29.8.16

Ponte-sobressalto

A ponte fina, estreita
moldada no musgo dos dias ergástulos
cimenta o que os pés têm por esteio.
Tremeluz com o peso do corpo,
arqueada sobre as laterais
em vertiginoso movimento pendular.
O corpo titubeia.
Não sabe se as fundações são confiáveis
não sabe a fundura do precipício
– não sabe se há rede
que ampare o voo contumaz.

À falta de asas
o corpo timorato faz coro com o medo.
Não teve tirocínio da intrepidez
nem se afamou pela loucura ufana.

Antes do ocaso
em perfeita penumbra dos sentidos
o corpo transido adormece
nos contrafortes da ponte rebelde.
À espera de uma ave de grande porte,
generosa,
que o leve no dorso.

(Só não estima para onde o levará
a ave de duvidosa generosidade.)

28.8.16

Boxeur sem luvas

O boxeur arremete pela multidão
os punhos cerrados como imagem interior
da ira mal calculada.
No seu caminho errante
sem se desligar do esgar iracundo
o boxeur jura ódio às pessoas;
é como se de repente
se achasse de outra espécie
e nos da espécie de que se demitira
retratasse ideal saco de boxe.
O boxeur sem sono recusava descanso
por mais que interiores vozes sussurrassem
o imperativo descanso
para amansar as mágoas.
Mas o boxeur
teimoso
achou numa lua adornada por penumbra
a certeza da violência.
Saiu-lhe má lotaria logo a seguir:
um discípulo do Dalai Lama
sentado ao lado no metro para casa.
Os murros prometidos
foram engolidos na sanha em que se lavou.

27.8.16

#59

Domesticado o medo da decadência
compus um hino mirífico
e adormeci no caudal das cinzas contumazes. 

Astrolábio

O rumorejo que se desfaz
na embocadura do ouvido.
Deixando corpos transidos
um tremor de terra por dentro
na justa medida do sol que entardece.
Os ossos cansados
e ao mesmo tempo
penhores de um dia maior
estendidos pelo chão à procura do sal deposto.
Ciciam-se cantos leves à sombra das árvores
sobre os pés restabelecidos.
No mapa que se diz
das entranhas desenhado em elípticas metáforas
confundem-se os braços atravessados
num amplexo percutido.
As folhas rasteiras trazem um odor ocre
e as narinas intuem o festim.
O pano carmim
cobre os corpos envergonhados
estende-se na diagonal dos cantos da sala
o pano carmim
à espera que o palco se entronize
e os corpos dancem a coreografia
desenhada com dedos de ouro.
Os despojos emprestam
um canteiro de flores à sala.
Na maré alta dos tambores doados,
mesmo quando as estrelas destravam o olhar
e o suor que enfraqueceu os corpos
se transfigura no néctar esperado,
obra-prima das mãos mestras arquitetas
da ideal banda sonora.
O resto
deixa significado na fronteira da sala.

26.8.16

#58

O sarcasmo desceu à boca
no desfile sem filtro:
um ajuste de contas com os sobressaltos
a despeito de não terem sido convidados.

Prova dos nove

Preso nas estrofes da noite
já a lua fina envergonhada espreita
faço as contas num papel amarrotado.

Os números atravessados
parecem um estendal antes da brancura
antes de o sol neles se deitar
(tantas as cinzas que os cobrem).

As contas travam o caminho
entaramelam-se com a centelha iridescente
e dois dedos de conversa ao telefone.

Prouvera que cheia fosse a lua
para dela subtrair uma fatia gorda
e depois
entre as gotas vermelhas da chuva
e o acobreado das flores campestres
o chão se tornasse plano
para os números se deitarem em remoço.

Mas as estrofes da noite
desenganam as ilusões:
o chão irregular continua irregular.

O papel amarrotado
pano sofrível para os cálculos necessários
vai,
insucedâneo,
para o destino que foi sua origem.

Amarrotado
insalubre
sem as contas feitas,
apenas um amontoado de números
sem cabalística prova se não
um amontoado.

25.8.16

Roda

A roda viva
roda dentada
roda corrida
mantimento dos súbditos
em roda paralela
com o oxigénio infinito
roda dura
no paço onde se terçaram batalhas
roda estremunhada
penhor do sono à espera
roda virada
fugindo do fosso incapaz
roda deitada
no grito compungido dos celerados
roda gigante
cosmos das fantasias por cumprir.
À roda das rodas
enquanto a roda maior se faz lotaria
e as pontes saciam distâncias emparedadas,
roda a roda
onde todas as rodas rodam.

24.8.16

Desrecomendação

Tirando o verniz ao osso duro
não lhe sobravam
se não
os olhos que faziam olhinhos
às más maneiras.
Não que estivesse
de sentinela para as boas maneiras;
assim como assim
o sapato roto
era medida da profundidade das ideias
e a vozearia sem disfarce
fazia cair a máscara:
um preguiçoso com indulgência geral
esbofeteando os bons predicados
pedindo meças à boçalidade campeã
trave-mestra da mais pura agnosia
(et pour cause
de apedeuta que era
nem sequer alcançava o sentido do termo).
As malditas convenções,
os diletos serventuários dos bons costumes,
desprezam personagens com semelhante
linhagem.
O que desperta em mim
os alarmes da perplexidade:
as convulsões interiores
são ordenadas por semelhantes atores
são viveiros de desrecomendações.
E eu
aqui preso a estas confabulações
em histriónica desmedida de outros
(que a impaciência me desarranja)
em sobressalto
por cair no logro.

