16.8.18

#689

No colo de páginas sem preço
onde se encantam palavras
costuradas no dorso da seda.

15.8.18

#688

Estarrecido
é um habitante de Estarreja?

#687

Estarrecido
o fantasma inquietava-se
com a luva fria
adejada por gente com rosto.

14.8.18

Silhueta

Que horas são?
Na baça luz
que emerge na penumbra
não sei dizer as horas que são.
Junto ao nevoeiro que esconde a noite
o desinteresse pelo tempo
e esqueço que há relógios.
Por fim
desconfio que a intemporalidade
não é um sonho
(como são os sonhos,
inacessíveis).

#686

O cofre fraco
algures na paisagem sem freio
alberga os sonhos amedrontados.

13.8.18

#685

Se seara é campo de cereais
por que se não escreve “ceara”?

Safra

Sei de mim
apesar das pontes sem meada
dos labirintos sem chave
e da neve que não cai no verão.

Sei de mim
no pináculo das horas centrípetas
onde arrumo o sol 
num lugar determinado ao acaso
na avulsa memória das páginas corroídas
em ilhas guardadas do olhar.

Sei de mim
no frémito da cultura
advertido para o santuário do conhecimento
paredes-meias com penhascos medonhos
grutas onde o frio amadurece
em palácios erguidos no fio de um nada.

Sei de mim.

E sei de mim
na ausência de sextante
na omissão da música
nas estrofes que desafiam a autenticidade;
sei de mim
no fervor do original
ditadura que em mim se sobrepõe
acreditando
que vale a pena acreditar.

12.8.18

Sucessivamente

As traves do dialeto
empréstimo sem juros
ou apenas 
janela que recebe
pétalas outonais
a neve promitente
no amparo de tapetes fundidos
ou apenas
bússolas diametrais
minaretes sem ouro
o corpo forte no secular comboio
o desejo pressagiado
nos interstícios da alma não esquecida
desde a funda recolha dos sedimentos
ou apenas
cartas irrisórias
tabuadas sem regras
preces sem religião a comandá-las
e um discreto sorriso jogado
nas varandas intemporais
de onde sobeja 
a cultura desvendada
ou então 
os dedos untados por defeitos
a mísera condição humana
o maior legado de divindades 
em garfos calmos
trazendo à boca o antídoto da letargia
jogando as contas fecundas
num caudal prolixo
ou então
a maresia sem mar por perto
apenas a inconfessável imaginação
em golpes furtivos
propostas de aprendizagem imorredoira
o anúncio não solene
da humildade com cobertura
o cheque visível do olhar descomprometido
escudo armado nos despojos de iras não datadas
resgatando do sol sua aura
semente vitória no abraço do tempo
ou então
a sensível lágrima por perto
rio galgando as margens
e atirando aos aluviões nutrientes esperados
o ditado sem palavras possíveis
na cama desarrumada
onde tiveram lugar
os sonhos de amanhã.

11.8.18

#684

Aqui,
onde a Europa
se precipita na Ásia.

(Istambul)

10.8.18

#683

Saciei a eternidade 
frémito devoluto 
espelho na sua totalidade
baço.

9.8.18

O imaculado impossível

O guia turística explica a virgem Maria,
a imaculada 
– sem pecado.
E entendo 
todas as insuficiências da espécie,
à partida
condenada ao seu malogro:
se a criação de cada espécime 
depende
de um ato cuja negação 
é a essência da pureza, 
da virgindade
de que exemplo é a imaculada de Maria,
ou Maria não representa a humanidade,
ou a humanidade,
que aprende a gostar de sexo às talhadas
como pressuposto da reprodução
(e, por consequência, 
das atividades extracurriculares),
é um erro de casting.

7.8.18

#682

Como pode
a mulher ser a serpente do homem
se o homem traz em si
a sua própria serpente?

(Depois de uma dança do ventre em Uhçisar, Turquia, com inspiração em Adão e Eva)

5.8.18

A pira das divindades

Num convés adormecido
os raios da manhã sussurram
versos sem atalaia. 
No miradouro esperado
duas estátuas sondam o dia
e os viandantes jogam no catálogo
as melhores cores justapostas
a corda justa ao corpo
antepondo o milagre a destempo. 
Os confettis chovem ao desembaraço 
enxugando os rostos suados:
sem asas por perto
ninguém consegue voar. 
Não é preciso. 
Levitam
como se houvessem açambarcado a pureza
e no púlpito de si mesmas
se imaginassem reis e rainhas. 
O espaço alvar
onde as lagoas aprendem o entardecer
na luz desmaiada que nelas se retrata
é o templo onde se engalanam
no repasto sem mandamentos
os que mandam nos areópagos. 
Já não conta a fuligem
deixada em escombros.

#681

Lambia as botas (é certo).
Temperadas com aromáticas ervas
e a proverbial humilhação (disfarçada).

4.8.18

#680

E eu que medo também tenho
de medo não ter
na hora de medo ter.

3.8.18

A.M. (not P.M.)

