24.5.18

Olhar inquieto

É este olhar inquieto
acometido por madrugadas baças
que levanta âncora à angústia.
O grito que cala fundo
vertido desde o avesso da garganta
as palavras tomadas pela abundância
uma certa soberba sem bainha
o cósmico destravar dos carris fulminantes
na leitura de um livro sem história
nas suas alvas páginas à espera de autor.
Sabia das paredes viés
no navio encalhado
e ouvia o murmúrio do mar em sossego
à espera que se congeminasse a tempestade
e o navio fosse despedaçado 
à mercê das ondas altivas.
Podia ser produto
da fábrica dos pesadelos:
um rumor sem rosto
a máquina de escrever enferrujada
sobre uma mesa apodrecida
a toalha amarrotada e enodoada
as manhãs parecendo o melancólico ocaso
as espingardas 
deitadas nos arbustos ressequidos
a matéria inverosímil dos estroinas
contra a árvore centrípeta
de onde partem 
as bissetrizes no mapa desembrulhado
a voz doída, cansada.
Visitei o lugar onde há romagens
e não entranhei o mito.
O olhar inquieto 
deita-se sobre paredes mais altas
e traz de volta histórias sem fim.
Oxalá sejam dourados 
os dedos assim contados
e as artes não capitulem aos beócios.

#590

As mais dispensáveis palavras
são as de muitas sílabas
e os advérbios. 
(Provavelmente.)

23.5.18

Os valores

Quais eram os mandamentos
na viabilidade do tempo gasto?
Valores” 
– preceituava-se, à boca grande
contra os imperturbáveis agentes
da desordem.

Ninguém sabia enumerar os valores.

As hostes dividiam-se
entre os que não capitulavam
na demanda dos valores
e os que não tinham remédio
se não contemplar a aridez nas imediações.
Um dileto provocador interpelou:

que interessam as fronteiras dos valores
se em cada um se aninha 
o cimento necessário?

Às duas por três
os deslimites antepostos no baraço do porvir
eram o valor 
todavia não reconhecido como valor,
a fina aguarela selando
em tela frágil e ininteligível
o compêndio dos valores.

(Mesmo que se reduzissem a zero.)

#589

Meto as mãos na terra. 
Espinhos vêm aos dedos
e não sobram cicatrizes para contar.

22.5.18

#588

A maré está alta.
Mais alta é a estatura
que trago no peito.

Workshop

O irrepetível troar do desfiladeiro
sem queixumes
sem deletérios adiamentos
a espada inglória no sexto suor
a sobremesa servida no sextante da lua.
Não conspiro nas margens do rio
transpiro no estirador de onde me vejo
e uno as pontas soltas
no estiolar das fogueiras apalavradas.
Juro os juros viáveis
entre véus que dançam no céu madraço
e mãos sucessivas abatendo-se no sinédrio,
secundário motivo da inércia.
Dizem:
é do correio letrado
a ordem da autoridade;
e eu pergunto:
para que serve a autoridade?

(Esboço, 
em silêncio,
resposta:
para ser desaprovada 
– inglório desmando 
arqueado sobre o pobre dorso 
dos zeladores da autoridade.)

junto com as mãos
a chuva vertida nas folhas rasas
e esmaeço as cores sombreadas
para voltarem em sua vivacidade.
Não o será
à conta de autoridade alguma.
Os acasos
continuam a ser voz tonitruante
embebida nos pilares 
das coisas estruturais.

#587

Meteórico,
o desabrochar da urze
daninha erupção de um vulcão
para inveja dos apressados.

21.5.18

Arquitetos do tempo

Pois o dia é breve.
O dia é tudo.
Virginia Woolf, “Orlando”.

Um amontoado de verbos
esgueira-se da manhã
no tirocínio vagaroso do funicular 
onde vem o dia
e sem saber se nuvens são seu leito
ou se um veludo soalheiro lhe empresta húmus.

