9.11.18

#795

Luto contra o luto
estrénua luta
que dou por vencida.

8.11.18

Lúgubre

O funâmbulo articulado
erudito de ciência vária
letrado nas artes seculares
deixa-se enamorar 
pela súplica de um palco,
um palco que seja,
desde que de palco tenha vagar. 
As medalhas exibidas,
um régio manjar
que desautoriza recomendadas dietas,
aquelas que aconselham
a modéstia do trato
a humildade dos que,
mais do que dizem saber,
sabem que muito maior é o inventário
do que está por saber. 
E todavia
a ave pernalta
não ensimesma
(tem medo da experiência do avestruz):
cinge-se
ao sótão do pensamento
em pesporrente convencimento
de no sótão ser elevado, distinto,
o pensamento. 
Terá na mira da equação
o avinagrado verso de Pessoa:
“moro no rés-do-chão do pensamento”
para afivelar a cagança de seus pergaminhos.
Mal ocorre a lucidez de saber,
entre tão avassalador património de ciência,
que os sótãos pertencem
aos lúgubres síndicos das farsas desentrapadas,
aos contumazes dizedores da magra sabedoria. 
Pois no rés-do-chão do pensamento
moram os que o travejam
(ou não fosse o rés-do-chão
o púlpito dos esteios
em que se escora o pensamento pensado,
modalidade preferível
à do pensamento ilusionista).
E os sótãos
lúgubres desterros
onde armazenadas estão
as sobras do que deixou de ser pensamento.

#794

Escolto o vento
o agasalho
que o entroniza suserano.
(Desenho de uma tempestade)

#793

Os meus dedos
filigrana
em teu corpo.

7.11.18

Suado

Desta transpiração
não levo nada.

Água
água perdida 
no imponderável bocejo de raça
com que degraus inteiros se consomem.
Pudesse contemplar os poros exsudados
pudesse anotar as gotas desprendidas
em visão de câmara lenta
e autopsiar cada gotícula
como investigação da origem
do sal transbordado pelo suor vertido.

Da transpiração
prometo tudo.

Os cometimentos ímpares
a valentia que é poço sem fundo
as páginas a eito, devoradas,
o linóleo onde se deita o sono
os vícios trespassados.

Do suor remediado
o peso farto 
esforço
um jogo jogado da frente para trás
no inverosímil projétil atirado à lua.

Convençam-me do contrário.
Convençam-me:
da estéril proeza emoldurada
notário perene das implausíveis olheiras
da facúndia sem tradução
dos beijos sem lábios a preceito
da posse resumida ao vento entre os dedos.

Convençam-se:
o suor é sal não rarefeito
penhor dos poros não contidos.
A exalação das excrescências
na devota purificação do corpo.

#792

O sanguíneo estiolar das mãos
permeáveis ao outono, 
o aroma da notável decadência.

6.11.18

Pistoleiro sem balas

Pistoleiro desavisado
em início de carreira
(talvez)
mergulha no coldre,
vazio,
e soma o sumo iletrado
dos facínoras sem arma.
Está nos antípodas
destoutros facínoras
desarmados de bélicos meios
mas penhores do pior dos venenos:
a insídia 
a meticulosa conspiração de meios
o ardil repetitivo
o soez ajuramentar de tudo e do seu contrário.
Serviço lídimo feito será
de vedar
por todos os meios
(até os ilegítimos)
o manusear de estrepitosas armas
ao facínora desarmado.

#791

Especial de corrida
e não é bicicleta:
é o historiador do futuro.

5.11.18

Cadafalso

A gramática do lamento:
um coro choroso
no luto imorredoiro
logradouro onde medram vítimas
sempre tão pesarosas
consumidas pela dor excruciante
os punhais mais implacáveis
metidos a fundo e a frio na carne flácida
sempre viciadas
na comiseração de que são pedintes.
A ladainha do lamento:
fuga aos areópagos
onde as pessoas são pessoas
sem se obliterarem no fingimento.
Sem escaparem da pele rija
que é sua barra do tribunal.
Os ativistas dos lamentos
benzem-se num estatuto outro
em levitação consentida
ao umbral dos agraciados com piedade.
Só para não darem de si
como aos outros é exigido.

#790

Calço os ramos desprendidos
no improvável verso-limite
e dou-me de mim ao ilustre porvir.

#789

Guardo o gatilho
antes do rugir ignorar
e das gotas da ácida chuva
sitiado ficar. 

4.11.18

#788

Não
o gato
não comeu 
a minha língua.

Corpo estranho

O colossal chapéu
esconde o pensamento.
Fica à mostra
o banho de humildade.

