22.9.17

Os algozes

O arpão 
sem estribeiras
consome a sede,
vaga-lume gasto. 

Noto
o bruxuleio do rouxinol
e a traineira solitária
em fuga. 

Não adianta
o protesto trovejante
a arrumação metódica
o beijo esboçado. 

As nuvens
escondem revólveres
estribilhos desnatados
líricas vozes demenciais. 

Tudo parece um jogo
simulação contida
por dentro da simulação
verticais, paralelos labirintos. 

Nada parece em jogo
capitulação reverencial
medo sacramental
em ausência perene.

Alguém lamenta:
“oxalá tudo fosse geométrico”
e eu protesto
contra a desambição miúda
a estrepitosa mesquinhez
o embaraço sobre o rosto
a maquinação não notada
a virulenta opacidade
a passiva deriva
oculta recusa da emancipação. 

Não há remédio:
não querem
nem em módica dosagem
a indisciplinada emancipação.

21.9.17

#317

A portagem paga
no apeadeiro da loucura,
investimento de primeira sensatez.

Roleta russa

Em penhor contristado
tiros de pólvora seca
cisma da perseguição
um eu mal resolvido.

Dizem-lhe: “vai à bruxa”.

Revolta-se
em revoadas sucessivas de indignação
trejeitando ira tanta,
a rodos
que dela se alimenta
e nela se consome:

perfeita autofagia.

Dele não sobra
vestígio para narrar história.

20.9.17

Água termal

Ah,
se ao menos soubesse
o estio das ideias
o vendaval noturno das almas sem medo
os gatos disfarçados na penumbra
os dedos acesos contra a luz
os candeeiros do avesso em paredes claras
as orquestras vazias
as cadeiras vazias
as flores sentadas à cabeceira
os livros amarrados ao silêncio
as vidraças embaciadas de suor
as alvíssaras das nuvens furtivas
os lampejos dos ossos vadios
os piões da infância
os sultões das verdades gastas
(e por isso improfícuas)
os tiranetes do hedonismo
os lacres das modestas palavras
os beijos em rostos arrefecidos
os beijos nos lábios amados
os corrimões sem ferrugem
as esquálidas fachadas da cidade frágil
as ruas mostruário
os arranjos da alma
a alma desamarrotada
as guitarras troadas ao acaso
o bálsamo distante
as rosas-água nas jarras perdidas
os navios pérola
o sal desenganado em fúteis diálogos
os deuses destronados
os cálices sem rosto
as viagens anotadas na pele
as tatuagens firmadas em sonhos
as danças sem palco
os mastros irados
as garagens penhoradas
os rivais em rios amigos
as noites sem sono
o sono sem noite
a cozinha aberta e jornais despedaçados
os velhos sem medo
os juros sem matéria
e os dinheiros sem jura.

#316

No aval das circunstâncias
devoro a urgência assombrosa
na curva meã da chuva consagrada.

19.9.17

#315

Indignu, “Onde as nuvens se cruzam”, in https://www.youtube.com/watch?v=TKuhFGKZp4w    

Não sei nada de velhice
nem dos escombros do corpo gasto
desde que o meu sonho sejas tu.

#314

O rapaz cobiça o gelado da menina;
prevenção do atlas futuro.

Sangue fervente

Ferve o sangue
desembaciado dos penhores
destravado das baias fundas
cuspindo a ira fundida
sem atalhos profícuos em rima
sem espinhos dentados em dilação.
Ferve o sangue
do fundo de mim
em levas sucessivas
com o fogo incensado
no entardecer vagaroso
e as veias circundantes num esgar de dor.
Ferve o sangue
sem termómetro a uso
nas rodas perfeitas do dia inteiro
desagravo militante dos pesares sentidos
a terra negra humedecida nas mãos
e a boca expedita
que busca
palavras gentis
palavras furacão
os beijos que adornam a ternura.
Ferve o sangue
no fogo desalinhado
no fogo mestre
sem cadeiras por perto
sem lastro a medir o passo
apenas a imensa paisagem por limite
e a vertigem da cadência ímpar
em relógios loucos que se fazem notar.
Ferve o sangue
e eu quero que ferva
no desamparo dos virtuosos
no sopé das varandas marginais
nos mares longínquos, prometidos
na matéria líquida em vocábulos inventados.
Ferve o sangue
eu sei
desejo de carne nas mãos
as veias carnudas à boca do vulcão
na tomada de posse de um corpo não meu
feito meu
pela combustão de sangues ferventes.
Sei o domicílio que é meu cais.
Sigo o rasto do sangue fervente
o rasto de estrelas cadentes
a pulsão indomável do corpo meu
que meu não parece
e se incandesce 
nas achas acesas da fogueira sortilégio
a fogueira que dá corpo aos corpos
e adestra o demais
o vulcão singular que é chamamento.
Ferve o sangue
sem reparo
sem justaposições nem venenos
sem o menor lapso nem tergiversação
apenas com o pulso aberto
por onde se enxameia o suor destravado
o néctar sublime do desejo
as paredes entrecortadas pelas mãos dadas
a inexplicável sede dos poros abertos
na fusão imediata dos corpos
no sangue
comummente
fervente.

