17.8.16

O vulcão sem pavio

Sentado num vulcão
o sono dormente da lava promitente
estremece as bainhas mais fundas,
levita o sol tenente a um outro céu.
A terra fervente sob o corpo
será feitiço indomável?
Desafeição estulta a que não consigo
meter freio?
Os vapores irrompem em todos os poros
desde a varanda mortiça
de onde se ufanam as telhas medíocres
em circunspectas preces.
E o vulcão em que me sento
morde as entranhas ensanguentadas
vocifera trovões irascíveis
– não é dado a saber
que consumições o apartam da letargia.
E sei que tremem os esteios meus
como se um furacão sem precedentes
me tirasse o avesso do sítio.
Modificam-se os humores dos deuses
que tutelam o vulcão.
Subitamente,
ainda aprisionado
pela avidez do sobressalto continuo,
o vulcão mandou dizer
que se entregava à hibernação.
E eu
sentado (ainda) no vulcão adormecido
jurei que teria em enxoval
as artes suficientes para enxugar
os transvias
(de outrora e os que houverem de ser).

16.8.16

O louco provavelmente disfarçado

O louco tropeça nas ruas
vociferando ininteligíveis palavras
assusta as pessoas amistosas.
O louco
andrajoso e com os olhos iracundos
barba farta, imunda e hirsuta
cruza a praça das esplanadas
e desata num berreiro lunático.
Ninguém percebe a vociferação.
Depressa
não há vivalma que lhe dê importância
deixando o louco só e amparado no cruzeiro.
Numa inteligência obliterada
o louco
levou a água ao seu moinho.

15.8.16

#54

Na resistência do luar
limpos os olhos marejados;
os braços aconchegam-se
selam as costuras dos tempos. 

Roda dentada

Sobre o xisto como cama
a cisma debate-se
no lúgubre lugar das dúvidas.
E nem todo o petróleo que jorrasse
deitando os imperativos por fora
seria transcendência venal
em jogo de espadas.
Porventura
um fado obscuro destituía
a ventura projetada em cabais sinecuras
com propósitos recomendáveis.
Os números pares eram arestas vivas,
crucifixos selando pungência
na carne aberta;
dor mais pungente
seria a devolução a um ímpar número.
Os joelhos magoados
diziam de cor as ruas por onde ir.
Um comboio veloz descompunha o vento
e os arbustos mirrados sua farta vegetação
bolçando a pressa
com que se consome o tempo.
Mas a casa cheia
não quer apressados compassos
não quer pressentimentos 
que aprisionam a candura
não quer o indócil gorjeio de palavras 
desafeição.
A casa cheia
– por cheia ser
para cheia estar –
repõe na vizinhança do nada
os ossos suados que calcinam 
os esgares poluídos
as obnóxias fadas-madrinhas
que, afinal,
são o oráculo de madrastas
com a mesma lente comezinha
que trava os feitos que ficam em memória.
A música passa devagar,
arrasta-se no faminto céu da boca
emprestando os ingredientes sóbrios
à primavera que não destoa.
Não importa que o xisto seja leito.
Não importa que seja pétreo,
desconfortável,
bilhete transacionando um castigo
ou um tapete cheio de espinhos
ou uma escada anã povoada por deuses despidos:
no xisto rugoso
terei meu olhar em proteção
contra as ardilosas cauções
que deixam ver no retrovisor
o olhar faminto dos mastins disfarçados.

14.8.16

Sem cortinas

Alcanço o equinócio
enquanto a clepsidra se esvazia
ajudada pelos cantos insondáveis
de vozes sitiadas.
Julgo os temores matéria imprópria:
se são à noite
e à noite voga em mim a indiferença
não fazem diferença os pesares
dos viúvos de alma retorcida
que lavam as lágrimas na desdita dos outros.
As contrafações de antanho
foram levadas pelo caudal do rio.
Agora
o peito abraçado às pedras preciosas
rituais erráticos
varandas equidistantes da alma polida
e os relógios todos metidos no contrapeso
que é o presente que pressente o amanhã.
Desviado das ruas ardilosas
das pessoas que coalham o sol propedêutico
de um leve bater de asas artificioso,
componho um tratamento de ideias
e meto-o em garrafa gasta.
As correntes do mar cuidarão
de lhe encontrar cais a preceito
num equinócio restituído às campânulas
que esbracejam
o troar da íntegra imagem interior.

13.8.16

Poder

Podemos voar
visitar as nuvens acetinadas
tornar grandes os pequenos pedaços de desejo.

