17.10.18

#767

Não cuido do que saibo
ou não sei do que cuido?

#766

Com as mãos frias
o vulto prostrado,
decaindo,
à espera da misericórdia.

16.10.18

O covil dos eruditos de bolsos esvaziados

Belos
os ares sem purulência
os habitados pelos versados
de artes várias
penhores da recomendável moral
artistas jagunços do oblívio
obnóxios enceradores da esbelta paisagem,
gurus.

Atenciosos
os palcos acetinados
pelos sapatos sapientes das sumidades
os velejadores de mares sem maré
os pimpões descamisados,
artesãos.

Elogiável
a facúndia coloquial
o palavrar gongórico
emulsionado na complexa receita do vazio
dos moradores dos altares pagãos,
paradigmas.

Prefiro:
o pretérito tão imperfeito
a humilde necedade
a verossímil simplicidade
a desostentação
a desfiliação
a sabedoria desossada
a mão aberta em sua mapa imperfeito
a infecunda palavra
os atropelos à gramática
os atentados às sombras que escondem ditames
a escassa excitação com o excitável
a formidável escassez de ideias.

Prefiro.
Em vez da ganância
dos ilustres letrados
os mais não democratas entre os democratas
pusilânimes estafetas da verborreia pueril
embebida no abastado pensar,
ascetas da estultícia reprimida.

Prefiro-os
de bolsos vazios
envergonhados de sua própria nudez.
(Não é caso para menos.)

#765

A cisma que se instala,
forasteira;
escrivã de sombras meãs.

15.10.18

#764

O crepúsculo 
é a caução dos segredos. 
O lugar alcançado pelo olhar 
oferece uma centelha fulgurante.

Astronauta

Como no corpo de um astronauta:
o peso sem peso
as veias levitando no porão da magia
e o olhar guloso
abraçando o planeta inteiro
por dentro da sua pequenez. 
Da varanda singular
as trovoadas formando-se
contra os medos menores
os mares que saqueiam a terra firme
(assim dissolvida)
os mares ora escondidos nas nuvens
ora na sua imensa massa descoberta
o feitiço do equilíbrio
de um tão frágil equilíbrio
o contraste com o colossal planeta
visto anão ao olhar do astronauta. 

Como no olhar de um astronauta:
a pequena mão
capaz de abarcar o planeta inteiro
da sua nudez expondo a fraqueza
à mercê do astronauta emudecido
uma miríade de estrelas por testemunhas
e a sua cobertura
no diametral jogo de sombras
que é inesgotável conhecimento. 

Não são
as trémulas mãos do astronauta
juízes embebidos na figura cautelar de Témis
nem são
as mãos de um distante ator
a comandar as vontades das marionetas
depostas sob seu olhar. 
Diga-se:
o astronauta foi ao espaço sideral
aprender como são os sonhos.

Não fosse ter data marcada para o regresso
o astronauta 
podia passar todo o seu tempo
na contemplação da paisagem 
que se abre sobre si.
Agora que não adeja em órbitra
o astronauta
apascenta os sonhos contínuos
aquelas imagens irrepetíveis
guardadas no fundo da memória. 

#763

No assoreado estuário
as palavras esbarram no lodo
perseverantemente à procura 
de legado.

14.10.18

Quotidiano

Que o colibri se engana
aportando a cais equatorial
é da mesma têmpera
dos mandantes legitimados
que proclamam a mitomania
(sem a admitirem)
na contrassenha
do insulto à nossa inteligência.

#762

Vejo muita babugem
um deserto sem fim
a aridez no ponto de rebuçado.

13.10.18

Lava

A lava
não tem medo
do mar.
Sabe que o mar
mal tenha sentido da lava
a molda numa sumptuosa tela
as formas abruptas que convier
o mais próximo da quimera.
E a lava
que desce na demanda
do mar
não se importa
que o mar
a retenha em suas entranhas.
O fogo não vinga
quando tem no mar
o seu biombo.