O amanhecer não sitiado
uma convulsão estrepitosa
a razia da modorra.
Afeiçoa-se o corpo
afeiçoa-se o raciocínio
afeiçoa-se o verbo ao feixe depois
e escolho a pista oculta
para desenhar a lua vespertina.
Confere a cara com a coroa:
o lado lunar é o avesso de um avesso
e o desmodo das palavras atraiçoadas
emudece o sentido das palavras.
Talvez sejam farsantes;
talvez abjurem o lugar-comum
as paredes estreitas por onde correm;
talvez os modos se sopesem
contra as barcaças podres
as bocas desdentadas de pescadores idosos
ou os modos artificiais 
dos indigentes da 
(assim chamada)
“alta sociedade”.
Talvez seja altura
de abdicar de todos os talvez:
e, sem a timorata cautela,
estrear a não diplomática secura de termos
sem medo de não agradar
sem medo de digladiar motivos
sem medo de poder ser aprisionado
no templário dos párias.
Para depois
poder honrar a manhã
inaugurada com as honras devidas às manhãs
como a barricada onde se estiolam os meãos
e toma tamanho
o desassombro que desponta na alvorada.

#679

Dá-lhe com a alma” 
(de acordo com a música).
E apercebo-me 
da falta generalizada
de lhe darmos com a alma.

2.8.18

Refinaria

Abreviatura
– as palavras em dieta.
Um poço:
diadema de desencontros. 
Maus, os modos da menina:
um banho de maneiras. 
Uma página amarrotada 
– as rugas do contratempo.
A lupa a tiracolo:
contra a miopia das ideias. 
O texto rasurado 
– selo da humilde fragilidade.
A chuva metódica:
planisfério dissecado. 
As frases embaciadas 
– e a paciência açambarcada.
O rosto decaído:
a fortificante água do mar.
A matéria impura 
– a refinaria a preceito.
E o que é refinar
(de re-finar)
se não a morte repetida?

(A refinaria é uma mentira.)

#678

Convoco o olhar espartano
no imperativo
das tentações dissolvidas.

1.8.18

#677

Se me dessem um refrão
oxalá fosse oximoro.

Passaporte

Cobro o dobro da chama
na vaga inclinação das sobrancelhas
em seu desenho arqueado
púlpito das lágrimas não vertidas
conspiração encenada contra os sentidos
intuição sem regras.

Cubro com o corpo
a poeira afogueada no parapeito das sombras
sou caução
contra os tóxicos elementos
as marés sem freio
os olhares de reprovação
na maré-baixa da dissidência.

Custa apenas o módico repensar
nas redes tresmalhadas
(não importa)
válvula aberta para o ver que se não vê
para o dia sem calendário.

Caibo no logradouro sem limites
edil sem coroa
soldado sem disparar arma
pretendente ao vazio do sossego
(ou ao sossego do vazio,
ainda não decidi).

Na mealha do mar,
onde se encontram os ecos audíveis
dos capatazes dos sentimentos,
desabotoo a porta escondida
e desconfio
que tenho o mundo inteiro,
o mundo em minha querença,
a bordejar os meus pés.

#676

Sei
pelo silêncio do mar
do aroma apanágio da alma. 

31.7.18

#675

Cavalo come rainha:
a zoofilia pode ser no xadrez.

Saldos

Terreiro minado
das mercancias em saldo.

Não têm soldo capaz
os inebriados
os contumazes desaprendizes
seguindo a centelha ardilosa
antes de desaguarem no poço fundo
onde se empenham
(literalmente).

Salda-se tudo:
até a honra
que as honrarias 
são funestas imprecisões sem serventia
estrofes sabotadas no sofá gasto
e as mercancias a que não chega o soldo
convocam a creditícia lamúria.

Algumas mentes avençadas
tudo entenderam em devido tempo:
até os mais previdentes
reféns se põem da conspiração 
dos endinheirados:
o crédito é uma droga dura
o martelo pneumático 
que percute sobre as almas deslumbradas
com o preço da esvaziada alma
nas mãos dos pérfidos credores.

Algumas mentes avençadas
assim avisam
(sem cuidarem de aliviar 
o registo de interesses
em ocultação de suas avenças particulares).

#674

Auferir o infinito mapa nas mãos
enquanto corre o sonho
em seu fado ilimitado.

30.7.18

Autoteatro

Desossado
fiz o papel de mim
nesta peça sem preâmbulo. 
Suei a carne viva
no corrimão da estufa outonal
sem conselhos de previsão
ou oráculos em fornos avivados.
Por dentro da espátula forçada
não soube dizer
se foi difícil o papel de mim mesmo:
exigi o desprendimento cautelar
a emulsão de mim no seu exterior
nos preparos desarranjados
em constante vociferação
contrariando a corrente do cais.
As vezes que admiti
ser a personagem de mim mesmo
foram as mesmas
que adivinhei ser sacerdote
envergar uma sotaina e pregar mandamentos
ou a farda estiolada
e pregar em paredes nuas.
À saída do palco
dir-se-ia vir detido pela diferença.
Fazer de mim
contra os estilhaços de um espelho
(estes eram os preparos do palco
entre a fuligem noturna
e uma audiência em silêncio 
– ou, por vício de escuridão, 
de audiência sem audiência)
foi como tirar uma fotografia do avesso
e dar ao tabuleiro o mesmo jogo.
Folgo em saber
que não havia vivalma na audiência.

#673

No azulejo gasto
selo o inconfundível lugar,
o umbral das histórias sem ermo.

29.7.18

#672

Escrevo
porque não sei
de matemática.

28.7.18

#671

Marquei a casa da partida
no dorso do mapa 
(com uma faca):
não espero pela casa da chegada.

Infinito

Nesta cordilheira de espaços
desarmadilho as palavras:
agora não têm véus
e nem os eclipses contumazes
as conseguem deter.
Considero as hipóteses;
de vez em quando
a esquadria do tempo
incomoda-se
com os tenentes da soberba.
Acauteladas as velas por desembainhar
sobram todas as hipóteses
jogadas no palco por inventar.