10.7.17

Totalidade

Sou eu
dentro das nuvens
sua ossatura exemplar
mas não tenho lágrimas
e a chuva calculada fica adiada. 
Sou eu
mastro estocástico da outrora solidão
agora vertente exemplo do amor
imensa nau
onde todos os mares têm cabimento. 
Sou eu
caução maior da loucura sã
(e mesmo da insana,
se preciso for)
generosa alma
dádiva de frondosos frutos
corpo hasteado em penhor de invernia
desassombro faustoso
na opulência das páginas abertas
franqueza enquistada
no castelo amurado contra os vetustos ardis
frontispício aberto à lhaneza demandada
rio indomável
irrompendo entre as rochas timoratas
janela desembaciada à espera do amanhã
à espera da manhã quimérica
das almas suficientes
do amor majestoso
por onde regresso ao eu que sou.
Sou eu
esta pedra viva
onda sobreposta
perfume tardio
lua-sol
sem ocaso a pestanejar sobre o entardecer
sem pesares sombrios
só com a corda toda
o apetite desatado pelo húmus enriquecido
de olhos avidamente abertos
preparados para se embriagarem
na alquimia segredada num murmúrio
ouvido desde a voz quente
que dá alimento
à alma que assim se engrandece.
Sou eu. 

#247

A desforra dos fracos
sem combustão visível
no antebraço dos poderosos,
em seu sono. 

9.7.17

Contagem

Sessenta palavras:
um estaleiro ou uma serenata
o farol em cima das nuvens
beijo quente no rosto insaciável
diadema anelado.
Quarenta palavras:
o número errado
uma estrela cadente
as mãos trémulas
as dádivas estremunhadas
em campos floridos
despojando os favoritos lamentos.
Vinte palavras:
lágrimas virgens no assobio noturno
em verso desafinado
bestiário incapaz no ninho dos algozes
e juras interrompidas.

8.7.17

#246

Uma mão cheia
de rosas sem dono
para penhor alçado
do sensato contumaz. 

Empreitada

Desalma até ao osso
descose as bainhas 
mesmo as mais teimosamente atadas
devolve ao mar
(origem e terminal)
as fundas raízes
desencontra os bastiões da identidade
desengana as fazendas gastas
que julgavas centrípetas
desfaz os chãos lisos
que tinhas por ancestrais
desmancha os telhados estéreis
desarranja os penteados
(meticulosamente hasteados)
desacerta os relógios tiranetes
dispensa os oráculos imberbes
desiste da identidade não tua
desossa a alma 
e desalfandega os rios escondidos
desenfreia as vontades embotadas
desobstrui as cores dantes desterradas
desenvencilha os pactos nascentes

7.7.17

Púrpura madrugada 

No sopé da acrimónia,
entre duas braçadas de melancolia
e um esgar de humildade,
desamarrava o atavismo
e projetava o olhar
para o lado contrário do pretérito.
A astúcia amealhada,
o entesouramento que soubera ser prudente,
anestesiava as angústias sobrantes. 
Da noite para o dia
perdeu a meada aos vértices do tempo
deixou até de possuir certezas
sobre a identidade.

Era o que menos importava. 

Só sabia importar
que coisas dantes importantes
ganharam credenciais de irrelevância. 
Era como se um banho de águas medicinais
tivesse sido seu refrigério
ou como
se as lamas de uma pureza qualquer
tivessem prodigiosamente desabado sobre ele:
enfim
podia acordar imerso nessa pureza,
a de se achar indiferente à acrimónia
e suas semelhanças. 

#245

O campeão mundial da languidez
ofereceu-se
(em dote de aniversário)
opíparo arroz de lampreia. 

6.7.17

#244

O traço fino
dissolve-se no firmamento,
nele fundido:
honesto. 

Sortilégio

Um archote
à espera de ser incinerado.
Pois disseram
que sem luz não há cabimento
para o dia sequer;
não há túneis regrados
lemas frequentáveis
lugares merecedores
palavras mercadas
gente com lugar para o ser.
Sobrepõe-se,
o archote,
às sombras contumazes
a macieza das flores ditadas
no arquétipo do jardim imaginado.
Alguém empresta chama ao archote.
Desprendem-se pequenas centelhas
que se apagam
ao beijarem o orvalho tardio.
Talvez se concebam sombras
furtivas sombras
no rumorejo da chama do archote.
Ou então
a chama é domada entre as mãos
e toma-se o seu tremor
como arrebatamento em falta.
O arrebatamento
para sancionar o fausto em que o dia,
um dia atrás do outro,
vem embebido.

