16.3.16

#10

Às vezes digo:
oxalá
os ponteiros do relógio
fossem âncoras no tempo.


Trabalhos forçados

Não regateies encómios
nem perturbes as celebrações
dos génios avulsos
 – esses vultos singulares.
Em modo de músicos de taberna
ou de escritores de convento
puxam lustro aos campanários
de onde exalam suas
(putativas)
obras-primas.
Aplauso.
(Substantivo, não o verbo)
Roem-se de inveja alcoviteiras mendazes
pretendiam tanta fama;
por mais que sejam condenadas
a trabalhos forçados,
por mais que tragam a transpiração toda
em forma de musa,
por mais que percam o sono
julgando encontrar eloquência,
por mais que fatiem o dolo em pedaços,
as mendazes alcoviteiras não passam
da cepa torta.
O mais que conseguem
é invejar.
E eu,
do lado de fora,
em friso lateral e muito confortável,
deixo um esgar de regozijo
uma fulgurante gargalhada de gozo
– o gozo maior
de celebrar a tremenda imagem de uns
e os fígados algozes dos outros:
uma luta de titãs enfarpelados no nada.
E remato, dizendo:
deixem um lugar à desarte
para melhor lugar ocupar a arte que importa;
e deixem um lugar à inveja dos que invejam,
celebração capaz da sua pequenez
(coisa única em que conseguem ser imensos).


15.3.16

Árido

O perfume adulterado das roseiras
insinua-se nos poros abertos pelo suor.
Não fossem os espinhos carnudos
e as rosas seriam testemunho de uma divindade,
talvez
(talvez: a divindade).
Corro com as pernas exauridas
à altura da cratera do vulcão.
Na cumeada,
mesmo onde o precipício faz limite,
não há roseiras
e o odor está cingido à fedentina do enxofre
que vem das entranhas do vulcão.
À falta de flores
contento-me com o lugar altaneiro
feito promontório de mim
e perfume do meu suor.
Oxalá houvesse mais manhãs destas:
os aromas ferrugentos
a cristalizarem as lágrimas,
as de antanho e as prometidas.

14.3.16

A decadência

As folhas rasteiras
humedecidas pela noite fria
levitam ao primeiro vento matinal.
Sobra nas folhas o néctar deposto
por caídas dos ramos que foram seu regaço.
Ensaiam uma coreografia sem rumo
à medida dos golpes desembainhados
pelo vento.
Perdem-se umas das outras
enquanto o vento cicia seu almanaque tardio.
Hão de ser apenas vestígio
condenadas a matéria morta:
presas ao vidro de um carro
na ante-sola de um sapato
dissolvidas na vertigem do rio.
Condenadas aos dias escuros.
Os dias sem candeeiros possíveis
nem olhos com saber de olhar.

11.3.16

Narciso (e não é flor)

Entretido com o furor da personalidade
despromoveu a chancela beatífica
que aconselhava aos outros.
Mas isso era nos outros
que na sua elevada estatura
tudo ganhava dimensão divina
(e os deuses vogam acima dos beatos,
ao que consta).
Pois ele há gente que se acha divindade:
em calhando a sorte toda
não podia o predicado ausentar-se dele.
Achando-se em tão alta consideração,
o espelho onde a sua pessoa estava vertida
a projetar retrato malsinado,
era como se o mundo circundasse de volta de si.
Não importava que os demais
dele tivessem águas anónimas
nem tinha relevância,
para o caso,
que as leis do universo desmentissem
o falaz espelho por que se conduzia.
Era o maestro das coisas todas
o zeloso arquiteto da harmonia
ícone de uma tribo urbana
patrono do pensamento credor de aplauso
diplomata nos conflitos assentados
sacerdote pagão que domava as almas
ouvido, lido e escutado
a-bun-dan-te-men-te.
Ou
era tudo isto
(e o mais que aprouvesse)
por dentro de si mesmo
à escala de uma grandeza acantonada
na imensa pequenez que calha a cada um.
Dizia,
de fonte segura
(que começava e terminava na sua pessoa):
haveriam de lhe erguer estátua.
Mas só depois de finado.
Nunca soube exceder
a exiguidade de si.

10.3.16

O inofensivo

Diz, rapaz
se tem teor esse cabaz
ou se detrás desse capataz
escondes o que não és capaz.