Podemos gritar ao vento
desalojar a penumbra que sobra
fazer os azimutes com as mãos ungidas de mel.

Podemos um trono congraçar
debater os lados excelsos das artes
abrir as janelas todas
e tomar nos braços o céu amendoado.

Podemos tudo poder
no poder aninhado em nossos regaços
juntos
em podendo o poder ter cais
na vontade que desalinhamos.

Podemos,
o que for seio da vontade poderosa.

12.8.16

#53

Tatuado o dorso com tinta
arrancada das veias
adejava a incerteza
sobre os imorredoiros efeitos
do desenho mordido em noite de olvido. 

Eldorado

O Eldorado procura-se
entre o restolho do inverno
e as folhas verdejantes do jardim botânico.
Procura-se
e se preciso for
esventrar-se-á o chão com as próprias mãos
até que sangrem se tiver de ser
em consecutivas noites
até de tanto porfiar
os dedos aterrarem no desenho
das almas escondidas.
Oxalá que seja como é prometido,
o Eldorado.
Tomara não ser só um lampejo sem substância
um armário quintessência
com o vazio por dentro
um delito sem remédio
por continuada prevaricação
um rio exangue alvo da aridez do estio.
Talvez o fogo irreparável
traga dentro de uma garrafa à prova de bala
em amarrotado papiro
o segredo na ponta de uma espada.
Oráculo assim
desautoriza o lanço do Eldorado.

11.8.16

#52

Num labirinto cego
a tocha acesa na mão
sem saber nada, nem o paradeiro. 

Estratosfera

Um chapéu cheio de folhas frescas
em colisão frontal com um vestido de fada
na circunscrição amuralhada
das sereias noturnas.
Nas abas do chapéu
a chuva caída em pingos grossos
desautoriza a letargia
sem contar
que se terçam bailados avulsos
onde os corpos se meneiam no calor hirsuto.
Arregaçam-se as virtudes:
sempre exteriores territórios
dando em hipoteca o sal desexistente.
Importam os estábulos circenses
a frontaria dos patriarcas desentronizados
ou a seara abundante
onde investem os corpos livres.
Numa constância do tempo
substância volátil que campeia
em mares de ontem
sem saber que os tutores dos devires
se espreguiçam na esteira mal atada.
E depois do amesendar esperado
nas imediações de um lago celeste
imprimem-se tatuagens em nenúfares.
Os alinhavos descosidos
emprestam ordem ao caos.
E eu
penhor do meu sono tingido a branco
retiro da água
as pérolas que esbracejam.
Eu
modesto arquiteto das palavras,
à falta de um campo só meu
à falta de cultos deificados
à falta de folhas douradas
para verter as palavras sem cais,
faço caiar as paredes com a saliva fervente
e deixo para depois o lóbulo atiçado
que é o entardecer que está por vir.
Retiro-me em pensamentos
como se pedisse de empréstimo uma régua-matriz
e pesasse todos os elementos
ao contacto com as mãos.
Deixo o corpo em magistratura final.
Os copos entretanto vazios
dirão
em livro de termos
se a função derrotou a feroz foz do rio
que faltava vencer.

10.8.16

#51

Muito o que traz a foda na boca
tanto o que pouco uso lhe dá.

Suicídio assistido

Na grande roda
onde se jogam os dados de água
uma arma vetusta e enferrujada
em cima da mesa.
Atónitos
demoram-se na arma inesperada,
eles que nunca meteram à mão
arma qualquer.
Não sabiam o que fazer.
Um deles propôs chamar a polícia
outro insurgiu-se
(reações epidérmicas mal ouvia a palavra)
e o outro descobriu uma bala sem paradeiro.
Emalou a mala no coldre
em preparativos de um jogo demencial
em que os outros aceitaram ser atores.
Sem saberem como atores seriam:
experiência no manuseamento de armas
não estava vertida no curriculum
e todos se ufanavam de pacíficos pergaminhos
e não havia conhecimento que transitassem
pela loucura.
A arma albergava cinco balas
e depressa tiraram a prova dos nove
às probabilidades
(que, em plena véspera da roleta russa,
rimavam com fatalidades).
À vez
com mão tremeluzente e num arfar aflitivo
um seu dedo premiu o gatilho.
Não eram armeiros
nem tinham ar de serem belicosos
nem deles se sabia apascentarem riscos.
O que não se sabia
(ou não era de público conhecimento)
era o vício incorrigível pelo jogo.
A bala sem paradeiro
tirou as vezes aos dados de água.
Desta vez
a aposta não fora em numerário.
Depois de três vezes premido o gatilho
a alvorada soou para todos
no prolongamento da agonia
que nem a roleta russa acabou.

