26.9.17

Ciclo vicioso

A rua cifrada:
coutada tribal
no amparo consumido.

Tiram-se à sorte
as bestas desemparelhadas
no equinócio outonal
no previsível empate das camélias.
Diz-se saber das coisas que há
à falta da ciência sobre as outras
e em sendo o tirocínio da humildade
contraste com o lúgubre ensimesmar.

Não se peçam meças à função
por mais que pareça trivial.

No visível fumo da cidade
escondendo as trevas das alimárias
enganam-se as noites pueris
em lençóis gastos.
No desempate das furnas
sem pestilentos vagares e baços montados
os pastores cansados cantam a saudade
e as velas hirsutas dos navios
ao longe
são maestrinas versadas.

A rua cifrada:
mostruário trivial
sem almas ao desamparo.

Ósculos incessantes
xailes garridos
poemas atravessados
a concreta ignorância de tudo
e as mãos lavadas em águas puras
sem sentido
em sentido
contra os generais
tiranetes compulsivos:
erguem as bandeiras varinas
lotarias ganhas na casa da partida
contra a imponderável desliberdade.

E depois
renasce-se.

#322

Erro pelas ruelas sem atalhos,
e encontro
o compasso por que me rejo.

25.9.17

#321

À vol d’oiseau        
sur le dos des dieux
façade du château fantôme
empire sans pouvoir.

Corsário

Fui corsário
sem apelação
sem sequer requisição
por um inteiro,
longo dia.

Sulquei os mares abespinhados
no proveito do perdão
à espera da convalescença
dieta exigida para a recensão.

Foi de propósito
decerto:
corsário destravado
em naus inventadas
devolvendo lugar às almas sequestradas
na demissão de seus vorazes domadores.

Demanda diurética
na fração condenada
ao açaime das trevas,
corsário sem dó
na exaustão dos comoventes azulejos
onde ladrilhadas estão
as profecias sem lustro.

Corsário
porventura sem mar
sem ira a adejar
sem de ideal ser serventuário,
corsário forjado
mas corsário pleno.

#320

Um parecer com alma a contrastar
a solidão-objeto
a destronar.

24.9.17

#319

Tantas as gestas de almirantes
e os pleitos transformados
em malogros.

Módico

Aritmética à lapela
no esconderijo lacustre
sem estética a perfilar.
Migalhas espalhadas no chão vetusto
o cão desossado uiva no arabesco noturno
e as viúvas entretecem o coro lânguido
como de costume
sem céu vidente
nem na alvorada.
As lápides em seu musgo taciturno
dormem sempre.
A aritmética desmata-se
nos contrafortes do despojamento.
Talvez não sobre nada.
A não ser
viúvas esfíngicas
vertendo sobre as mãos gastas
os prantos da mágoa abraçada.

23.9.17

Desconfiança metódica

Um caos sabido
entre cortinas de fumo
densas cortinas de fumo
e as mãos tateando as paredes
por falta de serventia do olhar.
Tem-se medo
um medo determinante
quase angustiante
quando o corpo se move
sem mapeamento,
às cegas.

Uma voz enigma
sussurra:

há de ser revinda a luz
e deixarás de ter medo
mesmo que as trevas que são tuas
não tenham o selo do temor.

Desconfia do predicamento
em julgando amaldiçoada a voz oculta
sem rosto para oferecer.
As mãos transidas
seguem coladas aos poros da parede
dedilhados um a um.

A precaução
nunca foi julgada
excessiva.

22.9.17

#318

Se pudesse ser uma estação
era o outono:
ardilosa decadência
em promessa de catarse.

Os algozes

O arpão 
sem estribeiras
consome a sede,
vaga-lume gasto. 

Noto
o bruxuleio do rouxinol
e a traineira solitária
em fuga. 

Não adianta
o protesto trovejante
a arrumação metódica
o beijo esboçado. 

As nuvens
escondem revólveres
estribilhos desnatados
líricas vozes demenciais. 

