5.1.18

Dever de protesto

Protesto o protesto sem causa
apenas porque apetece
ou apenas pelo dever de não dizer sim
só por ser sim
ou então
por não aceitar embainhada 
a espada diligente da crítica.
A crítica:
pois não se é dotado de perfeição
e a crítica mede o estatuto da imperfeição. 
Dirão,
em protesto contra meu protesto:
se é inata a imperfeição
descabida é a crítica
seja a contundente crítica
ou apenas a crítica pela crítica
(de como quem fala só para não estar calado).
E eu protesto
contra o protesto ao meu protesto:
desembaracem-se as vetustas teias
o penhor da comiseração;
nessa colher serve-se
não uma medida de indulgência
nem a generosa mão estendida
em demanda de recíproco tratamento,
não a salvação que esconde um fingimento,
apenas a punitiva fraqueza
o soporífero remédio da mediocridade. 
Por isso, sim:
devo uma fortuna à critica
e não deixo em hibernação o protesto
quando da voz interior
se congemina o clamor da insatisfação
(ainda que módico,
ainda que módico).

#428

Resistência a desistir
por não desistir da resistência.

4.1.18

& poema, Lda.

O véu transparente
arroz apanhado no restolho do vento.

A cortina sem embargo
penhor do silêncio forte.

O astuto mel silvestre
sementeira da voz contundente.

A cintura cinzelada
música desembainhada no rio venal.

As mãos atiradas à parede
tinta voraz das vozes augustas.

Os pássaros calados
desenho do firmamento visível.

O desejo sobre as fronteiras
válida escritura na gramática dos corpos.

Um gato espreguiçado
no telhado soalheiro da casa deserta.

O próximo chapéu
esteira estendida no alpendre apodrecido.

Sereias sem corpo
piscina estiolada no vapor do entardecer.

O sexo em rebuliço
oposição aos tamancos sonoros das madrastas.

A indisciplina esquartejada
limo boçal dos sacerdotes indistintos.

A perda feita órfã
nos barcos que ganharam à maré.

O tabuleiro sem regras
dados queimados na fogueira do eclipse.

O poema circunstância
súmula das semânticas cobradas.

#427

Antecipa-se a grande lua
o altar dos poetas
sublime notário das palavras cheias.

3.1.18

Estrelas

Se de uma estrela
medrar o sorriso menor
tomo o dia por ganho. 
Se de outra estrela
descerem cisnes elegantes
aprendo a vivacidade de seu planar. 
E se às estrelas
vierem por junto os compêndios 
cimentam-se os poros
em seu odor quimérico
ensinando a quem por perto esteja
as cores fundas do olhar empenhado. 
Das estrelas
as fecundas e as cadentes
espera-se apto estribamento
e um túnel sobranceiro à manhã.

#426

Desvendei a muralha
numa fenda das pedras corroídas
e soube de sortilégios nem sonhados.

2.1.18

Diálogo

Os pés-decibel:
transgressão.
Os pés-diamante:
promessa.
Os pés-maresia:
exultação.
Os pés-fruto:
remissão.
Os pés-juramento:
ouro.
Os pés-cinza:
candeia.
Os pés-mundo:
emancipação.
Os pés-contrassenso:
lucidez.
Os pés-lua:
silêncio.
Os pés-cura:
inspiração.
Os pés-água:
fervura.
Os pés-oração:
inegável.
Os pés-medo:
morte.
Os pés-adiamento:
salvação.
Os pés-sentinela:
torpor.
Os pés-amianto:
recusa.
Os pés-violino:
poema.
Os pés-amplexo:
ternura.
Os pés-baldio:
insubmissão.
Os pés-alumínio:
engenho.
Os pés-alvorada:
mapa.
Os pés-trovoada:
proclamação.
Os pés-poema:
piano.

#425

O presente não tem futuro
mas o futuro
verte a âncora no presente.

1.1.18

Aprendizes

Aprendizes do fogo
nas assoalhadas da noite
sinceros atores das vésperas
em seus raiados olhos semicerrados.

A destreza nas cinzas aspergidas
é singular pergaminho:
apostam as lágrimas de ouro
em ciprestes seculares
sem esperarem nada
sem ousadia registada.

No fim do tempo
talvez deixem de ser aprendizes.

#424

SOS
(save our souls):
e que almas
suplicam por redenção?

31.12.17

Arsenal

Meu arsenal:
candeia acesa
manual de instruções
aurora arguta
mãos hospedeiras
palavras
mar do avesso
pensamento
silêncio impressivo
combustão
rarefeito
clepsidra avulsa
troçador de régulos
sombra irremediável
palco anónimo
irreverência
“devastação inteligente”
veludo
pedregoso
fortaleza sem ameias
combustão perene
um nome só
morada
cais
rosto outonal
riso escondido
penhor
atrevido
marégrafo
regente do silêncio
lume brando
caudal contínuo
fio de prumo,
desarmado.

#423

A madrugada tardia
na enseada que vaza
sósia prístina do forte remediado.

30.12.17

Posse

Não caibo em mim
nas margens tomadas pela loucura
nos promontórios acima das nuvens
nas árvores primaveris
nos relógios vertiginosos
nas viagens argutas ao mundo por dentro.
Não me confino
ao vetusto saber de hoje
às cores principescamente pintadas no céu
às lautas coroas de imperadores
ao corpo inteiro e desenfreado
aos chapéus que hospedam ciências.
Caibo em mim
no sortilégio dos sonhos sem freio
nas páginas devoradas
nos socalcos matematicamente aformoseados
nas caves fora dos mapas
na azulada frota de palavras aliviadas.
Confino-me
aos deslimites de mim
na intemporal maré agitada
em devaneios com assinatura solene
à febre sem estilo
às juras que faltam nas bainhas do pensamento.