5.7.17

Plenipotenciário

Na preparação do chão fértil
dragados os sentimentos
em elipse impura. 
Se as peças do jogo
são inertes,
descaucionadas de vontade,
sobejam os acasos
os lóbulos enrubescidos
de quem se sabe vítima
de falares alheios
no ADN virtuoso
da indiferença. 
O fumo do tabaco
embebe-se na roupa
e o raciocínio perde-se no labirinto
onde sacerdotes vários se extasiam 
com o luar desmaiado. 
Às mãos
entre as cortinas do nevoeiro
os juros do aforro da alma
a metódica exegese da obediência
dos juízos interiores. 
E para quê?
pergunta em apuro
nos preparos insatisfeitos
que se afivelam depois de conseguida
a proeza. 
Pois a proeza
esgota-se
no exato instante da sua consumação. 
Depois
sobram apenas os vestígios do passado
as recordações estéreis. 

#243

Se houvesse 
sindicato dos poetas
e as greves fossem falta à poesia
seria terrorismo auto perpetrado.

4.7.17

Esgrima

Desse o tudo
e os vulcões deixariam de dormir
as marés seriam frugais
os lenços bordados, mantos diáfanos
as cordas de guitarra beijadas em alquimia
as cadeiras vazias por inutilidade
o sono adiado para derrotar pesadelos
(antes do tempo)
os miradouros, sede de segredos
a música toda bela
os pesares desautorizados
e a roda viva:
uma autêntica prova de vida. 

Mas os espelhos estilhaçados
esbulham as feições da perfeição. 

Protesta-se:
contra o adiamento das intenções
o alto muro que impede
as perfeitas coisas da sua consumação. 
Não importam
os esbirros que movem as paredes
para a geografia da impossibilidade.
Não interessa
se as coisas não conseguem
o triunvirato da perfeição.
Ou bem que se determina
a perfeição matéria alienável
(e ela despoja-se da perfeição seu timbre)
ou se jogam os dados da fortuna
num tabuleiro feito de matéria diferente
onde fecundam as cinzas vulcânicas
e a perfeição
é o que assim for julgado,
nem que seja
pela astuta, generosa lente
atrás do olhar imensamente subjetivo. 

Até que ao sonho
venham apenas
personagens de rosto macio
mãos desenrugadas
vozes de bálsamo
só gente capaz de calar
com a facúndia de seus esmaltes
os improfícuos demónios do desassossego. 

E todas as alvoradas
representando o sorriso largo
de quem sabe
um farto dia ter 
sem se consumir a linha do horizonte. 

#242

Ele há tanta pilhéria
sem sumo
desossada
que mais vale a eanista circunspeção. 

3.7.17

Opulência

Dissessem
que as palavras
carecem de desinfeção.
Experimentassem
soluções de alquimia
talvez
ou outros pudores sem o céu da razão.
Não sou tutor
da retidão
nem meço ao milímetro
a lassidão das palavras
a sua textura enredada
o bocal por onde fogem,
furtivas e azedas
ou gastronómicas e esbeltas,
ou apenas livres.
São as palavras
que vêm ao bornal
as doces
as categóricas
as telúricas
as meigas
as dúbias
as tóxicas
as contundentes
as telegráficas
as obnóxias (de tanta presunção).
Vistam-se
com as indumentárias
que vierem no restolho da maré
tontas
provocadoras
estilísticas
musicais
afetuosas
enlaçadas
determinadas
puras,
ou impuras
(não importa,
se não palavras).
Depois
por dentro da trovoada sinistra
por entre os horrores da escuridão
entaramelados em pesadelos grotescos
alinhem-se as palavras
no repositório ao acaso
estendidas em forma de desenho
na lã sedosa da alva folha.
E depois
contemple-se
a vocação.

#241

A cidade
acorda na vertigem do tempo
contrariada
em sua preguiça amalgamada. 

2.7.17

#240

O degrau sobreposto
sobre o dorso murado
na tutela do entardecer emaciado.

Arraia-miúda

Do corpete da arraia-miúda
lamentos vociferados
contra o mastodonte verdugo da iniquidade.
Sob as estrelas anãs
em sucessivas danças desinspiradas,
sob ameaça de dívidas incobráveis
(as dívidas que os penhoram),
arremedo mal disfarçado
de retratos esboçados em estirador,

no estirador dos planos levianos.

Come-os por dentro
o verniz macabro da cobiça.

Fingem-se cavalheiros
no porte arcaico,
bastardo.
A simples pele
o descarnado que todos são
é farol inesgotável:
não se é quem se quer ser
e não é
por falta de capacidade para o ardil;
é por se não conseguir incarnar
a carne património dos outros.

Aos Pirros
emboscadas de si mesmos,
a arraia-miúda mundana,
o lamento que troa
calando as trovoadas furtivas.

1.7.17

Pot pourri

O jasmim prematuro
oculto entre a seara que adolesce
abraça a curvatura da planície
despovoando a desolação.
Os dentes aferroados
mentem sobre as montanhas à ilharga
esquecendo
o orvalho do jasmim matinal.
Não adiantam
as preces murmuradas
no leito da noite.
Enquanto
houver memória do jasmim prematuro
o oráculo adivinha a madurez dos frutos
em seu primaveril medrar.