Tudo parece um jogo
simulação contida
por dentro da simulação
verticais, paralelos labirintos. 

Nada parece em jogo
capitulação reverencial
medo sacramental
em ausência perene.

Alguém lamenta:
“oxalá tudo fosse geométrico”
e eu protesto
contra a desambição miúda
a estrepitosa mesquinhez
o embaraço sobre o rosto
a maquinação não notada
a virulenta opacidade
a passiva deriva
oculta recusa da emancipação. 

Não há remédio:
não querem
nem em módica dosagem
a indisciplinada emancipação.

21.9.17

#317

A portagem paga
no apeadeiro da loucura,
investimento de primeira sensatez.

Roleta russa

Em penhor contristado
tiros de pólvora seca
cisma da perseguição
um eu mal resolvido.

Dizem-lhe: “vai à bruxa”.

Revolta-se
em revoadas sucessivas de indignação
trejeitando ira tanta,
a rodos
que dela se alimenta
e nela se consome:

perfeita autofagia.

Dele não sobra
vestígio para narrar história.

20.9.17

Água termal

Ah,
se ao menos soubesse
o estio das ideias
o vendaval noturno das almas sem medo
os gatos disfarçados na penumbra
os dedos acesos contra a luz
os candeeiros do avesso em paredes claras
as orquestras vazias
as cadeiras vazias
as flores sentadas à cabeceira
os livros amarrados ao silêncio
as vidraças embaciadas de suor
as alvíssaras das nuvens furtivas
os lampejos dos ossos vadios
os piões da infância
os sultões das verdades gastas
(e por isso improfícuas)
os tiranetes do hedonismo
os lacres das modestas palavras
os beijos em rostos arrefecidos
os beijos nos lábios amados
os corrimões sem ferrugem
as esquálidas fachadas da cidade frágil
as ruas mostruário
os arranjos da alma
a alma desamarrotada
as guitarras troadas ao acaso
o bálsamo distante
as rosas-água nas jarras perdidas
os navios pérola
o sal desenganado em fúteis diálogos
os deuses destronados
os cálices sem rosto
as viagens anotadas na pele
as tatuagens firmadas em sonhos
as danças sem palco
os mastros irados
as garagens penhoradas
os rivais em rios amigos
as noites sem sono
o sono sem noite
a cozinha aberta e jornais despedaçados
os velhos sem medo
os juros sem matéria
e os dinheiros sem jura.

#316

No aval das circunstâncias
devoro a urgência assombrosa
na curva meã da chuva consagrada.

19.9.17

#315

Indignu, “Onde as nuvens se cruzam”, in https://www.youtube.com/watch?v=TKuhFGKZp4w    

Não sei nada de velhice
nem dos escombros do corpo gasto
desde que o meu sonho sejas tu.

#314

O rapaz cobiça o gelado da menina;
prevenção do atlas futuro.

Sangue fervente

Ferve o sangue
desembaciado dos penhores
destravado das baias fundas
cuspindo a ira fundida
sem atalhos profícuos em rima
sem espinhos dentados em dilação.
Ferve o sangue
do fundo de mim
em levas sucessivas
com o fogo incensado
no entardecer vagaroso
e as veias circundantes num esgar de dor.
Ferve o sangue
sem termómetro a uso
nas rodas perfeitas do dia inteiro
desagravo militante dos pesares sentidos
a terra negra humedecida nas mãos
e a boca expedita
que busca
palavras gentis
palavras furacão
os beijos que adornam a ternura.
Ferve o sangue
no fogo desalinhado
no fogo mestre
sem cadeiras por perto
sem lastro a medir o passo
apenas a imensa paisagem por limite
e a vertigem da cadência ímpar
em relógios loucos que se fazem notar.
Ferve o sangue
e eu quero que ferva
no desamparo dos virtuosos
no sopé das varandas marginais
nos mares longínquos, prometidos
na matéria líquida em vocábulos inventados.
Ferve o sangue
eu sei
desejo de carne nas mãos
as veias carnudas à boca do vulcão
na tomada de posse de um corpo não meu
feito meu
pela combustão de sangues ferventes.
Sei o domicílio que é meu cais.
Sigo o rasto do sangue fervente
o rasto de estrelas cadentes
a pulsão indomável do corpo meu
que meu não parece
e se incandesce 
nas achas acesas da fogueira sortilégio
a fogueira que dá corpo aos corpos
e adestra o demais
o vulcão singular que é chamamento.
Ferve o sangue
sem reparo
sem justaposições nem venenos
sem o menor lapso nem tergiversação
apenas com o pulso aberto
por onde se enxameia o suor destravado
o néctar sublime do desejo
as paredes entrecortadas pelas mãos dadas
a inexplicável sede dos poros abertos
na fusão imediata dos corpos
no sangue
comummente
fervente.