9.8.16

#50

Falha-me a voz
na sombra da estátua cerviz
e reforço o peito com o ar outonal
que se levanta da bruma ao entardecer.

Não estatuto

Seria
estulto desagradecer aos imprevistos.
Seria
amador tirar a besta do armário.
Seria
ensurdecedor o silêncio duradouro.
Seria
demente tropeçar nos próprios pés.
Seria
sobressalto oferecer a janela aberta ao devir.
Seria
criminoso deixar a água desamparada e esvaída.
Seria
caótico cerzir os dedos aos fogos medonhos.
Seria
um estorvo apurar as comezinhas fauces.
Seria
impensável descoser as bainhas sólidas.
Seria
desbarato apreciar os estouvados.
Seria
critério depositar o corpo ao rio lânguido.
Seria
cruel ligar as cores nas paredes brancas.
Seria
proeza se resgatasse a pureza já desenhada.
Seria
volitiva fruição amparar os reflexos da noite.
Seria
frenético desejar com intensidade de um dínamo.
Seria
maré alta se precatasse os calafrios.
Seria
exemplar se houvesse carestia em ser exemplar.
Seria
nó atado se não desaguasse numa foz clara.
Seria
o que fosse não fosse o que sou.
Ou:
seria o que fosse não fosse o que me é dado ser.

8.8.16

Irrenúncia

Não tenho
a medida das coisas
olhos com intermitências sapientes
a água fria em paredões delimitados
a secura precisa para temperar intempéries
nem sal bastante para avivar as feridas
ou lua que sobre para ser regaço sereno.

Não tenho
se não o cais necessário
os braços em aberta demanda,
como se fossem ramos de uma árvore matricial,
o perene eu que é uma metade
a bandeira hasteada no umbral sobranceiro
o abraço afogueado que aplaca os medos
as palavras que aprouverem em sussurro
as estrofes 
que estilhaçam os alinhavos de outrora
e o mar singular
que entra pelos poros da janela.

E tenho
em urgente desembaraço
de lançar ao ermo sementes de musicadas flores
trovas esplêndidas 
que são a maresia de um olhar
mãos veludo em afagos merecidos,
apenas com o limite do que é deslimite,
cadeiras sublimes em faustosas esplanadas
o vinho em celebração de um beijo
uma armadura
em convocatória dos impróprios tempos,
para domar tempos esses,
e o avesso do que não traz garbo
deixando que o esterno seja
sua própria apóstrofe.

7.8.16

Barbas de molho

Não sei
se as bainhas da ironia
se cosem aos freios da boca
– ou aos freios que coso à boca.
Prefiro o mapa dos paraísos
onde nadam doces uvas brancas
tradução exímia de um pulsar desejado
as cores exatas no dimensionamento da tela
sem impurezas
sem areias que pareçam arestas vivas
sem curadores de estados de alma
sem incensadores de fé em demoníacos autos.
As diatomáceas passam na televisão
e o velho absorto dá de comer aos pombos.
E eu não sei que fazer desta ironia
que dorme nos meus braços
em inconfessado desejo de explosão.
Sei
desta ironia poder ser devastadora
ou apenas indiferente
ou um meio termo.
No caldo fervente que é lugar meu
a ironia é uma lava constante
o púlpito efervescente de onde arremato
espadas e cálices e corolas embebidas
fugindo do exílio
do caldo fervente que é lugar meu.
A ironia como a imperativa ameia
que faz paredes-meias com o exílio
que ficou no lugar do retrovisor.

6.8.16

#49

Erro bastante
erro eloquente
num áspero lençol diuturno
sem sol nunca:
erro, erro terapia. 

Dois pés esquerdos

Diziam dele
ter frio pé na contingência da dessorte.
Esbranquiçado buço e destoar
apessoado pergaminho
onde suas mãos ungiam
logo espelhos se estilhaçavam
nas dobras forçadas de um rio justo.
Já desistira:
deixara-se de preces
e nem os chapéus promitentes,
os que ajuramentavam fortuna
(alguma fortuna),
eram alfândega onde cabos radiosos
se encomendavam.
Já sabia:
dele não se podia figurar
um frio pé,
mas dois esquerdos pés.