20.9.16

Espólio

Não era o fingimento
o esconderijo arranjado no leque de sombras
a secura dos dias longamente sem chuva
os pretéritos alternativos em manhãs sem regra
que desencavilhavam explosivos interiores.

Podiam as luzes mortiças travar o firmamento.
Podiam os cordões deslaçados
armar armadilhas sem espera.
Podia o espólio terçar cicatrizes incuráveis.

Nada tinha importância
nada se congeminava
no possível furto do tempo
pois não havia algozes capazes.

O espólio desarrumado
um pouco como as ruínas em redor:
desconsumição com raízes frágeis
mas promessa entrelaçada
numa teia diligentemente servida.

O espólio já não entra nas contas.
Já só cinzas
imprestável grilheta seria ao tempo maior.

19.9.16

#73

Não é daninha ideia
ensinar aos neófitos
os ardis das curvas retorcidas
que vêm sem advertência previa.

Infância

Petizes
algazarra desatada:
desmintam os líricos,
os desalmados que desarrumam
a sua permanência no mundo:
não,
não é a inocência que entroniza
a sublime felicidade dos petizes.
Pois se não lhes é dado saberem
dos adultos prazeres
a vertigem do conhecimento
o sexo
a bebida
a transcendência do ilícito
a contrastante transgressão
a imersão da pele
a música nutriente
o mundo para apreciar
a noite telúrica
a aprendizagem dos sobressaltos
a volúpia da identidade
o exemplo da contrição
o sarcasmo
os obnóxios contratempos a anotar
as munições dos sentidos em êxtase.
Desenganem-se os líricos
em vácuas odes à infância:
terão desperdiçado
grande quinhão do que lhes foi creditado.

18.9.16

Dito de outro modo

Especialmente em língua ininteligível,
para não enxugar as entrelinhas:
entontecido pelos tambores que troam
parecendo uma trovoada sem freio:
desalinhadas suposições aquecidas ao sol:
uma multidão faminta, ruidosa, não sigilosa:
dos antepastos aos pulcros que saciam:
tirando à sorte a colmeia sem abelhas:
de um mel forte,
cristalizado nas varandas da alma:
bolçando orações sarcásticas
dançando no seu quê de atónito:
desde as almofadas do sono madraço
vitrinas nuas que dão as tornas à alma:
uma escultural estrofe, sem rima nem métrica:
por outras palavras:
haver tanto para dizer
e as palavras tropeçam em seus estorvos.

17.9.16

#72

Prometi virtudes condensadas. 
Jurei renegar 
todos os desvios à perfeição ousada. 
Não tem mal. 
Sou o meu próprio tribunal de contas. 

Logro

A clepsidra centrípeta
escolhe os pesares certos 
na contagem que conta.
A água vem da fonte fresca
atrás dos montes inclinados 
que escondem segredos.
A lenda dos mineiros algozes
conta que se curvavam diante da clepsidra.
Respeitavam-na como divindade.

(Talvez por falta de estudos
nunca entenderam a lógica da clepsidra
e escolheram profana origem.)

Sobrou para a posteridade
a deificação de um relógio de água,
vulgar como tantos outros mundos fora.
A palavra passou entre gerações.
E hoje
um mito ganhou incontestáveis pergaminhos
(como se diz ser próprio dos mitos).
Temerosa
até a gente que desalinha de crendices
se silencia.
Os mitos ganham vantagem no húmus da agnosia.

Poucos os esclarecidos metem pés ao caminho 
da mutilação do pensamento:
melhor método para não serem
denunciaria por heresia
não se conhece.

16.9.16

#71

Mãos que, por gastas,
esperam pelo tardio anoitecer
entregam-se à lua forte 
em promessas fundas, telúricas. 

Convalescença

Sob o peso das nuvens de chumbo
dizem:
não temos nada a temer.
Os fumos densos
não trazem rios de lividez
não desassossegam as almas fartas.
Diante dos trôpegos madraços
desdizemos a má fortuna
que cobiçam aos demais.
Talvez desenhássemos
círculos perfeitos na orla das nuvens
a tempo de sermos soberanos.
Ou então
atrás das coisas escondidas
sob a penumbra encavalitada
tirávamos à sorte as ruas dardejadas
em danças rituais à medida dos loucos.
Dos loucos de que invejamos estatuto
à espera da desunião entre os elementos axiais
e das nótulas que,
prolixas,
desinquietam os próceres da altivez.
Até sermos todos gente meã
e de um lugar térreo deixarmos de nós
o sumo abundante e mélico.

15.9.16

#70

Aplausos com as mãos cheias
nas piscinas a abarrotar
entre peixes transparentes
e ingénuos acreditadores de tudo.

O mau elemento

Atirem toda a artilharia
os impropérios e os dardos envenenados
as flores podres e o pão bolorento
o opróbrio sancionatório
que faz descer a vergonha.

Atirem tudo de mau ao mau elemento
que,
ao mau ser,
mereceu todos os males cominados.
Não se cansou das torpezas
não largou a insídia de mão
não ganhou para sustos ao fintar demónios
não quis semear simpatia
no púlpito de onde assobiava perfídia.