Ninguém fica a perder.

No desvairo
do baile dos epígonos
sublinhados os contornos da vaidade
sobra o infecundo arrás dos baldios
a terrível sanha dos farsantes.

Antes um chapéu
e colossal (de preferência)
a embaciar o pensamento.

3.11.18

#787

Onomatopeias
eram preferível idioma
(não se enganava nas palavras).

2.11.18

O general libidinoso

Tinha o general
inconfessáveis sonhos:
era ator de filmes pornográficos
em pelejas outras
(que não as castrenses)
em que a regra era não haver regra. 
O general acordava sobressaltado. 
O corpo lavado em suor
transido
o membro entumecido
teimosamente renitente em desarvorar bandeira. 
O general era incapaz de saber
se de sonhos ou pesadelos
cuidava de ser intérprete. 
Passava o dia inteiro
distraído das funções no quartel
perenemente assaltado pelo onírico carnal. 
Certo dia
o general ensaiou reter em escrito
o teor do sonhado na pretérita noite. 
Ficou tomado pela perplexidade:
ele não era de espreitar pornografia
(ou não o queria admitir
temente de ser apostrofado
pelos pares e mancebos).
Receou ser patologia incurável. 
Não tinha a quem confidenciar o deslize,
amedrontando pela hipótese de escárnio
até pelo degredo do exército
por entorse aos bons costumes
(de que o exército,
em comandita com a santa igreja,
se dizia zelador).
Resolveu a fuga para a frente:
em dúplice existência
passou a figurar na ficha técnica
de pornográficos filmes,
todavia sob a proteção de pseudónimo
e de continua máscara a ocultar o rosto
(desconfiando que os seus pares
eram ávidos consumidores do género).
No seu alter ego hedonista
o cartão de visita era
General Elio Quattrofoglio.

#786

(Mote: nacionalismos empolgados)
Ó pátria ditosa
não mais do que um incidente,
pátria acintosa.

1.11.18

Santuário

Não é pela miragem
que enfio o olhar sedento.
Venho ao mar
e saio de mãos lavadas
sei que são seu campanário
e das juras extraem minério refinado.
Não é pela miragem,
não.
As miragens
são como preces baças
estrofes descosidas do caudal
uma miríade de sítios imaginados
inférteis.
Contento-me
com as mãos lavadas
e o mar que repousa no meu olhar.
Quando tiver uma miragem no regaço
e souber 
que de matéria tangível é composta
deixo aviso a preceito.

#785

Cativo a lava vertida
no dorso fervente
e incluo o avesso do cativeiro.

31.10.18

Ecossistema

Estamos à espera
que seja a chuva
o ato dissolvente da verbena,
a chave enferrujada
que desarruma o vertical critério?

Partimos.

Pelo caminho
agilizamos a conversa.
“Não sei do método capaz
sem a ajuda dos compêndios
sem estar sitiado
no remoto pensamento alheio”,
protestas.

“É o leito atapetado por pedras,
a contingência do pensamento.
Não dês importância:
verás em sonhos
a ousadia que não reconheces
ao teu pensar.
Deixar-se-á de colocar
o problema da originalidade”,
respondes
com alguma condescendência.

“Duvido.
Duvido muito.
É a minha via sacrificial.
Gostava de duvidar menos.
Gostava de não duvidar”,
acrescentas,
uma lágrima assomando ao canto do olho.

“Dir-te-ia
ser um erro
se não me convencesse
que não há certezas válidas.
(Talvez,
talvez a única certeza que admito.)
Toma como medida
as linhas em que a pele se entretece.
Enverga o epistolar sargaço
onde se desenovelam as dúvidas,
umas atrás das outras.
Sossega:
as dúvidas são a tua riqueza.
As certezas,
o teu penhor,
hipoteca irremediável”,
contrapões,
enquanto faz perder o olhar
no horizonte baço 
que é a parede por diante.

#784

O céu desigual.
Outra vez
as nuvens desimpedidas.

#783

Abracemos a lua inteira,
que se oferece, 
generosa,
panegírico da vida que é colheita incessante.

30.10.18

Contra comendas

Desenho
só com sílabas não forçadas
a enseada
onde tenho refúgio. 
Esconjuro
o diadema furtado ao vitral
de onde se tinha a luz por nome. 
Continuo imóvel
convencido que o tempo também;
a resenha de tudo
desfaz-se num nada. 
Corteja-se a paciência assinalável
o bodo sem medo das consequências
e, estimável função,
a curadoria de todas as compreensões. 
Não é pretensioso:
os troféus alçados
são uma vírgula a destempo
o modo sem medo do verbo
fantasia em vez de lugar. 
Se fartasse a bonomia
diriam
ser um esteta com direito a medalha
(não fosse apoucar o regime das comendas).

