13.6.16

A casa sem telhado

Segue-se ao cais amarelecido
onde vêm receber amparo
os navios fantasmas.
Do cais tem-se a vista da casa sem telhado
– a casa centrípeta que empresta o luar à cidade.
Dizem que tem habitantes.
Dizem que lá dentro
a chuva não molha o chão.
Dizem as lendas todas que a imaginação
concebe.
A casa sem telhado respira as heras
que trepam às paredes encardidas
enquanto a luz diurna se insinua
entre os seus cantos bolorentos.
Dizem:
que os fantasmas se apoderaram
da casa destelhada.
E que são eles que teimam
em deixar nua de telhas a casa moribunda.
No refluxo do vento
entre dois murmúrios de andorinhas assustadas
a casa sem telhado emproa-se
desde o seu lugar miradouro.
Dizem:
que ninguém tem coragem
para lhe consertar telhado
ou para a encomendar ao túmulo do entulho.
Um impasse,
é o que é.

9.6.16

Ilhas futuras

Reivindicação salubre:
tirar os olhos do pretérito imperfeito
quando os mares eram violeta
e o peixe residente vinha cardado
em veneno.
Um maestro a preceito
desengonçado, porém,
tira da batuta as pétalas perfumadas
que batizam as ilhas futuras.
Não há neófitos sacerdotes que deitem
óleos ungidos sobre o tapete do tempo;
não há vis apoderados do poder
que ditem frases para as atas vindouras
nem meãs personagens,
entretidas com frivolidades,
cantando árias desafinadas.
Há as ilhas futuras
divindades, talvez,
operando entre os arbustos secos
autênticas maresias metediças.
E então
com os olhos postos no vento comandante
as ilhas futuras destapam-se
entre o brilho de um sol intenso.
Mostrando-se espelhos cristalinos
onde os grãos da autenticidade
encontram sementeira.

8.6.16

#33

Provavelmente
as suturas abertas
voltam à rotunda das águas
onde se vendem cicatrizes
a preço de saldo.

7.6.16

Curto circuito

Atirar os dados
com o sortilégio de uma lua branca
e corromper o corpo com o sal da noite.
Alavancas atiladas por flores campestres
destravam os contrapesos alinhados;
o marfim entre os dedos
dita a riqueza dos dias destes
sem embaraços a diluir o firmamento
nem desabamentos em forma
de curto-circuitos.
Agarramos a madurez dos frutos
e somos passageiros do vento feiticeiro.

6.6.16

O fim do carnaval

O fim do carnaval
é a boémia embebida em contrição.
O fim do carnaval
(para o não boémio)
é esperar que as máscaras se tercem
na terça-feira final.

5.6.16

#32


A enseada
por onde o mundo inteiro
se inunda
e a janela se dispõe
a navios nunca dantes vistos.

3.6.16

Do monte mais alto

Morde os cantos da terra
a simetria da lua ferrada
enquanto trepas ao trono desembaraçado
e emudeces a pele macilenta
desde o templo das sombras.
Foge célere dos embaciamentos atapetados
dos curandeiros das almas
dos mastins desençaimados que ostentam
arrogância
(julgando-a saber)
das capas densas escondendo
os vultos aguados.
E espera.
Espera sem dar o flanco à impaciência.
No dealbar do tempo
destronas a podridão dos outros,
a podridão em que insistem medrar.

2.6.16

#31


Montada numa estrela,
a menina celeste
só aspirou a estrela cadente.

1.6.16

Maré cheia

Num tripé em vez da noite
de atalaia às sombras que invadem
a madrugada.
Os gritos ao longe
sussurram pungentes ocasos
reparando injustiças de outrora.
Não sei a que braços
me hei de ater:
se aos braços cansados e vigilantes
se aos braços desocupados
que passam as palavras a pente-fino
e passam a palavra a quem passa.
Talvez pergunte ao gato escondido
talvez faça levar a inquirição
a um mendigo doutoral
talvez pergunte à lua que espreita
entre duas nuvens.
Mas
se a noite traduzir uma pele enrugada
enquanto mastros vistosos sulcam o mar
talvez
traga a meus braços a sede do saber
um beijo no rosto frio e adormecido
as paredes sujas do quarto mais longe
as uvas brancas quase podres.
Seja num promontório
onde escuto o silvar do vento do norte
ou no tripé
que aguenta os olhos estremunhados
pela maresia.

31.5.16

Desutilidade

Para memória futura:
já alguém sondou
a serventia das coisas que julgamos úteis?
Já alguém deu dois passos atrás
e inquiriu o pensamento
sobre as utilidades a que se emprestam
coisas e ideias e pensamentos e paisagens?
Já alguém depôs
neste tribunal sem juiz
para apurar os interstícios da utilidade?

E
se alguém já empreendeu tamanha tarefa
sentenciou a desutilidade de coisa alguma?
E
em caso afirmativo
ficou refém da angústia
ao saber-se penhor de uma desutilidade?

É que o tempo passado
na almofada indistinta da desutilidade
pode ser abrasivo
pode ser motivo para rescisão da lucidez,
para encostar à parede as ideias fátuas
e pô-las sob a pontaria afinada
de um pelotão de fuzilamento,
às arrecuas.

Desenganem-se os angustiados
com a terrível sentença de que foram escrivães:
ao aferir a desutilidade
somos fiadores de uma utilidade maior
escrevemos com letras graúdas
um devir transfigurado
que congraça utilidades novas.

Nem sempre uma negação é uma negação:
há vezes em que uma negação
desembaraça caminho
para a construção maior.

