17.11.18

Vazio

Paga a promessa
as mãos desimpedidas.

A quimera 
aninha-se no rosto
enfim prostrado.

Às vezes, 
a celebração encerra o vazio,
a recompensa liquidada
nos preparativos.

#806

Podia nascer
no bojo da lua
e descer no dorso da madrugada.

16.11.18

Asterisco

Um asterisco revolitava
nas laterais partes da página
e por mais que fosse a diligência
teimava em não se deixar apanhar.
Se ao menos lhe pusesse as mãos
e pudesse virá-lo do avesso
só para ver de que matéria era feito
ou se escondia
mensagem subliminar.
Mas o asterisco era viscoso 
– fazia lembrar as enguias
que só se apanham na mercê de um pano.
Ainda deixei que uma ideia insinuasse
que o asterisco é como a baunilha.
Não sei 
se era o sono a vencer-me
mas não consegui desemaranhar a metáfora:
ainda hoje
está por determinar
a causalidade entre um asterisco e a baunilha.

#805

Se “ao deus dará” for destinado
e em sendo meu o trunfo
decreto a extinção de deus.

#804

O navio solitário
arqueado sobre o mar
nele se acolhe como concha.

15.11.18

Ácido sulfúrico

Não me convencem
os conventuais mestres
em denodados arremedos
de superioridade. 
Dedico-lhes um par de versos
a sofrível condição seu pergaminho
e deixo ao restante,
os satisfatórios meandros por onde ando,
a compensação mais alta. 
Podem insistir
os profetas de um futuro
encaixado nos limites do seu nanismo. 
Não sei que trovas outras
hei de dedicar:
por mais que os apouquem
serão o selo vivo de sua relevância,
o que fica registado como transtorno.
Descobri o presságio:
finjo ser fiel seguidor de seus preceitos. 
Prossigo no fingimento:
minto com a força dos dedos mentirosos
e faço de conta
que pratico os monásticos princípios,
desandando com imensa desfaçatez
(e indelével prazer)
dos compêndios fixados.
E continuo a ser
navio amotinado,
sob o refúgio das sombras.
O riso farto em que me debato
é o sulfuroso ácido que verto,
às escondidas,
sobre tais risíveis personagens.

#803

A estibordo
onde o bom vento
se emulsiona.

14.11.18

Incomensurável

Dos juramentos hasteados
não tinha conhecimento. 
O baço nevoeiro pretérito 
travou o compêndio
e todo o cimento se estilhaçou
nos degraus atapetados a musgo. 
Não tinha do porvir
imagens fundadas.
Respirei fundo 
– como se estivesse à míngua
do enraizado, húmido húmus
do seu aroma acastelado
nas nuvens deitadas no chão. 
Amarelecido o corpo
não desisti das encomendas anotadas
em pergaminhos solenes
(aos que tinham 
a memória
como marca de água). 
Duvidei dos versos incompletos;
quis um tira-teimas,
pois incompletos pareciam sempre ser
todos os versos:
não era tempo para ontologia. 
Esquadrinhei as folhas gastas
perguntei aos ventos dominantes
insisti na serena hermenêutica da espécie,
sem dar o flanco às demandas escatológicas,
sem me perder nas complexas tardes
onde o pensamento, 
demorado,
especulava. 
O tempo amaciou-me. 
E nem assim
sei como se faz,
no que às lides diz respeito,
com o fantasma que adeja
com sua irrecusável espada
sobre o alpendre onde tudo é
imorredoiro tirocínio.

#802

O fiorde recortado, alcantilado,
a respiração anestesiada;
metáfora de uma vida vertiginosa.

13.11.18

Alvenaria

Tudo depende
das variáveis presas às bainhas
dos estamentos convertidos em lareira
das controvérsias emudecidas
das lógicas sem estirador por perto.

Tenho um saldo inequívoco
e joga a meu favor
(ou não fosse saldo).
Dos olhos estremunhados
de juízes anciãos
os cajados projetam-se à latitude vã
esperam as ovelhas tresmalhadas
em plenipotenciária deriva.
Desde as austrálias imaginadas
o mel da distância
e o rubor 
do tempo que chega sempre antes.

Houvesse um dado a mais no jogo
e podia exigir prebendas
literatura só aclamada
viagens de avião
as diferentes cores das peles
resguardadas numa garrafa deitada
à posteridade
em mares contíguos
em mares interiores
de onde
em interiores deambulações
desenhasse os Cárpatos elegantes
as cordilheiras a perder de vista
e o vinho-néctar por companhia.

