejadas.
Quando
esquartejada a angústia
em finas camadas de frio
amanhecem as luas antigas
sobre o pano desarrumado dos sonhos.
A bucólica boca bebe de um trago
toda a baba dos pesadelos arqueados.
Tece os socalcos que descem
até sobrarem os silêncio ungidos
por deuses demissionários.
Mas o pensamento
continua a fazer barulho
até onde é ermo o lugar.
E esse
é todo o património
da humanidade.
Primeiro,
ministro.
Segundo,
vítima.
[Como reabilitar uma carreira política em meia dúzia de páginas]
O mundo anda estranhamente modesto:
tem os Países Baixos
mas faltam
os países altos.
Os corpos esbracejam
multidões ansiosas por um aval
os seus abusivos xailes cobrem o silêncio.
Não há quem desmate a floresta sem luar
não há ninguém no arrumado altar das fugas
e os bardos já não têm repertório
vencendo, enfim,
o silêncio.
Os cálices maduros sobem às bocas.
Desaprenderam a nostalgia
e agora
saciados
compõem as fragas por se despenha o medo.
Sem céu por abrir ao luar
sobra a meada de neve
o longo apeadeiro onde se consomem as almas
no vindouro espelho que espartilha o passado.
O ontem
deixou uma amálgama retorcida
nomes e lugares e rostos e casas
embaraços tenentes da matéria puída
toda uma constelação de lúgubres lugares
à espera de lugar
na sepultura.
À gramática do Outono:
as folhas desmaiam
juram que voltam a ser vulcões.
Deixam nuas as árvores
remexidas pelo Inverno impetuoso.
Não há nada mais inteligente
do que o Outono.
Mando no precipício:
não são os avestruzes vetustos,
os cicerones dos campos minados,
deduzem
que serão maltrapilhas as cabeças
assim encestadas na toca
onde desamanhece o lobo censitário.
Se por precipício se entender
a mando de uma metáfora
acendem-se as sirenes
cimentando o sonoro protesto
tirado à prova dos nove entretanto.
Se forem contumazes
os boémios adestrados
seja dada corda à cantilena arcaica
montadas as memórias altivas
o autêntico sublinhado da melancolia.
Não é por erro
a carta da melancolia que sobe à mesa:
podiam os desalentados do presente
abrilhantar a nostalgia
tudo o que conseguiram
foi três pétalas de melancolia
no sopé do precipício
que tinha ares de miradouro.
As mãos
tocam a carne suada,
levam à boca
a alvorada
que torna o dia opulento.
Na coreografia sem roteiro,
os corpos ensaiam o auge.
Agarram-se
aos dedos máximos
que devolvem
a claridade anestesiada.
Se as paredes soubessem,
eram poetas.
Se o fundo for o magma
e as fruteiras colhem a madurez
os rostos cerrados proveem o adiamento
e do luar apeado não houver regime
as jornadas serão curadorias das bocas sedentas
o calendário previsível
ou apenas o vinho rasteiro ante dois dedos
de conversa.
A iluminação
dos combustíveis fósseis
– parece mesmo que disse
a repórter na televisão.
Sem o cimento
as varandas são precipícios
sem ninguém que se sirva do arnês
o medo anónimo subindo pelo gelo
os casacos remediados que não chegam.
Sem as mãos atrevidas
as cordilheiras são miragens
chamam os sentinelas a jogo
sobre o sabre que cauteriza as veias.
Desfeito o caudal desprevenido
atropela os sóbrios mascotes dos costumes
perdido entre a incógnita do medo
e a indigência dos procuradores da angústia.
Não posso dar os sentimentos
não quero deles ficar privado.
Não sei se é pretexto
para pesarem tanto as elegias
ou apenas o medo da morte
o algoz injusto
feitor de vidas sempre breves
tradutor do efémero malquisto.
Os cangalheiros autoimpostos
que se entreguem
ao embalsamento a destempo
para que não sobrem nódoas
sobre a pele difamada
dos ainda vivos.
Reflexão crítica:
ao que é dado a testemunhar
das desandanças das vidas
por este andar
ainda convencem
que a morte é o menor dos custos.
Enchem-se ruas e bancadas
compram-se confettis
assobiam os foguetes
traduzem-se elogios:
vem aí a dinastia
sirenes estridentes
a precederem-na
espadaúdos espécimes
para a ordem garantirem
plumitivos histriónicos
de microfone em riste
o povo arrebanhado
em edital vocal
fatos cinzentos
discretamente exuberantes
(chiu: são dos serviços secretos
não contes o segredo)
e finalmente
a dinastia regular
do mexicanizado regime
um regime sem dieta
gordo e gordo e gordo
para prebendas distribuir
por um séquito
que alimenta
outro séquito
e mais sequitozinhos
até não sobrar vivalma
à mesa do orçamento
no banquete onde a dinastia
arrota um divino direito.
Não somos as sombras onde se escondem os escombros. Somos a lucidez, a manhã clara sem medo da chuva, a lava de onde procedem as quimeras. Somos a estatura inteira que mede o aniversário do futuro. Não somos destroços numa mordaça a vontade. Somos a maré alta de onde temos atalaia no sangue indomável. A desinquietação com dedos mágicos por cima, uma feitoria sem embaixadores de medo, nós, o peito pleno em vez de bandeiras, o hino desconhecido dos outros, nós.
É desta extorsão de mim
que arrebato
o crepúsculo haurido.
As mãos suadas extraem da terra
os sorrisos propedêuticos
as limalhas atiradas ao acaso
contra os olhos ilhéus
dos operários.
O que dizer
destes dias circenses
em que muitos se disfarçam deles próprios
fingindo
que se orquestram na finitude sem regaço?
Ah!
o estipêndio joga-se em tabuleiros luxuosos
e são mãos sem rosto
que esfregam dedos extasiados
e esperam
com a ilusão dos desenganados
que seja sua a sorte vez
eles que nem sabem
do princípio geral da corrupção.
Os bichos remoem-se
indiferentes
numa gesta improvável
no cesto onde se guardam as frutas
no berço onde gastas se aprendem palavras
contra o fundo poço onde se escondem silêncios.
A combustão sobe a palco
altiva
pergunta quem quer um tumulto de graça
não sem desaprender a graça avinagrada
o sempre distante braço de ferro
que se indispõe
contra abastados fornecedores de esperanças.
Prossigo a pauta dos dias
eu que continuo a não saber ler música
e persigo vultos que seguem de rastos
como se lambessem a lama
e depois a bolçassem sobre os distraídos.
Prossigo
que as demandas se consultam na escuridão
intérpretes da alergia à simpatia gasta
antes preferindo cozinhar as sumptuosas farsas
sozinho no epicentro da periferia
roendo as unhas vestidas de cal
dizendo em apenas murmúrios
um dó-ré-mi apalavrado
no sofá dos aristocratas.
E se em sonhos me dissolvi
foi porque me esqueci de dormir
escondido na vela hirsuta de um velho veleiro
em mares de nomes que não sei
empunhando o sabre apodrecido
como convém
a um apátrida de guerras
magnificamente condoído na estatura meã
de tudo à volta.