6.11.17

Continental breakfast

Das orelhudas raízes da terra
o chamamento:
não olhar para trás
e da terra trazer o sabor a ela molhada
passear no fio delgado de uma gota de orvalho
deixar os olhos no peito generoso
da terra composta em paisagem.
Saber o sabor dos frutos
o nome das árvores
o encanto das mãos metidas na terra
humedecida pela chuva vespertina
ou hirsuta,
sujeita ao estio demorado.
A terra sem terra
isto é
a terra sem o penhor de uma bandeira
nem o lastro pesado de uma cultura
a terra sem dono
(mesmo quando se conhece proprietário):
terra como terra
a terra sem idioma
a terra que fala através das pedras pontiagudas
a terra fervente sob o sol posto
a terra demiúrgica.
Som legado outro
se não o seu telúrico pesar
o regaço inteiro
onde se acolhe
o maternal embrião do resto.

#366

Labéu dos fazedores de banda desenhada:
narrativas dos maus derrotados
(quando tudo é sua antítese).

#365

Por crime contra a humanidade
acuso
os argumentistas de desenhos animados
(por logro induzido nos petizes).

5.11.17

Novembro

Lisérgico.
A escotilha fundeada
no sorriso baço dos velhos
poço das águas estornadas.

Demiurgo. 
À espera do vento favorável
entre o mar e o olhar contemplativo
beijo quente nos lábios manancial. 

Adormecido. 
O encanto do sonho
emoldurado nas páginas vitrais
hasteado no promontório do ser. 

Matinal. 
A estremunhada alvorada
farto manjar que se espera
no esquartejar do jogo em liça.

4.11.17

#364

Hoje sou o que vou ser
sem o remorso
do que fiquei por ser.

3.11.17

Um rosto

Espero do rosto visível
o cais aberto
regaço
a coreografia desordenada
os poemas insolentes
a imersão catártica
um chapéu contra a atmosfera
uma incubadora sarcástica
os braços futuros
o furto da minha alma,
consentido
heurístico.

As obras serviçais
desenganam os provectos ascetas
lendo no tempo atávico
os tronos arruinados
que foram seus.
E o que interessa
saber das cinzas levantadas pelo vento
das rochas tomadas pelo limo
das miseráveis que não dormem
das nuvens lisas tomando conta do sol
ou do sol não exuberante
do sol timorato
servil?
Os dentes amparam o frio
fortaleza sediciosa
no desamparo das viúvas sem lágrimas.

No fim das provações
é sempre o rosto soerguido
o mastro centrípeto
esteio de tudo.
Um rosto.

#363

Aprovado o guião
do hoje vestido
em genuínas vitualhas.

2.11.17

#362

Estrada sem chão
no súbito coalhar das lágrimas,
infundadas.

1.11.17

Perdição

Perdido dos antúrios matinais
foragido dos plebeus de fés intensas
contra os estouvados martírios
contra a ocupação das almas
na evocação do vidro sem lâminas
sem esgares do tempo hipotecado.
Não será empreitada tardia
meter as mãos na largueza da alma
torneá-la no desembaraço da simplicidade
e dispensar jesus avulsos
deixá-los a seus implexos trabalhos
no quadrilátero impossível
onde medram
equações sem fim.
Eu
prefiro a perdição.

31.10.17

Gutural

À espuma volúvel
desde as veias transbordadas
sem leito por cumprir,
uma dádiva sem remoçar:
junto os escudos gastos
os mares esperados
as rimas não logradas
os outros lados esmorraçados
os lados lunares
as proverbiais congeminações
as escritas tentadas
sem juras por alinhavo:
nos areais brancos
sem claridade outra por junto
à espuma escamada em sinais vãos
a carne explosiva
insubordinada
não venal
paráfrase das campeãs palavras
não desditas
não treslidas
puras.

#361

Ao entardecer
o tempo estremunhado
na calma vertigem de um canal
(sob a vigilância dos barcos-casa).