Houvesse um dardo a mais no jogo
e a ética em reboliço seria meu algoz. 

Sobram as pedras de gelo
que se vertem em água derretida
e uma mão a amparar o copo:
às vezes
mergulhamos fundo
no fundo do copo
e deixamos o néctar-vinho
compor as estrofes.
Deixamo-las
compor os sonhos
que os próprios sonhos 
querem sonhados.

#801

Não tenho mãos a medir
nem como medir as mãos. 
(Serão largas, as mãos?)

12.11.18

#800

(Outra variante do #798)

O revivalismo é morrer.
O tempo saiu de cena.

Corpos

Corpos estirados
na improvável sagração da lua
e o epítome da volúpia
obedece aos clarins sinfónicos
que tiram das cadeiras prensadas
a boémia inspiração que os espera.
As mãos abertas
verticalmente apontando o céu
fazem uma OPA à claridade enxuta.
Não perguntem às mãos ousadas
sua intenção
que elas recusam os termos vagos
dos curadores das palavras reprimidas 
– recusam a insinceridade
os termos em que hipócritas testamentos 
são selados.
Se dessem palco às mãos 
delas se diria serem ousadamente anticlericais
um garfo espetado na córnea dos puristas
açambarcando o estômago onde,
ansioso,
medra o lúmpen da vontade.
As mãos continuam em silêncio.
Só precisam do silêncio
dessa medida constante que arrebata o verbo
sem penitência das palavras
depois arrependidas.
As mãos assim adestradas
não sabem da palavra arrependimento.
Entronizam-se nas corolas policromáticas
fundem-se com as flores abundantes
insinuam-se em gestos sem medo;
são, na sua mudez,
uma constelação de palavras
maior do que os dicionários por junto.
Não:
mãos com esta têmpera
não vomitam as rédeas cingidas
não transigem na imodesta audácia
não se deixam trespassar 
pelos sacerdotes de variegada sotaina
não capitulam 
– não capitulam.
No púlpito,
paisagem esplêndida
que se empresta ao recorte da luz,
os corpos entregam-se.
Ensaiam a sua própria coreografia
no veludo em que se deitam
dando de si as centelhas que rompem a noite.
À noite aquartelada
teatro onde a função toma lugar
na telúrica erupção dos corpos transidos
às talhadas saciando-se um no outro
sem o vulnerável véu da tempestividade.
Cobram direitos de autor
os corpos assim transgredidos
e emudecem se lhes pedirem palavras.
Não se sabe
o ADN destes corpos
a não ser a lava que os desenha
matéria inconfundível
servida no suor para combustão
saliva gourmet.
Não desejem a finitude dos corpos
desta destravada dança sem tempo
nos palácios por habitar
a cada estocada a que se entregam.
Não os deixem
decadentes.
Que essa é condição indesejada
negação da fruição para que foram congeminados.
Que não sejam penhores do depois de amanhã
enquanto houver um amanhã por decantar.

#799

(Variante do #798)

Os “velhos tempos”
em velhos sendo
estão embotados.

#798

Quem
se não um atávico
(ou um antiquário)
faz o louvor
dos “velhos tempos”?

11.11.18

Imparcial

Nomeio os medalhados,
personagens escrupulosas
tementes
“bons pais de família”
(para usar a arcana fórmula jurídica).

Não conspiro
nos interstícios das máscaras
que envergam:
a justeza da escolha assim impera.
Confeciono interrogação lateral:
se não ostentassem máscaras
seria capaz de justa escolha?
Não é tempo de elucubrações estéreis 
– sobreponho à interrogação,
deste modo considerada estéril 
(para os devidos efeitos).
A nomeação espera, 
em palco.
Vejo as atenções vertidas
em minha lúcida perícia.
Adio a perícia
Pois assim exige o cânone da lucidez.
Não era estéril
a elucubração demandada.
Imponho exercício epidérmico
(e não é para efeitos estatísticos):
mando levantar as máscaras
e desafio a imparcial perícia que me espera.

Ainda hoje
fiquei sem saber
a resposta.

#797

Prémio de consolação:
corre o sangue nas artérias calcinadas
da deposta intuição.

10.11.18

#796

O magro pecúlio
património bastante
no bodo dos humildes.

9.11.18

Picasso

A fortuna 
retaliou contra ti.
Ela quis a brevidade
em tempestades descarnadas
e tu nunca perdeste a doçura.
Sei
dos teus olhos estremunhados
do ar deliciosamente resmungão
do miado que dialogava
sei
num lugar fundo que de ti guardo.
Ah, a fortuna,
a iníqua fortuna
que não é caução dos por ela 
desprotegidos.
Não interessa.
O lugar fundo que de ti guardo
é caução bastante.