18.9.17

#313

Não se exaure o filão
acervo intemporal, imaterial
um vesúvio por dentro das veias.

Pirâmide

Tirando o avesso ao estuque
para nudez desarmada
círios afivelados em sua pureza
palavras sem vento
curadoria.
O norte sem bússola
forte diamante nos despojos da manhã
convoca o filme a preto e branco
em tela amaciada
por olhos sem prisma. 
Porventura
nas areias movediças
sob a ponte ergástula
levantam-se indomáveis cavalos
deitando a crina rebelde
contra o vento desossado. 
Os braços não caem
nem diante de sombras marasmo
ou de demónios disfarçados de elfos bondosos. 
À noite
o norte desnatado
confere notas doces
e os sonhos enfeitam-se
com flores campestres
colhidas no ventre de deusas sem rosto.

17.9.17

Incógnita

E as levas sucessivas de escárnio
sem hipoteca do remorso
como ondas imparáveis
crescentes
dedilhadas pelos perseverantes
sardónicos curadores do género,
que dano trazem?
Dizem:
oxalá má língua não houvesse
e os olhos servissem para falar a eito
nos olhos outros
sem desvios nem atalhos
apenas a lã caprina das palavras destravadas
sem esgar desmentido
ou simulações acanhadas;
apenas a cor das pedras gastas
e o suor escorreito enfeitando 
as palavras por dizer. 
Ninguém sabe
em casos tais
o deslinde do labirinto. 
Ninguém sabe certificar
se a espécie seguidora de tais comandos
seria sufrágio de melhores pergaminhos. 

16.9.17

#312

Das amoras decadentes
promessa
de colheita vindoura.

15.9.17

Boreal

Na variedade de sonhos
uma luz boreal
desenha o mapa transparente. 
Ao acaso
o percalço furtivo tem enlace
fora do perímetro conhecido;
somos apenas testemunhas
na lente proporcionada
sem viveiros cingindo ideias
apenas o olhar desembaraçado
rigoroso.
Sabia que a luz boreal
é a voz certa da quimera.
Em vez dos sobressaltos
(metidos em anestesia líquida)
antecipei as rugas contidas
no tratamento boreal.
Não é todos os dias
que desembarcam fenómenos no cais.

#311

Deixei o rastilho desmaiar,
sentinela do palco sem cortinas
na dívida de palavras lucrativas. 

14.9.17

Contrato promessa

Trazia dentro do peito
as viagens genesíacas
as molduras intemporais
as vidraças dissolvidas de penumbra
as palavras arredondadas
as marés perfumadas
os dados combinando sortilégios
as armas embainhadas em hibernação
uma constelação de danças matinais
e os livros aprendidos no totem do saber. 
Tirei ao acaso
entre folhas vertidas em cima da cama
o jogo estimado 
a magnífica clepsidra transparente:
saiu-me
a promitente aura do presente. 

#310

Vésperas murmuradas
em páginas ágeis
nos mundanos carrosséis sem freio.

13.9.17

#309

Agulhas baionetas dinamite neutrões:
do artesanato iracundo
da humanidade.