23.8.16

Diametralmente

Neste cortejo de janelas sem fim
os que adolescem abraçam os objetos estranhos
despejados pela maré.
Ordenam as coisas pela sua desordem
em gestos hesitantes
sob o patrocínio da lua emudecida.
Têm medo de cair num vazio
como se as mãos adestrassem abismos.
E depois
quando uma certa ordem à mesa viesse
diriam de os sonhos serem podres púlpitos
onde se esbracejam fantasmas disfarçados.
Não importa.
Talvez possuídos por drogas infames
avançam decididos contra os avisos do tempo;
encontram pedras desfeitas
malmequeres desmaiados
violoncelos de outrora, jazendo
braços retorcidos dando calado à árvore;
não se sabem sitiados pelas margens do lago
nem desunidos na febre arrepiada pelos navios
ou sequer
atónitos pelos espasmos do mundo.
Abraçam-se
na estultícia ditada
nos copos lívidos da adolescência
e jogam com os seios oferecidos
em risos dementes e esgares alucinados.
Visto do exterior
de uma varanda com aprumo
dir-se-ia que a aridez adulta se consome
em revoltado medo do tempo.

22.8.16

#57

E com os sonhos despidos
da sua matéria
sobravam os rostos tateados
as aparas do mundo transfiguradas
em chão ancorado. 

Paraísos

Fazemos os paraísos
com o mel dourado vertido das mãos.
Metemos faca afiada
nos perenes estalões da inquietação
caducando a eternidade.
Vamos aos rios fundos
os rios caudalosos de águas geladas
e trazemos as pedras fortes
que servem de casa-forte.
Não temos medo de nada
túrgidos na emancipação das palavras
enquanto dedilhamos o mapa das luzes.
Voltamos aos paraísos fabricados
por nossos dedos:
os azuis desmaiados
folhas de árvores caducas
um mar inerte e sem beleza
o céu embotado atrás de um sol ocultado
roupas vestidas a preto e branco
rapazes estroinas que adiam a lucidez
a engrenagem gasta pela ferrugem do tempo
gente sem serventia.
Não interessam
os matizes baços do quadro aos nossos olhos
se decretarmos
com força de imperativa lei
que paraíso é o que quisermos que seja.
Tiramos as mãos do bornal seu refúgio
e desenhamos na humidade da noite
os traços indeléveis dos paraísos.
Fizemos os paraísos
como nossa caução.

21.8.16

O educador advertido

Não se aponta que é feio
mesmo quando não se sabe o Norte?
O senhor dandy oferece esteio
de educação para o rapazola ter sorte.

Vem a terreiro varina empertigada
para ordem meter no dandy senhor:
que se meta em sua vida airada
não queira dos bons modos ser penhor.

Do senhor, nem um ai,
tanto se achou acabrunhado:
antes um silêncio que se descai
do que más trovas e sair estropiado.

Valem os autos narrados
para sublime lição:
dos heróis que saem tosquiados
depois de fracassada função.

20.8.16

#56

Mil folhas
deitadas em contemplação
do sol bastardo que arrefece
no estertor dos baldios sem nome.

Homem do mar

Sentado no paredão encardido
pelo tempo todo que foi testemunha do mar
o homem revistava os quadros contumazes
os dedos pueris
as poeiras açambarcadas em batéis frágeis
as voltas que o trouxeram a lado nenhum.
No seu perfeito inacabamento
(matéria volúvel que se sabia ser)
o homem tinha regimento do mar
como leito ideal para as revisitações.
Por mais que dissesse
para o mais profundo do seu pensamento
que o resgate do tempo era um ultraje:
arremetia pelo lençol aguado do mar
e compunha os tributos de antanho
à medida que se perfilavam no desfiladeiro.
Não o incomodavam aflições internas
as que anotavam contradições que o sitiavam:
bem dizia
com a ênfase que lhe era conhecida
que o pretérito era um gasto inútil,
como depressa tinha o mar
como pano de fundo
para as memórias que urgiam resgate
possivelmente
do fundo do mar.
Com essas contradições podia ele;
se preciso fosse
diria que as comparências perante ao mar
eram sua caução como homem do mar.
E que isso não tinha valor
(Cotejado com as minudências
da repristinação do pretérito:
critério contabilístico de apuramento
da grandeza do tempo tido entre as mãos).
Do mar
enquanto homem do mar
trazia o sal que ditava
constelações inteiras
fogueiras vivas deitando cinzas terapêuticas
em movimentos sucessivos de reinvenção
de onde sobejava,
homem do mar,
a plenitude possível.