O dia que se segue
não é este que é sua véspera;
é o dia que canta
no gorjear das pessoas que se encostam à cidade
no dorso leve dos relógios desacertados
no beijo quente 
à frente de relógios sem ponteiros.
Encontrem-se os braços turgidos
as maçãs dos rostos ruborizadas
e não é pela vergonha;
sentimos o pesar do tempo
sentimos a incandescente vela de onde vem luz
e arrasta-se o dia
desapressado
ele próprio esbulhado de dia que é
na imagem retida pelos dedos famintos.

Temos fome
do dia sem interrupções
e, contudo,
o dia emoldura-se na perene textura dos corpos
e deles bebe a mesma imorredoira eloquência.

Somos nós 
que fazemos do tempo 
o tempo que ele é;
somos insubmissos
e não capitulamos no vazio onde se consome
o tempo devorador:
não sabemos o que é
pois sem nós
não tinha o tempo seus tutores.

#586

Quantas destas palavras
são exuberante máscara
de uma alma mortiça?

20.5.18

#585

Dividido o espólio
sobrou um número
ainda maior.

A descoberto

A descoberto
sem telhado por utensílio
que as cores do céu 
não precisam de proteção.

Não é metáfora má
(não há metáforas más);
fora de horas,
porventura
no arremedo das paredes 
as mãos caiadas de medo
de serem o desmedo inverosímil.

O descoberto derriba o sagrado
pois máscaras são avulsos ardis
e a pedra forte
de onde desabrocha a água fresca
ensina a acolher os braços errantes.

Sem telhado por utensílio
na aventura do dia comprido
o corrimão em cima do abismo 
(por companhia)
na vagarosa degustação 
do tempo desamparado.

A descoberto
por imperativo do modesto desapego
sem o viés das cores embaciadas.

19.5.18

#584

Desenho
com o fogo da saliva
no púlpito do teu dorso
o cais do desejo.

18.5.18

#583

Se bebesse parágrafos
era apóstata
(confessava o escritor sem regras).

17.5.18

Dois gumes

Num rosto tingido a suor
o revólver desembainhado
costura a ira 
que não chega a ser alvorada.
O coldre descosido
deixa um líquido restolho
a outonal seiva
e o cachalote à deriva 
fica à mercê dos caçadores.
Em inesperado golpe de sorte
uma onda avassaladora colhe os caçadores
e o cachalote moribundo
refaz-se na companhia das balas perdidas
olhando-as como carrasco malogrado
como olha 
para o rosto assustado dos caçadores
boiando na espuma do mar.
O caçador torna-se presa
como quem vira um avental do avesso
e joga os dados outras vez
à espera de vez 
para regressar ao pedestal
onde se fruem as vítimas dos infortúnios.
As facas 
têm sempre dois gumes.

#582

Que não seja inquietação,
meu amor,
o amanhecer plúmbeo
que em meus olhos
todas as manhãs o sol se levanta.

16.5.18

#581

As lendas 
devem ser todas religiosas
(pois se se diz, insistentemente,
“reza a lenda”).

Léguas ganhas

As léguas são compridas de mais
ou os demais não se auguram confiáveis
e os passos longos são pequenos de mais
para todos os que se constituem nos demais.

Pode ser da bitola
ou apenas um erro de medição:
quem será o juiz do pleito
é interrogação sem resposta.

(O que deixa em aberto 
o pleito,
para deleite dos caóticos.)

Não devemos confiar na sinalética
nem nos palpites dos circunstantes
a menos que sejamos sozinhos
e da solidão tenhamos excruciante dor
e a planície sem fim
julguemos nossa sepultura;
antes a errância
as estradas embotadas nas encruzilhadas
o séquito de desvios e ramais
uma teia tecida na curvatura da mão gasta.

Que importa o tamanho das léguas
se o âmago está no caminho 
– no que já foi feito 
e no que houver por fazer.

#580

Não havia maiúsculas,
por preguiça:
nas maiúsculas
medra a demorada altivez.

15.5.18

Sem medo

Fujo do medo
do medo que não sei ter
do medo que cobre as veias de cinzas
do medo a pedir meças ao medo.

Nas velas atiçadas contra o vento
esboço uma falésia asilo
e do guardanapo amarrotado
retenho as moedas que afugentam 
malignos espíritos.