Desdenhou
vociferou
atraiçoou
mentiu
manipulou
distorceu
disfarçou
esbofeteou (fracos)
fez chover deslealdade
ganhou foros de desagradável personagem
ufanando-se de pergaminhos tais.

Findado o reinado de aleivosias
à mercê do julgamento dos outros
de todos os outros
– dos que aleijou
e dos que foram testemunhas dos danos noutros
– mantém-se impassível
cabisbaixo
estremunhado.

Compõe o ar compungido de vítima.
Vítima de si mesmo.
E agora
que sobre ele todo o mal se abate
e sofre
com a devolução das maldades dantes palco
monta outro teatro doloso:
sem entoar as palavras
substitui-as pelo rosto condoído
que suplica por misericórdia.

Enfim
a misericórdia entrou
no catálogo da sua pessoal gramática.

14.9.16

Diamante

Em tempos
uma lágrima inspirada
em rosto impassível:
daria fortunas para ser herói.

Mas esses eram tempos
em que não sabia nada
julgando muito ser o meu saber.

Hoje
desautorizo os campos férteis
de onde medram os saberes.
Prefiro as interrogações
colocar pontos de interrogação
em finais de frase
desenhar perguntas sem a ousadia
das respostas
beber dos cálices de onde escorre,
em forma de lágrima,
o seu suor lento.

Ainda não sei
se é isto o saber.

13.9.16

Papel timbrado

I
Arrumados os papéis
que levantaram voo na intempérie
com a autorização de uma distração
que deixou aberta uma janela.
As lajes molhadas soltam um odor quente
e o musgo vertido nas lajes
não tem vastidão no molhado que se deitou.
Um pequeno papel
ficou preso à pedra molhada.
De tanta a chuva que enegreceu o dia
o papel depressa se dissolveu
na indiferença das coisas que perecem.

II
A máquina tosse um fumo intermitente;
o engenheiro consulta o manual de instruções
enquanto o operário ensaia hipóteses:
sugere que a tosse é da ferrugem
o selo da vetusta idade da pobre máquina.
O engenheiro contraria o operário,
sem disfarçar irritação,
à medida que entreolha as páginas do manual
e continua sem saber o que elas ensinam:
o manual estava escrito numa língua arrevesada.

III
O meteorologista advertia:
uma borrasca está para chegar.
Avisos seguintes consequentes com o alarme:
as pessoas deviam fazer como o avestruz
(que esconde a cabeça debaixo do chão)
os marinheiros que olvidassem os mares
os boémios fossem dormir mais cedo
os homens que rondam a noite de perto
abriguem-se do medonho temporal
os homens da terra cuidem das estufas
os pirómanos adiem-se para o estio vindouro.
Quando veio o dia seguinte
todos os cuidados foram em vão
– a borrasca aportara a outras latitudes
e ao homem do tempo descobriram
que era um trapaceiro na matemática.

IV
Se for preciso
se for preciso,
murmurava a mulher jovem
ao ouvido de ninguém.
Cambaleava
enquanto outras vozes suplicavam
uma revoada de nomes.
A mulher não olhava os rostos à volta
rodava sobre a sua cabeça
e atirava os braços ao céu
espetados na vertical do corpo disforme
e gritava,
com voz de ator de teatro
(que dispensa microfones para colocar a voz)
que ninguém fazia tão diligente dança da chuva.

V
O rapaz não sabia a resposta.
Não sabia que horas eram.
Se lhe perguntassem,
não sabia do paradeiro de Aveiro.
Não sabia muitas coisas, o rapaz:
a cor da bandeira da Letónia
o órgão digestivo do tubarão martelo
o nome do subsecretário de Estado das pescas
a fórmula do medicamento para as cefaleias
o aroma do sexo
a trindade que lhe seria subtraída
(quando calhasse)
a raça do cão da vizinha do quarto esquerdo
o nome do pai.
Era o rapaz mais esclarecido da escola.

VI
Palavras ditas como arestas vivas
abusos continuados sobre quem as ouvia
numa incontinência soez que não cabe
num silêncio.
E ficaria melhor fatiota, o silêncio,
de frente para tamanho néscio.
Logicamente
têm os néscios seu lugar
na ordem composta no tabuleiro.
Fosse o contrário,
quem podia determinar 
a identidade de um néscio?
Quem poderia habitar nos seus antípodas?

VII
No interior do quarto o aquecedor crepita.
Deve estar um frio de tiritar os dentes.
O homem deita-se sozinho
aconchega o corpo decadente
na dose considerável de cobertores.
Já não se lembra de outra companhia.
O frio não incomoda
nem tanto a solidão.
O stock de conhaque é farto
e o resto deixou de importar.

VIII
De que era feito o gelado?
O fabricante tinha pergaminhos honestos?
Mentiria nas letras microscópicas descrevendo
os ingredientes do gelado?
Os operários lavam as mãos
antes de fabricarem gelados?
Tiveram uma noite bem dormida?
Algum deles foi de férias para as termas?
Comem gelados à sobremesa?
Deixam que a descendência coma gelados?