E diz lá, se tudo te apetece
numa vertigem que entontece
ou se teu dia nem sequer amanhece
e tu és promessa que esquece.

Diz, mas por favor,
se temos de te olhar com estupor
pois não amedronta teu clamor
nem adianta o imaginado fervor.

Diz, que as palavras não te embaciem,
deixa que os estorvos contaminem
as ideias loucas alumiem
e tu preso às luas que terminem.

9.3.16

Sem embargo

Largas as avenidas no meu olhar
destravam beijos escondidos.
Dantes
(quando interessavam os mapas
e a esquadria romba ocupava lugar)
não tinha noção das bainhas da alma.
Não é que hoje tenha;
ao menos,
noto as bissetrizes dos brancos cartazes
que desenganam delusões.
Ao menos,
interiorizei as limitações sem remédio.
Compenso com o vinho antigo
e os paladares que escoiceiam.
Não me chegam os vapores do vinho
nem o cais seguro que se oferece às palavras;
mas
ao menos
já sei não cair nas astúcias
nas auroras boreais que são espelhos vazios
nos lagos sem água onde nadam peixes furtivos
no lugar do deslumbramento que se me acena.

Sei que a escada alta e sem retrocesso
vive paredes-meias com o precipício.
Hoje
coabitando com a terra rija
trago a mim a pele dura que ladeia os embargos.

8.3.16

Sobreposição

As costas das mãos
geram seu centro gravitacional.
Viram-se
procuram a sede que há nelas
e delas pelas outras.
Deitam-se
no entrelaçar quente dos dedos.
Desenham seus desenhos
na tela imaginada diante dos olhos.
Desenham os desenhos
sucedâneos das palavras;
desenham palavras
na impureza das mãos dadas
que criam seu próprio amplexo.

Uma mão procura os poros ávidos
um descampado à procura de lhanura.
As mãos deitadas nas outras
ciciam segredos
sob a luz desmaiada do candeeiro.
Contam histórias sem atores
e dão alimento aos desejos sem freio
e metem-se na terra cheia de chuva
e trazem à tona um coração fulgurante.

Sobrepostas
as mãos
projetam um feixe de luz sobre a cidade.
Deixam no ar um perfume sem igual
enquanto ao pescoço vêm em afagos
em tirocínio do sono.

Sobrepostas
as mãos
árvores-mestras de um encanto
nos dois dedos de conversa qualquer,
olhando pelo fundo da garrafa
na insaciável levitação dos corpos.
Dos corpos que se aquecem
na fogueira das mãos enlaçadas.
E todos os dias
há matéria abundante abraçada pelas mãos
que se reensinam a ser esteios
das paredes caiadas com o suor.

Sobrepostas
as mãos
em síntese dos corpos
e em partição do sangue simultâneo.

As mãos lavadas nas lágrimas.
As mãos incansáveis.
As mãos ternurentas.
As mãos febris.
As mãos noturnas.
As mãos douradas.
As mãos impacientes.
As mãos nuas.
As mãos cheias.

7.3.16

Os palhaços

Parecia uma miragem:
as pessoas todas
em chapéus de palhaço.
Caminhando no fingimento
de quem se julga não palhaço.
Tamanha a rotina
que ninguém disfarçava o chapéu
e ninguém achava o dos outros
risível.
Inspeção mais demorada
desfazeria a miragem:
o fingimento
esteio da convivência
combina com os circenses chapéus.

4.3.16

O templo do tempo

Sentado em cima do tempo
folheio as páginas molhadas
sentidas na boca quente.
Não sei que belvederes possa usar
(não sei que belvederes deva usar):
se os que nunca visitei,
oxalá pudesse saber onde estão;
se os que tenho no bolso da memória,
no risco das repetidas evocações
gorarem a aspiração.
Talvez não sirva remoer o avoengo.
Sinto-me
sentado em cima do tempo
e, num lumaréu que passa diante dos olhos,
admito que sou tutor do tempo.
Do tempo que importa.
Em estando sentado em cima do tempo
desmerecem-se os belvederes
e a afonia do avoengo é caução esperada:
sentando em cima do tempo
tiro as medidas do vigente
– o tempo que sinto aquecer as mãos
o tempo fugaz que se emoldura no instante.
Pois todo o lume que incensa o corpo
é vertido por instantes.