30.5.16

Lembrete

Das ervas daninhas
perseverando em lugares ermos;
das fontes de água forte
onde se lavam as lágrimas;
dos orvalhos outonais
quando a alvorada era temporã:
dos êmbolos matraqueados
num murmúrio poluente e atulhado;
das lojas de especiarias
no bazar ululante e vagaroso;
das rimas forjadas
nos dedos trémulos que tocam uma tela baça;
da graça em que caíra
antes do jogo virado do avesso;
de uma estrada estreita
sulcando o desfiladeiro cavernoso;
das promessas infundadas
tirando o siso à sua formulação;
das proezas (ou do que assim tiver achamento)
em movimento ondulante de nostalgia;
de um epitáfio encomendado
a um juiz sem rosto;
das intenções alteradas
entre dois dedos de conversa propedêutica;
de uma reparação geral
às mãos de um tutor dessas coisas;
do olvido das coisas malsãs
mercê da recapitulação da alma;
de um panteão das nulidades
onde sobram ossadas emudecidas;
de um chapéu à maneira dos antigos
que não hei de usar.
De tudo isto
hei de possuir um lembrete
com a serventia do oblívio.
Para anotar num caderno a preceito
os passos perdidos
da desmemória.

#30

Preparar a escopeta
(a escopeta dos argumentos)
que lunáticos desvairados
esperam pela desatenção do sono.

29.5.16

Rostos

Rostos
rostos à minha volta
rostos por todo o lado
transpirando rugas
entoando melancolia
disfarçando maldade
rindo nas vetustas rodas da vida
rostos
dançando no bolor das estrelas
compondo estrofes contrafeitas
mostrando desdém pelos estranhos
rostos cultivando as mesmas amarras
que os estranhos fabricam
ao saberem estranho o meu
rosto.

27.5.16

Teoria da conspiração

Diria ter um Rubicão para derrotar
ao dar abrigo no regaço
aos trovões que vieram
com a tempestade tardia.

Estava enganado.

Não eram trovões
nem era tempestade
nem sequer entardecia.
No meu regaço
o ar vidrado a espelhar
as minhas roupas
e pouco mais.
O Rubicão é um começo de conversa
a ter no palco molhado
onde sereias impossíveis de ver
deitaram o musgo transparente.

E pouco mais:
a febre vertida no céu
aproveita aos espontâneos adoradores
de conspirações.

E pouco mais.

26.5.16

Ordem de trabalhos

Seremos todos velhos
quando esta história terminar.
Libertados dos logros e das farsas
teremos entre mãos a leveza
de uma presciência clara.
E seremos outra vez
novos
como se regressássemos
à nascença.

25.5.16

Postal autoilustrado

Dos penedos estrepitosos
deitados ao acaso na encosta
recolhi fragmentos
(também ao acaso)
para aprender os rudimentos da firmeza.
Das graníticas rochas
(maiores do que casas)
em equilíbrio precário
trouxe um manual de intenções.
Soube
pelos contrafortes da serrania
bons serem os modos dos pragmáticos
(desmentindo pueris enunciados dos líricos)
e paradoxalmente estáveis
os precários equilíbrios.
Pois tudo se resume
às coisas na sua antítese.

24.5.16

Vertigo

Oh! ideias frescas
limpas serenidades da mente
que acalmam as nuvens sobressaltadas.

Oh! corpos terrestres
vindicando o prazer duradouro
em danças lunares que depõem a noite.

Oh! lanças dardejadas
em torrentes luxuriantes
por dádivas orquestradas no palco vidente.

Oh! perfumes vadios
em corpos trespassados de suor
no abrasear dos amantes em seu reduto.

Oh! um relógio parado
no êxtase dos segundos demorados
enquanto as janelas se deitam ao vento.

Oh! as palavras encantatórias
dedicadas aos murmúrios que transluzem
na luz feérica das manhãs sem sono.

Oh! um punhal tomado
entre mãos trémulas em ávidos prazeres
num contrato que dispensa assinaturas.

E, oh! um amanhã radioso
entre serenatas sem música
poemas sem rima
beijos incandescentes
sexo forte
mãos sem embaraços
peito ouvido à boca de cena
rosas aromáticas em forma de cama
braço que serve de regaço.

E uma janela aberta:
testemunha de um amplexo
na chama viva que acendemos
com o peito.

Leviatão

A parede sem rosto
esconde os segredos pátrios.
Argonautas com rosto
esbulham os bolsos rasurados
em nome do património comum
(dizem).
Males de estirpe semelhante
corroem as veias já incineradas
num movimento que de efémero
é desprovido.
A usura em forma de lei
com a caução dos bons costumes
e das lições de lentes
é o baraço que vagarosamente cerceia o ar.
Depondo a vontade
no sargaço podre
que restolha à beira-mar.

23.5.16

Terra nova

Mexo no xisto negro
o sal do chão à volta
e sinto as raízes da terra
a subirem pelos dedos.

O xisto lascado
(há quem lhe chame o chão cicatrizado)
denota a crueza da terra
como os dedos ásperos dos aldeões.

Nas voltas das terras alcantiladas
o sortilégio de uma paisagem
em povoamento sem ordem
libertando a terra das feridas fátuas.

No acampamento dos sonhos
(onde a tela branca aceita apostas altas)
os vinhedos em cama de xisto
habitam o sono.

Como se no xisto tivesse berço
mal sabendo que o berço algures
foi-se de empréstimo às terras duras
cicatrizadas pela paisagem pétrea.

E o xisto pesado, plúmbeo
arranca do corpo
cicatrizes féleas
prometendo um oxalá jamais dito.