Não há lugar ao medo
sem ser coragem desassisada
sem conter uma demencial audácia
que arremete contra as muralhas do vício.

Fujo do medo
não por ter medo
apenas 
por ter medo de vir a ter medo.

#579

Não tenho por hábito 
dar atenção a destroços. 
Podia acreditar em seus méritos heurísticos.
Não consigo.

14.5.18

#578

Vão (moderados)
no vão (da escotilha)
eles vão, em vão.

Invasão de campo

Acredita na cidade
nos segredos ocultados pelas janelas
nos jardins efervescentes
nas ruas e sua miríade de flores
na música sussurrada pelo vento
no tardio endosso da manhã.

Acredita nas invasões não invasivas
no magistério dos anciãos
no completo adornar do sol
nos navios que enfeitam o estuário
nas muralhas que guardam milénios
no intempestivo grito de um poeta.

Acredita no que houver por acreditar
no volúvel volteio à mercê dos humores
nos epítetos esvaziados
nos pólenes que deitam os juros da vida
nas vitórias que se orquestram em recato
na humilde lágrima vertida no rosto.

#577

Nunca fui a Cracóvia.
Cracóvia pode esperar.
(Cracóvia: pela musicalidade da palavra.)

13.5.18

#576

A máscara sem dedos
odisseia com jura
no planalto aberto ao vento.

12.5.18

Terra

Terra do nunca
de antes da madrugada
oblívio que rumoreja.
Terra de agora
do entardecer que cicia
memória que prospera.
Terra soalheira
dente de leão ao peito
avenida que desfaz farsas.
Terra quente
na manhã orvalhada
violino desenhado no céu raiado.
Terra das terras todas
o todo vazio
seara no viveiro das coisas férteis.

#575

O historiador
cultor de Rosa do Luxemburgo
tem a meia rota 
do tamanho do dedo grande.
É para arejar ideias.

11.5.18

Estrangeiro

Saio de mim. 
Vou pelos arruamentos
onde se enquistam molduras desiguais
os estruturados lanços 
do que meu olhar não contempla. 
Revisto cada enseada
talvez as areias molhadas invistam
o puro sinal das diferenças
e então
na companhia dos navios em redor
sinais de fumo venham ao estuário
onde escondo a solidão. 
Descubro os incomparáveis lugares
que fogem da penumbra
e noto
pela primeira vez
que me consigo ver por fora de mim:
vejo uma figura;
parece a distorção de um espelho
um passo vadio contra as varandas pueris
os contrafortes dos lagos intrínsecos
um chapéu sem medida
a medula funda nos ossos húmidos
palavras entoadas num viveiro oriente
propositadamente despojado de armas
o peito nu dado ao imponderável inverno
armadura sem doenças inventariadas. 
Não soube dizer
se ao ver-me por fora de mim
o vulto era eu em reconhecimento
ou se me vi como estranho 
(de mim mesmo). 
Não consegui tirar fotografia. 
O aparelho ficara escondido
no fundo da minha alma. 

#574

Ah! as certezas:
sitiadas por titubeações, 
transfiguradas em certezas dissolventes.

10.5.18

Moda sem modos

Trovas modernas:
o tempo não tolera a letargia
e os seus argonautas

(como se cavalgassem 
nas amarras de um relógio)

insubordinam-se contra o vazio. 
No fundo
exoneram a história
projetando-se para o fado que é incógnita

(menos o sê-lo, 
quando chegar seu apeadeiro). 

Enquanto esperam
esculpem o tempo que vem parar às mãos:
as modernidades sucedem-se
com a mesma voragem
dos dias sucessivos. 
Na lente baça da desmemória

(entretanto cultivada)

de tantas trovas modernas
já não mantêm inventário
dos modismos em acelerada substituição. 

Às trovas modernas
o património da desmoda:

todas decaem no seu fulgurante emudecer

o passo cedendo
a outras por sua vez efémeras.
Até se chegar ao nirvana:

é moda 
não estar em moda. 

#573

Não há moral da história. 
Há um mural para a história.