18.9.17

#313

Não se exaure o filão
acervo intemporal, imaterial
um vesúvio por dentro das veias.

Pirâmide

Tirando o avesso ao estuque
para nudez desarmada
círios afivelados em sua pureza
palavras sem vento
curadoria.
O norte sem bússola
forte diamante nos despojos da manhã
convoca o filme a preto e branco
em tela amaciada
por olhos sem prisma. 
Porventura
nas areias movediças
sob a ponte ergástula
levantam-se indomáveis cavalos
deitando a crina rebelde
contra o vento desossado. 
Os braços não caem
nem diante de sombras marasmo
ou de demónios disfarçados de elfos bondosos. 
À noite
o norte desnatado
confere notas doces
e os sonhos enfeitam-se
com flores campestres
colhidas no ventre de deusas sem rosto.

17.9.17

Incógnita

E as levas sucessivas de escárnio
sem hipoteca do remorso
como ondas imparáveis
crescentes
dedilhadas pelos perseverantes
sardónicos curadores do género,
que dano trazem?
Dizem:
oxalá má língua não houvesse
e os olhos servissem para falar a eito
nos olhos outros
sem desvios nem atalhos
apenas a lã caprina das palavras destravadas
sem esgar desmentido
ou simulações acanhadas;
apenas a cor das pedras gastas
e o suor escorreito enfeitando 
as palavras por dizer. 
Ninguém sabe
em casos tais
o deslinde do labirinto. 
Ninguém sabe certificar
se a espécie seguidora de tais comandos
seria sufrágio de melhores pergaminhos. 

16.9.17

#312

Das amoras decadentes
promessa
de colheita vindoura.

15.9.17

Boreal

Na variedade de sonhos
uma luz boreal
desenha o mapa transparente. 
Ao acaso
o percalço furtivo tem enlace
fora do perímetro conhecido;
somos apenas testemunhas
na lente proporcionada
sem viveiros cingindo ideias
apenas o olhar desembaraçado
rigoroso.
Sabia que a luz boreal
é a voz certa da quimera.
Em vez dos sobressaltos
(metidos em anestesia líquida)
antecipei as rugas contidas
no tratamento boreal.
Não é todos os dias
que desembarcam fenómenos no cais.

#311

Deixei o rastilho desmaiar,
sentinela do palco sem cortinas
na dívida de palavras lucrativas. 

14.9.17

Contrato promessa

Trazia dentro do peito
as viagens genesíacas
as molduras intemporais
as vidraças dissolvidas de penumbra
as palavras arredondadas
as marés perfumadas
os dados combinando sortilégios
as armas embainhadas em hibernação
uma constelação de danças matinais
e os livros aprendidos no totem do saber. 
Tirei ao acaso
entre folhas vertidas em cima da cama
o jogo estimado 
a magnífica clepsidra transparente:
saiu-me
a promitente aura do presente. 

#310

Vésperas murmuradas
em páginas ágeis
nos mundanos carrosséis sem freio.

13.9.17

#309

Agulhas baionetas dinamite neutrões:
do artesanato iracundo
da humanidade.

Par ou ímpar

Um periscópio
bem lustrado
requerido para olhares vagarosos. 
São de tal cepa
(estroinas solteiros do pensar)
que nem charlatães aformoseados
chegam para os endossos precisos. 

Não importa. 

Os azulejos desbotados
são azulejos na mesma
e o desbotado não deixa de ser cor. 

Pior:
os vistosos penhores de almas
sacerdotes à prova de defeito
ajuramentando-se pergaminhos ímpares
marqueses da prosápia balofa
mão inteiramente necrosadas
e, todavia,
incensando um imenso nada
ou padas estéreis dos lugares-comuns. 

Em arbitragem desafiante:
menos mal 
sobressaiam os madraços pueris
pelo dano menor desarvorado. 

12.9.17

#308

Na enseada
saltamos para dentro do tempo
na combustão das mãos ávidas.

Joalheiro

Seria como um joalheiro
e dos dedos precisos
filigrana desnatada
devolvendo o redondo às esquinas
sob a jura de um polimento matinal.

Acabados os pesares sobrantes
os despojos deixados ao chão
estimam as novas ruas atapetadas
pela quimera graciosa
destinada ao luar.

No meio de sombras
despenhando as aranhas tentaculares
no óbito afivelado
como um joalheiro tem engenho:
emprestando rigor e arte
e a luz transpirada dos raros artefactos
em suor desenhados
no perfeito compasso do perímetro jogado
o joalheiro,
ou dir-se-ia,
o alquimista dos elementos
emprestando às manhãs
o ciciar rarefeito e rouco
de pássaros vadios em voos rasantes.

Nas gotículas matinais
de que os campos se servem
ajuramentada condição
dos primordiais ascetas de tudo
como se diz dos joalheiros
em trovejante demanda pelos céus coalhados.