30.10.17

Colheita

Declaro:
não obedecer às vistorias
às alinhadas purificações de pensamento
de rodas dançantes em punho
sob ameaça de facas afiadas.

Declaro:
corromper os saudáveis escultores da atualidade
razia abundante entre a aquiescência
sem remorso, nem pesar.

Proclamo:
a independência absoluta
o firmamento desviado do ouro
o desacerto organizado
em sucessivas estórias sem fim
ou no fim desalinhado das estórias ancoradas.

Proclamo:
doze dúzias de dias sem promessas
o corpo extasiado
o vinho em catadupa
torres de babel dissolvidas
abencerragens sepultados
as facas devolvidas ao sangue derramado.

Contraponho:
um chá dançante ao som de heavy metal
poesia desestruturada
deuses descomprometidos
(para os carenciados de divindades)
um corpete desapertado
o despertador sem corda
uma roda panorâmica sem medo
o silêncio em vez da estultícia
lençóis aveludados abraçando os corpos frios
as mãos entrelaçadas, sem suor
o suor em bica, extático
o mundo inteiro à espera
máquinas do tempo congeminando a finitude
o amor formoso guardado dentro da mão
inteiro e sem tamanho
imorredoiro.

#360

No fortuito acaso
a forquilha do infortúnio
em combustão eliminada.

29.10.17

#359

Pelo raiar do sol
condensada a fortuna 
em seu estado colossal.

28.10.17

#358

Os mundos,
muitos e sobrepostos,
camadas intensas
da olímpica vontade.

27.10.17

Limítrofe

Aqui
deste lugar ermo,
deste ao altar incubador
a visibilidade estrinçada
em veludos deitados no dorso
contra os prognósticos vassalos.
E, num golpe de asa,
esbateste a lonjura
desfeita à imensidão das palavras-chão
temperada pelos sinaleiros da coragem.
Diz-se
que o lugar centrípeto perdeu paradeiro:
talvez esteja algures
ancorado num cais
também ermo.
À procura de refeição
à procura de refúgio
em tuas mãos.

#357

Nos arrumos da alma
tomo desse sumo triunfante
à espera da celebração.

26.10.17

Desígnio

No museu da cativa intemporalidade
colhidas as flores secas
desprovidas das sementes cavernosas
celebra-se com vinho a rodos
e a folia pavoneia-se entre os demais
em passo vagaroso;
que não se incomode a fartazana
nem se resgatem os destemperos
os vesúvios da seriedade,
esses maltrapilhos,
costurando perenemente sombrios rostos
enquanto mergulham em poços vetustos.

Às pazadas
a terra atirada para cima da pesporrência
terra queimada
para não ser o risco de fruição tardia
e voltarem ao monólogo enfadonho.
São os candeeiros desabrochados
na fímbria das trevas em estorvo
projetando uma lua desmaiada
imensamente branca
sobre os despojos de tudo
cuspindo os impropérios
sobre as almas todas.

Deixem-se os obséquios sarracenos
para os despeitados
os volúveis garanhões do vazio
os que se debatem com o olhar franzido
sobre o rosto sem contornos.

#356

Do quase a um tudo
a subtração
entre o medo e o sobressalto.

25.10.17

Rumor

Espólio em cavalete
aguarela vivaz,
intacta
cor dos lábios carnudos
erupções em desafio. 
Morro por dentro da vida
em sentinelas orquídeas
tutoras das cores
tribunais sem apelo,
supremos.
As vozes sombrias
(seleção do medo sem medo)
costuram as pueris confianças
no latejar dos olhos envidraçados
no remoço eternamente prometido.
As coisas não valem nada.
A não ser
o valor que têm nas mãos abertas
desenhadas nas palavras cilindradas
em arabescos singulares
indomesticáveis.
Acabe-se
com o pesar sobre as nuvens
a cicuta disfarçada
o vinho estragado
os poros entrapados na estultícia.
Morte à morte
para sabermos
que a vida é efémera.