#761

Até as centenárias árvores tombam
sob tempestuosos ventos.

12.10.18

Reciclagem

Veredicto:
o impensável estiolar da abóbada
que encima o pensamento
é a alfândega das palavras. 
Crestam ideias
fervilham no mapa desembainhado
e afivelam-se, 
exauridas,
no corpo gasto das negações. 

As sílabas vagarosas não ajudam. 

Diz-se
que meteóricos pensares
não são bons conselheiros;
com o arrastar das sílabas
sobra o mosto árido
o papel onde assenta o desperdício
a espetacular falência do entardecer. 

Procuro uma prova de vida.
Procuro uma pétala perdida
o despontar da manhã radiosa
(ou não: apenas um despontar)
um caldeirão em ebulição
a mesa rasa sem cadeiras à volta
o silêncio 
a troça dos solenes
a visível aurora empenhada
a intervenção sem mediadores. 

Conjugo o verbo no tempo certo.
Julgo
que conjugo o verbo no tempo certo.

Na encruzilhada de imagens
deixo as palavras emaranhadas
um hábito por fazer
com a ajuda de improváveis estetas. 
Atiro a perfídia ao ar
como se fosse moeda avulsa
e junto com as mãos húmidas
os destroços da ousadia. 

Não sei mais nada. 
Não quero saber mais nada. 
E todavia sei que é pouco
muito pouco
tudo o que sei:
por mesmo o que julgo saber
não ter rima com o conhecimento
sob os auspícios do que não sei desconhecer.

São imprestáveis
as palavras assim ditas. 
Abatem-se como trovoadas medonhas
ou como sismos apocalípticos
desmentindo tudo o que esteja à volta 
– até o desconhecimento 
que se desconhece.

#760

O turvo estipêndio 
no úbere dos fracos,
miséria de fortuna aos pobres.

11.10.18

Estatuto

Quero
o conforto
de teu regaço fecundo
a muralha onde escondo
meu peito
das contrariedades militantes
o despojo de tuas lágrimas
para meu acetinado chão
o rumor ciciado ao ouvido
sementeira do desejo sem freio
esteio de vícios sem matéria.
Quero
o doce toque de teus dedos
a maresia penteando meu rosto
a vertigem sadia
uma droga fervente
ao colo do meu colo
a serventia do caudal torrencial
um beijo noturno
quente
o teatro de nossos seres
a espuma 
desenhado no uníssono de nossas mãos
a sede de nós
a sede de sermos maestros e compositores 
das partituras por que nos regemos.
Quero
o lugar que somos nós
património singular
a quimera no fundo dos corpos
irradiando espelhos sem arestas
reunindo numa partículas
todas as palavras mareáveis
todo o amor.

#759

É preciso 
ter tempo
para ter tempo.

#758

Quem pode dizer
“aqui estou 
todo do avesso
sem nada a ocultar”?

10.10.18

Cicatriz

Sangro
a chuva que se desfaz
no meu peito.

O magma fundido
voraz
penhor da chave lúcida.

Desenho
a torrencial noite
sobre as ameias puídas.

No pedestal
onde a medula cristaliza
e as aves demandam o infinito.

A cruz branca
demora
nas rosáceas tatuadas no rosto.

Já não sangro
o sangue que não tenho
rico na pureza da carne cicatrizada.

#757

“Correr atrás do prejuízo”. 
Deve ser de leva marxista.

#756

Branca, a roupa lavada
faz do estendal
o viveiro fecundo de olhos imperturbáveis.

9.10.18

Holograma

O belo
desta lux bruxuleante
é a serenidade com que recebe
as mãos cheias.
Congemina-se no céu desenhado
nos preparos da manhã avisada.
Nela medra
a singularidade
o sortilégio de um verso achado
no deserto de ideias
uma vertigem calorosa
a promessa não reclamada.

O belo
desta luz bruxuleante
é contagiar-se na carne funda
dando patente contra os estorvos
falando no silêncio
e, todavia,
mais alto do que vozes estridentes.

