As forças vivas da cidade
eram aquelas
que não tinham o cemitério
como residência.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
As forças vivas da cidade
eram aquelas
que não tinham o cemitério
como residência.
É quando apetece
recuar à meninice
só para sentir
por fingido que fosse
que o mundo
lá fora
se cinge
às imediações
de mim mesmo.
Por cada lampejo de vaidade
a inflação dos seres acompanhava
os estouvados.
As mãos escorregavam no abismo
e as sílabas voavam mais depressa
que a fala.
Antes que fosse noite
folheava as páginas da véspera
à procura de perguntas.
Por muito que suspeitasse
a reparação da pele
antecipava-se à mentira.
Este era um lugar hospitaleiro
um feixe de portas abertas
à prova de espantalhos.
Se as almas tivessem asas
eram de toda a parte
ao acaso.
Está tudo pela hora da morte.
E qual é a hora
a que a morte se faz anunciar?
As rugas
desenham a assimetria do tempo.
São como cicatrizes dos sismos havidos
fraturas dantes expostas
traduzidas para tatuagens salientes.
As rugas
não falam pelo tempo pretérito
só falam no presente cheio de melancolia;
ou então
no terrível desamparo do tempo urgente:
nem sequer há tempo
para o olhar se deter no espelho
e cortejar as rugas que não escondem
a antiguidade.
As rugas
emprestam um consolo subvencionado
admitem no portal do tempo
a sua usura com os corpos.
Não é por conta de milagres
que são adiadas na nomenclatura
da idade.
São como catedrais:
credoras de estatuto
no cansaço do corpo compensado
pela lucidez montada na sela da quietude.
Alvíssaras
das boas
daquelas com o baixo patrocínio
de uma alta patente
ilegível
com o beneplácito dos que usam cabeção
– nunca se desprezem as cabeças à solta
e o erário privado
e as desengonçadas danças
de imprevidentes aprendentes.
Que sejam roídas as unhas
mas sem ser de inveja:
antes
um opúsculo impecavelmente encadernado
do que um vinho do Porto de olhos em bico
(se me é consentida
a expressão talvez levemente racista,
mas em todo o caso
protetora da DOP respetiva
– costelas durienses noblesse oblige).
Antes
a chave perdida
ou a fechadura por abrir
um druida ancião
na posse de segredos de Estado
do outro putativo,
sósia do seu tutor em fala e raciocínio,
aspirante a nivelar por baixo
ou um mediador de seguros
desamado até por filisteus correligionários.
Os que estiverem virados para esta moda
montem-se em tamancos:
muita será a água metida
sem submarinos por perto
um bibe para aparar a baba
ou uma cautela para amparar desditas.
Antes o simulacro
de uma Torre Eiffel
“tipo”.
Um t comprido
estiolado no entardecer
com as sílabas encostadas
e o vinho fresco a calar a boca.
Estou empenhado
e isso é bom:
sou engenheiro e operário
ao mesmo tempo.
Estou empenhado
e isso é mau:
já só sobram os dedos.
Que iguaria
serão as botas
para haver quem se dedique
a lambê-las com deleite.
Não havia tempo
para todas as personalidades interiores
se as batinas adejavam
com o seu ar inquisitivo
como se lhes devemos a pira da vida.
A tempo do tempo maldito
acostumavam-se as diferentes personalidades
em socalcos com lugar marcado
à espera do entardecer
agarrados ao vinho possível.
Diziam:
os mártires são como mercados fantasmas
com uma correspondência gramatical
a aliviar a consciência condenada a provações.
Com o aval das feiticeiras sem rosto
apanhei o céu com as mãos inteiras
e guardei-o junto ao peito.
Não haveria de precisar do céu
outra vez
para ler os estados animados
e rejeitar as farsas animosas.
Sem saber o que saber
atirei os dados ao seu sortilégio.
não sei se sairia um amanhã
ou a repetição de passados
intermináveis;
se seria amnistiado por um fado elevado
ou por uma estrada inclinada e sinuosa;
se haveria de vir à fala
ou ficaria aprisionado ao silêncio;
se seria eu a varrer as cinzas de antanho
ou a admirar o poente ao entardecer;
ainda hoje
já não sei quantas luas depois
ainda estou à espera
de saber pelo saber
o que o saber tem
para eu aprender.