#355

Antes código Morse
nas varandas do silêncio,
a legítima comunicação.

24.10.17

Ponto e vírgula

De vez em quando
nos preparos da meditação
(elucubrações em erosão)
desalinhava o astrolábio adestrado
e perguntava:
é insondável o santuário da melancolia
onde se guardam
os subsídios do seu oposto?

Os capitães de navios viajados
oferecendo inestimável experiência
subindo ao altar do conhecimento
declaravam nada saber
outros nada dizer
(talvez guardando
egoístas
a quimera para seu alpendre
talvez escondendo-a para memória futura).
Eram tagarelas de um silêncio pungente.

Às vezes
procurava uma mnemónica sem lacunas
a estrada pura
o pano desembaciado de lágrimas
gente sensível em mares lavados
gatos vadios não furtivos
as chaves enferrujadas e,
todavia,
chaves;
a nudez das palavras cruas.
Procurava acasalar as arcadas da noite
e em lúgubres pesares
depor as estrelas infundadas
trevas disfarçadas de estrelas
no equinócio fosco das congeminações tardias.

Afinal
talvez não fosse existente a demanda
e nada fosse a procura,
ou um nada imenso, vago,
mesmo sabendo
do pouco que às certezas era cais.

Fugi
para a lonjura de um tempo cortês
dando a mão a janelas sem vidro
e pasos doble em desajeitado desafio.

Não quis perder.
Não quis
perder-me de mim.

#354

Tirei à sorte
a sorte minha
ou à sorte
deixei a sorte que minha fora
e sobrou o frio suor.

#353

Animador,
o estendal,
branqueada a enodoada roupa.

23.10.17

Asilo

No esconderijo
balizei o meu nome
pelo rosto outro
destravadas as lágrimas coevas.
E depois
nas fráguas alindadas
depois do caminho tortuoso
desenhei as letras de ouro no chão basáltico,
húmido;
dei nome ao chão dantes órfão.

Alguém disse
que as histórias são camas do avesso
e vemos o tempo avulso
na rosa-dos-ventos por inventar.
Não saberia testar a hipótese.
A caixa de papel esvoaça sem sentido
leva-a a vontade do vento varonil
e as velhinhas amparadas uma na outra
arqueadas sobre o peso venal etário
congeminam a vingança sobre os silenciosos.

Perdi o rasto do esconderijo.

Sobra o fogo de artifício
a parcimónia ausente dos vaidosos
a perene inquietação do entardecer
a perplexidade da infância
equações sem desenredo
e um rosto suado
gasto
que se entreolha ao espelho
e vê devolvido
um rosto inesperado
– o rosto que havia seu
enquanto a infância fora império.

Afinal
era aí o esconderijo.

#352

O cílio abundante
cortina de estamentos diários,
por enquanto.

22.10.17

#351

Terra desidratada
tesoura no calendário
terra queimada
contra o estatutário.

Modelo intelectual

O que fazes
com o batom torcido enfiado no sovaco
o rimmel corado deitado aos lábios
e o Zaratustra na mão contrária
à do sovaco ocupado?
Respondeu ela:
adestro-me nas espinhosas artes
da formosura
e do abrigo contra crocodilos
de afiado dente.

21.10.17

Ciência desoculta

Eu sabia
que depois do céu
tinha por leito o corpo meu
e dos poros incensados
fósforo perene
tirava o húmus perfeito
dentro do cabaz imperfeito.
Eu sabia
que as estrofes seriam magas
e os supores destronados
entre a espuma velada do mar sentinela
e as lombadas gastas e porém sabedoras
das rodas-vivas da vida.
Eu sabia
que enquanto fosse
sem me tresler no que não podia ser
teria trono a meus pés
reino inamovível
estiolando as lágrimas inúteis
condenando a melancolia ao degredo.
Eu sabia
que bastava saber
e por dentro da sabedoria
deixá-la saber-se senhora de si.

#350

Sobra o poente
o rosto tingido pela nortada
um módico de areia nas mãos.