19.8.16

Vozes sombra

Vozes sem pavio
ardem em minha cabeça
sem deixarem cinzas
nem nada que estremeça.

Fugidias as vozes em murmúrio
pondo fim ao que nem começa
um fogo que se não vê
arranja palco para corpo que não tropeça.

De atalaia, não vão as vozes agigantar-se,
deixo que uma regra se estabeleça
para não deixar que vozes sem preparo
se habilitem a ser o que apareça.

Dando caça às vozes sem rosto
armado de espada que as meça
junto as pistas tossidas num mapa a preceito
até das vozes fantasma não sobrar peça.

18.8.16

#55

Here is Poland. 
Here is Poland. 
Aqui é a Polónia. 
Aqui está a Polónia. 

Obra completa

A obra completa.
Os lábios grossos, quentes
sedentos de beijos que crepitam.
A perfeita textura do horizonte.
O doce entardecer suavizado
por um cálice de vinho branco.
A coleção de divindades que não existem.
O entorpecimento que não desassisa.
Os olhos todos, em coreografia cruzada.
O paredão do cais
preparado para rebater o mar furioso.
O precipício que se compõe
e a arte de o deixar em solidão.
As árvores metidas no meio do nada.
O número que desabita o deserto.
As palavras compungidas
para os momentos desacertados.
Antídotos sinceros para os punhais assestados.
Um grito da alma no perfume da alvorada.
Esteios agarrados por delituosos capatazes
e as mãos trémulas que deles
(esteios assim compostos)
fogem.
Um abraço ao corpo todo
os braços tomando o corpo na plenitude.
Para sentir a inteireza
e deixar escrito em grossas palavras
pintadas pelas paredes da cidade
que não se capitula.
E que essa é a obra completa.

17.8.16

O vulcão sem pavio

Sentado num vulcão
o sono dormente da lava promitente
estremece as bainhas mais fundas,
levita o sol tenente a um outro céu.
A terra fervente sob o corpo
será feitiço indomável?
Desafeição estulta a que não consigo
meter freio?
Os vapores irrompem em todos os poros
desde a varanda mortiça
de onde se ufanam as telhas medíocres
em circunspectas preces.
E o vulcão em que me sento
morde as entranhas ensanguentadas
vocifera trovões irascíveis
– não é dado a saber
que consumições o apartam da letargia.
E sei que tremem os esteios meus
como se um furacão sem precedentes
me tirasse o avesso do sítio.
Modificam-se os humores dos deuses
que tutelam o vulcão.
Subitamente,
ainda aprisionado
pela avidez do sobressalto continuo,
o vulcão mandou dizer
que se entregava à hibernação.
E eu
sentado (ainda) no vulcão adormecido
jurei que teria em enxoval
as artes suficientes para enxugar
os transvias
(de outrora e os que houverem de ser).

16.8.16

O louco provavelmente disfarçado

O louco tropeça nas ruas
vociferando ininteligíveis palavras
assusta as pessoas amistosas.
O louco
andrajoso e com os olhos iracundos
barba farta, imunda e hirsuta
cruza a praça das esplanadas
e desata num berreiro lunático.
Ninguém percebe a vociferação.
Depressa
não há vivalma que lhe dê importância
deixando o louco só e amparado no cruzeiro.
Numa inteligência obliterada
o louco
levou a água ao seu moinho.

15.8.16

#54

Na resistência do luar
limpos os olhos marejados;
os braços aconchegam-se
selam as costuras dos tempos. 

Roda dentada

Sobre o xisto como cama
a cisma debate-se
no lúgubre lugar das dúvidas.
E nem todo o petróleo que jorrasse
deitando os imperativos por fora
seria transcendência venal
em jogo de espadas.
Porventura
um fado obscuro destituía
a ventura projetada em cabais sinecuras
com propósitos recomendáveis.
Os números pares eram arestas vivas,
crucifixos selando pungência
na carne aberta;
dor mais pungente
seria a devolução a um ímpar número.
Os joelhos magoados
diziam de cor as ruas por onde ir.
Um comboio veloz descompunha o vento
e os arbustos mirrados sua farta vegetação
bolçando a pressa
com que se consome o tempo.
Mas a casa cheia
não quer apressados compassos
não quer pressentimentos 
que aprisionam a candura
não quer o indócil gorjeio de palavras 
desafeição.
A casa cheia
– por cheia ser
para cheia estar –
repõe na vizinhança do nada
os ossos suados que calcinam 
os esgares poluídos
as obnóxias fadas-madrinhas
que, afinal,
são o oráculo de madrastas
com a mesma lente comezinha
que trava os feitos que ficam em memória.
A música passa devagar,
arrasta-se no faminto céu da boca
emprestando os ingredientes sóbrios
à primavera que não destoa.
Não importa que o xisto seja leito.
Não importa que seja pétreo,
desconfortável,
bilhete transacionando um castigo
ou um tapete cheio de espinhos
ou uma escada anã povoada por deuses despidos:
no xisto rugoso
terei meu olhar em proteção
contra as ardilosas cauções
que deixam ver no retrovisor
o olhar faminto dos mastins disfarçados.