Mando-me às mangas arregaçadas
destapo o mapa sísmico
onde a força se admite
ganho o corpo de ametista
e deixo em legado um léxico frutado
no promontório por onde entram as marés.
Cuido dos sentidos
na procuração da luz clara
contando os dias na aritmética nua.
Às vezes tusso para fingir o medo
ou para fugir dos fretes avezados na rotina
para depois escolher o exílio
e de mim esconder o espectro assanhado.
Outras vezes
só me apetece não saber dos dias
beber do vinho fecundo que atrasa o tempo
e deixar por conta das folhas caducas
o remoço que ascende da corrente funda
que pertence ao caudal intransigente.
Mil os sóis que se põem
outros tantos são os alvores
prometidos.
Os olhos embebidos no sono
a jura da madrugada
e de trespasso
os sonhos atiram-se
para dentro de outras vidas
verticalmente assíduas.
Mil os sóis que se põem
sem nunca serem ocaso total:
lugares de outras latitudes
acendem o sol
enquanto noutro a noite triunfa.
Os sóis têm de ser mil
eles que nunca têm o sono por atalaia.
Corre à meta sem pressa
a miríade de lugares
espera o olhar demorado
uma estrofe amadora
um par de fotografias
a emoldurar o tempo dedicado.
Estende a mão indulgente
ele são tantos os errantes
e podem aprender
com os transvios que frequentaste.
Adormece no lado errado da lua
não tropeces no engodo da perfeição
que exaustivas são
as juras aos palcos livres de rasuras.
Aproveita
a demora do tempo
não te hipoteques a resoluções
nem te intimides pelas que falhaste
para isso o tempo
é uma medida curta.
Um cânone a mais,
que pretendem como esteio
que não há excesso
quando se fala de cânones.
O maçarico irrompe
subversivo:
anuncia sem ardis
ao que vem:
cânones há
que têm de ser sabotados
e a excessiva existência deles
fará com que ao ato beligerante
seja ao acaso.
No final
quando o desembaraço da pendência
for constituído
se dirá
o que sobra da civilização.
Anoitece o ramo frágil que amadurece no dia.
A valsa sem diuturnidades cobra um estipêndio
não é de lama que se eviscera um nome
no provérbio de causas alinhadas com as árvores.
Diziam:
não te deixes retalhar pelos arneses cómodos
não sejas aquele que diz a última palavra
não aninhes a cabeça no pomar onde cantam
suseranos impecavelmente cativos de ninharias.
O que não diziam
era como atingir com os dedos
o sumptuoso tesouro apalavrado nas intenções
onde procurar a escotilha desembaciada
o que fazer com toda esta fortuna
que não cabe dentro de números
a solene didascália que perfuma dias militantes
entre camadas de nevoeiro outonal
e as bocas que bolçam liberdade.
O entardecer
transigindo na sardónica solidão
emudecia o sol;
a noite
é sempre uma pátria sem certezas
o lugar desabitado que suplica os sonhos
a tabela de marés perfumada por jasmim
a voz cavernosa do comandante
quando põe os homens em sentido
e os malditos desumorados
que fogem do destino
como eu fujo
de canja.
Está é a minha sindicância
o plateau debruado a purpurinas de nada
a voz miada pelo canto dos olhos
o dissabor escondido em pepel de alumínio
ou uma task-force cheia de testas-de-ferro
gente de impecáveis pergaminhos
e de prosa laudatória e gongórica
num mútuo onanismo que requenta o nanismo.
Os dardos apontados a eles,
companheiros atirados para o lugar dos párias,
apontados sem piedade,
que como eles
detestaríamos ser.
O sismo fende as veias
no grito sancionado
que arruma o medo
em plásticas cores mudas.
Tolhe os músculos
convocando o magma fundo
sem deixar sem freio
a boca destemida.
Se admite vozes malsãs
em vez de concórdia banal
procura os sons dissidentes
como mnemónica da noite selada.
Entregue à sonoplastia cirúrgica
em marés iconoclastas
grutas sem claridade entreaberta
e escadas à prova de corrimão.
Os violinos não desdenham
paradas de multidões em silêncio
são eles os feitores dos sons
sobrepostos aos emudecidos corpos.