#782

Que não se exprobre o ópio dos outros
se a ninguém é dado atestar
não ter ópio próprio.

29.10.18

Carta de recomendação

Rasguei o desbotado
            convés enferrujado,
                        pesaroso.

Dentro da enseada
            convoquei anjos
                        destemidos.

Sem chuva diletante
            abracei luas
                        fecundas.

Oxalá sereias agitadas
            abrissem alçapões
                        tumulares.

Daria do húmus
            em ferida
                        proverbial.

A sempre possível
            arte presumida,
                        aquartelada.

Desmatado o medo,
            conservo rigor
                        matinal.

Servo a meio
            da profecia
                        irrisória.

Sirvo em latitudes
            desenhando fronteiras
                        implodidas.

Desobedeço ao oligarca
            que bolça
                        despautérios.

A vassoura gasta
            tem serventia
                        futura.

Do amanhã contumaz
            arrefecido oráculo
                        infecundo.

Arrisco os dados
            demencial empreitada,
                        vertigem.

Abrigo a meia-noite
            em agasalho
                        promitente.

Dou de mim
       a moeda
                        ajuramentada.

#781

Oh,
desjuízo não forasteiro
que em meu sangue tens viveiro.

28.10.18

Lei do mais forte

O homem veste a máscara.
Toma suas as lamas imundas
no ultraje máximo
de si mesmo. 
O destrate não é ufano. 
A humilhação
é um espelho que se refrata 
no estilhaçado nevoeiro
em que se açoita. 
Os ossos liquefeitos
são do predador
imersa no obnóxio pesar de si mesmo. 
O tabuleiro
onde se movem as peças
(como se, meras, assim fossem),
num plano invertido:
os poderosos
armados com os obuses da força,
abutres das carcaças próprias;
os torturados,
despidos de vida
intérpretes maiores da lição da dignidade. 
Na sobra de uma dúvida
fica por alcançar
se a demência se esconde numa máscara
ou se é demência em estado puro
a maldade acintosa em requintes perfídia. 

(Museu dos Terrores, Berlim)

27.10.18

Sermão

Prolegómeno:
o suor expatriado
pelas rugas cansadas
verter-se sobre o pano flácido
e os cantos das janelas
descerram a paisagem que se desenha,
no ágil conforto do silêncio devolvido.
Não parece que seja critério,
o silêncio.
Amanhecem as tulipas pujantes
os bolsos abarrotando de versos estimados
entre ensaios e ensaios
sucessivos ensaios
que não desgastam o tempo.
A armadura cresce
com o pólen vívido.
Sabiam-se escorados os braços fluentes
eram o estibordo das marés apátridas
e não sabíamos da costura das palavras
não sabíamos
da feitoria que esbracejava as juras aladas.
Todavia
as mãos não desistiam.
Elas liam nos olhos das paredes
o palco escorreito
os druidas acalmando tempestades.
Já não era o prolegómeno.
Avançada a rede
éramos intrusos sem remédio.
Corremos no avesso da noite;
corremos, incansáveis,
no dorso de mitos hasteados
em vultos sem fartura:
domámos os medos enfim com freio
e a beleza atribuída,
em vários penhores resgatados,
cuidou da fortuna dos sonos.
Na sobra das marés
os pés nus aconchegavam
os seixos deixados para trás.
Na dobra das marés
jogavam-se os temerários pescadores
contra a volúpia das ondas em barda.
Logo seria possível a prova dos nove:
se os pescadores viessem ao cais
provada seria a generosidade como dom.
Ao menos para os pescadores
as portas insubmissas das divindades
ficariam povoadas.
Muitos outros há
privados do farol da metafísica.

26.10.18

#780

Puxar o filme atrás,
nem que houvesse marcha-atrás
como nos automóveis madraços.

#779

Desde o cedo volátil
passando pelo medo sensível
um levantamento de sonhos plúmbeos.

25.10.18

Bandeiras esconjuradas

O que falam as bandeiras
conservam em segredo
os mastros.

O resto
não importa.

As esfinges simbólicas
idolatradas deusas com pés de barro
a história grávida de proezas
o idioma messiânico
a gutural presença dos vultos
(como se não tivessem sepultura)
a desconstrução do porvir
justificada pela inércia do passado
as mitologias sem preço
(por não terem valor)
o adiamento das luas prometidas.

Hasteadas em seus mastros
as bandeiras falam
um silêncio tangível.
E nem o vento que as esbraceja
contém idioma que se preze.