#422

Moeda forte
o peito sem algemas
remédio contra a usura.

29.12.17

Profeta

O profeta está esquecido
e da gramática aprova o nada.
Mangas arregaçadas
os braços desaprovam o pretérito:
talvez seja o chamamento
até ao porvir adivinhado.
Fracassadas intenções:
o oráculo estava desmaiado.
E o profeta, esquecido,
aprendeu a identidade.

#421

Do fado desfeito
ou do desfado sem colheita;
uma seara sem sol.

28.12.17

Apeadeiro

Que louca correria
os sentinelas distraídos sem nada verem,
fortunas perdidas no poço seco
petróleos brancos em erupções ciclópicas
e as juras todas recusadas.
Feitorias esquecidas
no umbral corroído por sorrisos astutos
desaprovam os penhores mendazes
devolvendo ao sol o gelo sem forma.
Oxalá os proveitos fossem sentidos
e os olhos soubessem ler nos antípodas do choro
e as pedras de fogo
não iracundas
dessem férteis arroios aos caudais secos.
Que louca correria
que parece não se chegar
a lado algum.

#420

Olhava
por dentro do olhar
na demanda do ângulo singular.

27.12.17

Dístico

Nas abóbodas crepusculares
repousam as lágrimas vertidas
e um arco-íris tardio levanta-se
contra o mastro da angústia.
Não se perde
se não a maré tardia
insurgente contra as lajes furtivas,
um pouco de um nada.
Nas calendas anotadas
depreende-se um furor instantâneo.
Assim se enquistam
as catedrais do pensamento
contra os tomadores que o querem
manso.

#419

O navio
levita sobre a neblina
sem perder a altivez.

26.12.17

Cartografia das tempestades

A janela coberta
por gotas de chuva
– e de saber que cada gota
foi arrancada ao mar vadio
sem sequer o emagrecer. 

Empresta-se o conforto 
do avesso da janela
onde se ouve o crestar da lareira. 
Um cão vadio,
encharcado,
segue apressado,
talvez na demanda de um abrigo,
não incomodado pela chuva abundante. 
Num logradouro 
que se avista a poente
o vento destemperado faz a curva. 

É a tempestade
que fala pelo inverno. 

Do lado oculto do logradouro
as convulsões do mar
em ondas que se atropelam
sobrepostas
num mar anomalamente cinéreo
fervendo o rastilho da tempestade
– ou a tempestade
que incendeia a fúria do mar.

Não há vivalma nas ruas
– o selo da tempestade medonha,
como se por decreto
recolher obrigatório fosse ditado.
Outro cão vadio
desafia a chuva copiosa,
indiferente,
caucionado pelo farto pelo. 
O entardecer antecipado
combina com a luz desmaiada
a tiracolo da tempestade. 

Agora
as tempestades ganharam nomes de gente. 
Os humanos
não desaprendem de ser impostores. 
Achariam rudimentos para domar as tempestades,
emprestando-lhes gentis nomes;
as intempéries chacais
cuidarão de trazer as esperanças a terra,
dissolvidas como papel desfeito
sob o patrocínio
da chuva abundante.

#418

Era como Ícaro:
destemido no rebordo da falésia
antes do despenhamento imprevisto.

25.12.17

#417

Entre luzes desmaiadas
e jasmim murcho
as rugas fundas do velho bêbado.

24.12.17

#416

O fingimento na esteira
sarcástico silêncio lateral
e o lauto sorriso aos colibris aspirantes.

Estival

A enseada
forte diligente
recebe os forasteiros.
Nas areias
douradas e quentes
corpos repousam da fadiga anual.
Embarcações
nómadas e circunspetas
olham sem tresler o olhar.
O luar
armado contraforte
protege os viandantes.
A noite
sem máscara
dá caução à loucura.
A enseada
respira o dilúculo
no estertor da noite demencial.
Sem manhã
olhos refugiados no sono
sem quartel de sonhos.

23.12.17

Cartas esquecidas

As cartas inescritas
sem data
sem morada selada
as cartas das palavras vazias
segredos dissolvidos no mar inteiro.
As cartas dantes
dédalos avistados na espuma rasa
nas catedrais transparentes
sumidas no verbo intemporal.
Seriam
cartas algures
faróis em vez de centelhas
jogos sem regras no espelho lúcido.

#415

Nada,
um longo nada
reduzido ao tamanho de tudo.

22.12.17

#414

Virei o horizonte do avesso
sentado na madrugada
sobranceiro às pedras tumulares.

Costumes

Mandam os costumes
– os costumes mandam muito:
trovas sem freio
não contam no templo dos obedientes
no templo onde se narram justas coisas.
Não é preciso semelhante salvo-conduto
na infusão ética proposta
no tumultuoso extravio de hábitos,
contrafação da vontade.

Desmandam os costumes
– os costumes desarranjam tudo:
murmúrios-lamentos
por interposta pessoa
em excedente mosaico de aferições
submissão aos padrões de fora vertidos,
bolçando uma raiva
que não cabe dentro de quem a insemina.

Não interessam os costumes.
Não interessam os dados feridos.
Não interessam os holofotes ajuizados.
Não interessam húmidas palavras astutas
Não interessam intenções venais.

Não mandam os costumes.

21.12.17

#413

As gotas frias da chuva
curvam-se na pele transida
como pomares em terras depostas.