#795

Luto contra o luto
estrénua luta
que dou por vencida.

8.11.18

Lúgubre

O funâmbulo articulado
erudito de ciência vária
letrado nas artes seculares
deixa-se enamorar 
pela súplica de um palco,
um palco que seja,
desde que de palco tenha vagar. 
As medalhas exibidas,
um régio manjar
que desautoriza recomendadas dietas,
aquelas que aconselham
a modéstia do trato
a humildade dos que,
mais do que dizem saber,
sabem que muito maior é o inventário
do que está por saber. 
E todavia
a ave pernalta
não ensimesma
(tem medo da experiência do avestruz):
cinge-se
ao sótão do pensamento
em pesporrente convencimento
de no sótão ser elevado, distinto,
o pensamento. 
Terá na mira da equação
o avinagrado verso de Pessoa:
“moro no rés-do-chão do pensamento”
para afivelar a cagança de seus pergaminhos.
Mal ocorre a lucidez de saber,
entre tão avassalador património de ciência,
que os sótãos pertencem
aos lúgubres síndicos das farsas desentrapadas,
aos contumazes dizedores da magra sabedoria. 
Pois no rés-do-chão do pensamento
moram os que o travejam
(ou não fosse o rés-do-chão
o púlpito dos esteios
em que se escora o pensamento pensado,
modalidade preferível
à do pensamento ilusionista).
E os sótãos
lúgubres desterros
onde armazenadas estão
as sobras do que deixou de ser pensamento.

#794

Escolto o vento
o agasalho
que o entroniza suserano.
(Desenho de uma tempestade)

#793

Os meus dedos
filigrana
em teu corpo.

7.11.18

Suado

Desta transpiração
não levo nada.

Água
água perdida 
no imponderável bocejo de raça
com que degraus inteiros se consomem.
Pudesse contemplar os poros exsudados
pudesse anotar as gotas desprendidas
em visão de câmara lenta
e autopsiar cada gotícula
como investigação da origem
do sal transbordado pelo suor vertido.

Da transpiração
prometo tudo.

Os cometimentos ímpares
a valentia que é poço sem fundo
as páginas a eito, devoradas,
o linóleo onde se deita o sono
os vícios trespassados.

Do suor remediado
o peso farto 
esforço
um jogo jogado da frente para trás
no inverosímil projétil atirado à lua.

Convençam-me do contrário.
Convençam-me:
da estéril proeza emoldurada
notário perene das implausíveis olheiras
da facúndia sem tradução
dos beijos sem lábios a preceito
da posse resumida ao vento entre os dedos.

Convençam-se:
o suor é sal não rarefeito
penhor dos poros não contidos.
A exalação das excrescências
na devota purificação do corpo.

#792

O sanguíneo estiolar das mãos
permeáveis ao outono, 
o aroma da notável decadência.

6.11.18

Pistoleiro sem balas

Pistoleiro desavisado
em início de carreira
(talvez)
mergulha no coldre,
vazio,
e soma o sumo iletrado
dos facínoras sem arma.
Está nos antípodas
destoutros facínoras
desarmados de bélicos meios
mas penhores do pior dos venenos:
a insídia 
a meticulosa conspiração de meios
o ardil repetitivo
o soez ajuramentar de tudo e do seu contrário.
Serviço lídimo feito será
de vedar
por todos os meios
(até os ilegítimos)
o manusear de estrepitosas armas
ao facínora desarmado.

#791

Especial de corrida
e não é bicicleta:
é o historiador do futuro.

5.11.18

Cadafalso

A gramática do lamento:
um coro choroso
no luto imorredoiro
logradouro onde medram vítimas
sempre tão pesarosas
consumidas pela dor excruciante
os punhais mais implacáveis
metidos a fundo e a frio na carne flácida
sempre viciadas
na comiseração de que são pedintes.
A ladainha do lamento:
fuga aos areópagos
onde as pessoas são pessoas
sem se obliterarem no fingimento.
Sem escaparem da pele rija
que é sua barra do tribunal.
Os ativistas dos lamentos
benzem-se num estatuto outro
em levitação consentida
ao umbral dos agraciados com piedade.
Só para não darem de si
como aos outros é exigido.

#790

Calço os ramos desprendidos
no improvável verso-limite
e dou-me de mim ao ilustre porvir.

#789

Guardo o gatilho
antes do rugir ignorar
e das gotas da ácida chuva
sitiado ficar.