No sopé da vela que hasteia
a luz desenha um diadema.
A corda estendida no planisfério exausto
a favor da maré cingida
nos dedos abertos.

#755

Desce a cortina
e o dia faz-se baço
na intormentosa recetação do verbo.

8.10.18

#754

O teu sorriso:
janela que se despenha em meu peito
colóquio maior que uma lição
idioma, oxigénio.

Caução

Povoo
a métrica do saber
com a distância medida
à distância de quem sabe
uma folha em branco. 
No remate das costuras
ficam as cicatrizes sem chão. 
Conspiram-se adivinhas
contra o forte do saber com adidos
e são negras as virgens que buscam sede 
na armadura de um qualquer
diz-que-diz-ouvi-dizer
ou
li-na-democrática-enciclopédia.
Rasuram-se as lágrimas do medo. 
Vociferam audíveis impropérios
contra
as estantes feitas de vazio
contra
os estultos operadores de caixas registadoras
do mais duvidoso que as certezas contêm. 
Podiam sapatos de cores exóticas
desafiar os diligentes próceres
os apedeutas disfarçados de gurus
patronos de um coletivo enfeitiçado
onde,
porém,
as flores morrem vidradas
dentro de seus mortiços esqueletos. 
Oxalá que as estrofes
fossem hinos simples
demonstrações cabais
possivelmente boas canibais
dos obnóxios emparelhados 
da sabedoria arbusta.

#753

Não me escondo da felicidade. 
Ou melhor:
escondo-me na felicidade,
um esconderijo deleitoso.

7.10.18

Espelho

O homem ao espelho
desafia a sua identidade.

O homem ao seu espelho
desmente a raiz quadrada da alma.

O homem do espelho
terça um contrato contra si mesmo:
um colossal monumento
eivado de equívocos por toda a parte
o distrate da baça pele sem verbo.

O homem e um espelho.
Nunca foi bom remédio. 

#752

A ceia que marejo
no bolbo da mão
par perfeito do desejo 
em combustão.

6.10.18

Afluente

Cumpre-se a vontade. 
A candeia acesa
abre as portas à profecia. 
O estremunhado rosto
desmente a planície emaciada. 
É o pulsar das veias. 
O pulsar das veias
em sua fermentação vertiginosa
que deslaça as teias montadas. 
Nas veias
onde corre o mar sem peias
o estuário na ignição da trovoada sentida. 
As lentes
já não desfocadas
amparam a latitude do olhar. 
Desembestada a infecunda erudição
aos pés 
o tumulto sadio
do mundo inteiro por apreciar.

#751

Mutilada a decência
sobra a indiferença.

5.10.18

Mal menor

A testemunha amordaçada
na celebração dos bacantes
espera no escuro.
Estranhamente calma.
Não vê:
não pode ser testemunha.
Sente o ruído à volta
as movimentações (conspirativas)
uns vagos reflexos de sombras
acertando contas com a rosa dos ventos.
Fala-se um idioma que não conhece
vozes masculinas e femininas
umas infantis;
uma pessoa junto de si
ajusta a venda que embacia o olhar
a pessoa exalando um odor pestilento.
De repente,
ninguém sobrou.
Não sabe se foi ato contínuo
ou se esteve inanimada no entretanto
(o lugar ficou vago num ápice).
As mãos já não estão amordaçadas.
O que quer
é desvendar os olhos
voltar a ser o epicentro da sua vontade.
Não há ninguém à volta.
Nem vestígios da presença de alguém.
O lugar parece ermo
como se fosse 
um lugar virgem ao conhecimento humano.
Ao menos
a testemunha de coisa nenhuma
já não está amordaçada.
É um começo.
Um começo preferível
a continuar amordaçada.
Mesmo que agora 
a percorra um medo intenso
por não saber do seu próprio paradeiro.

#750

Não é um corpo puído
a metralhadora assestada
no coevo cruzamento da história.