IX
Dias inteiros sem saber da chave do cofre.
Dias inteiros sem saber o que continha o cofre.
Dias inteiros sem saber o que era um cofre.
Dias inteiros com o tesouro num bolso.
Dias inteiros enlaçada às lágrimas.
Dias inteiros
na opereta que era a sombra da sombra da vida.
Dias inteiros de leque em riste
em pose fidalga
escondendo o lado oculto
(o de mulher fácil).

X
Montanhas sem pedra
praias sem eco
eruditos sem óculos
estroinas sem licor
sacerdotes sem pudor
ascetas sem estética
lagos sem nenúfares
teatros sem solenidade
varandas sem bainhas
arenas sem suor
velhos sem negrume
batistérios sem raízes
loucos sem estrias
cães sem travões
professores sem voz
crianças sem cheiro
sabores sem remorsos
amores sem lugar
fatiotas sem corpo
heróis sem proezas
homens sem causas
juízes sem juízo.

XI
Noves fora, nada.
Metam-se aspas nas palavras
sequem-nas por dentro
antes que se precipitem sobre os ingénuos.
Juntem-se as cinzas depostas
até se intuir sua origem estática,
antes de bolores de atalaia tomarem,
como colónia,
as paredes frias onde descansam as mãos.
Até que o pano final desça sobre o palco
e os atores nos mandem para casa.

12.9.16

#69

Dirão
os homens afogados em desgraça
que a falta de graça 
provém dos beijos adiados
ou de serem eremitas sem remédio?

O lobo senescente

O lobo ferido vacila.
Lambe incessantemente a ferida na pata
acoitado num ermo fundo
para não se tornar presa.
Não dorme há algumas noites.
Tem tempo para evocar caçadas de antanho
quando era,
entre os da matilha,
o mais desembaraçado
o mais diligente.
O inchaço na pata não recua
e o lobo sente fraquejar.
Caiu no sono.
Sonhou que já não estava ferido
e que tudo se recompusera
nas suas formas originais.
Mas era só um sonho.
O derradeiro.

11.9.16

Simplicidade

Cai uma vez
por dia.
(Não mais.)
Deixa vir à roupa a aspereza do chão.
Sai uma vez
ao calhas.
(Talvez.)
Respira o orvalho no tirocínio da lua.
Vai uma vez
sob anonimato.
(Sem medo.)
Derrota as básculas metálicas que adejam.
Diz uma vez
uma vez só.
(Sem o entardecer.)
Antes que seque a voz.

10.9.16

#68

Só uma vela acesa
o quarto sozinho
cinzas escorrem da parede
no mosto do silêncio, 
um diamante. 

Meia-noite

Sombras diurnas fervem no chão
três horas antes do ocaso.
Sombras a destempo
ou apenas o relento a tomar conta do olhar
tirando água de dentro de um poço frondoso.
Atira-se o corpo contra as ondas
e de dentro do mar vêm polvos agarrados
seixos perdidos na maré
uma garrafa romba enredada em algas.
O âmbar do céu conta histórias perdidas
enredos impensáveis
ecoando no travejamento da casa desocupada.
Por favor
(reza a súplica)
por favor
desembrulha o céu cheio de veias podres
deixa-o medrar
nos abjetos estorvos encaminhados
deixa
os abjetos estorvos
fadados ao descaminho.
Ou podem as viúvas tristonhas sair à rua
com gatos adormecidos a tiracolo
preces repetidas, monocórdicas
vozes condoídas pela desgraça imorredoira
extasiar diademas demoníacos pressagiados.
Não quero ser notário dos inditosos oráculos
ou coveiro das representações da desgraça.
Só quero um banco de jardim
o jardim sem gente
a noite estremunhada
vinho doce
beijos sem dor
árvores como pano de fundo
ao fundo do meu fundo sem fundo.
Que o sangue derramado não seja o meu.
No miradouro escondido da noite
enquanto as candeias cantam seus reparos
tiro as algemas do olhar
e sinto um tremor de terra por dentro
ondas indomáveis trepando o cais
dentes mordazes ferrados na carne
destemidos versos na orla do dia fervente.
Para dar de mim
o todo em que me decomponho
sem vírgulas nem pesares
inteiro
corpóreo
sagaz
o peito farto à espera do que houver
ancoradouro.

9.9.16

#67

Que a pressa toda
somada ao tridente arcaico
detido por um demónio sem dentes
se vire do avesso
e sejam terçados os cuidados a destempo. 

Nada

Perdia o saber ao saber
sem saber ao certo que saber seria.
Mas sem saber
o que o saber sequer seria
como podia saber
que perdia o saber ao saber?
Soube então que nada saberia.
Conclusão tão avisada
(em pernalta altivez)
uma negação de termos comportava:
para essa conclusão atirar para o estirador
teria de saber que nada saberia;
o que já incluiria um módico de saber.