7.12.18

#832

Receoso
o rapaz entreolhava
o desiderato esboçado a giz
na parede do quarto.

6.12.18

Pesticida

À matemática fruição da estultícia
atire-se-lhe pesticida.

É no poço fundo onde medra
a provecta infertilidade dos obnóxios
em iletradas varandas que esfregam ódios
e vácuas sabatinas de egos incontidos:
atire-se pesticida
sobre tais águas vurmosas.

Atire-se
o vaso pesado por ação da relatividade
(é da força que se fala)
até que sejam modestos eremitas
reverberando a sua infausta condição.

Não se esqueçam
de comprar o pesticida.

#831

É mentiroso
aquele que acredita
na mentira?

#830

O soldado sem tirocínio
atirado à trincheira
em dois dias a morte deitada 
com o rosto mergulhado na lama.

5.12.18

Dizem que foi um (a)deus

Deletério terramoto
os escombros farejando a morte
e um rio por diante
calmo
em paradoxal configuração das almas.
Não se trata de assuntos urgentes:
a urgência está no seu contrário
no vagaroso escorrer do tempo
em trânsito da contabilidade onerosa.

Dizem que foi (um) deus.

Que punição pode de deus fazer
bondosa entidade,
ó contradição de termos?
A menos
que a rima de vingança com deus
dê como provada a ausência de deus.

Dos escombros
exala um pestilento aroma.
Contrataram cães farejadores
os ladinos contabilistas da desgraça.
Cá fora
o povaréu subsiste
reprime as lágrimas pelos entes decessos
(deve haver um ou outro sob os escombros).

Desfeiteada a hipótese da vingança divina 

(talvez
em abono do próprio deus 
– ou em favor dos que nele creem)

sobra a maldição.

Um demónio
a soldo de fariseus sem rosto
em contundente empreitada contra este lugar.
Há piores catástrofes.
Há as personificadas 
por muito puras, públicas figuras
as que parecem embaixadores do lugar
e não passam de seus octogonais coveiros.

Eles são a deletéria candeia
o apocalipse encomendado
a espada afiada que desce sobre os imprudentes
a provada finitude dos lugares meãos.

Dizem que foi um adeus.

#829

- O que te faz rir?
- O pretensiosismo dos farsantes
os destros eruditos que se entronizam 
num vazio sem fundo.

4.12.18

Consequentemente

Consequentemente
limpei da areia os vértices lagrimados
e deixei que as páginas fossem caiadas.

O larvar desejo dos ascetas
é inconsequente:
a modernidade é adversária do espírito

(dizem, contristados, os eremitas).

As modas são ímanes:
abraçam-se aos corpos
até aos renitentes
como uma enguia se entrelaça 
nos braços do pescador.

O centrípeto limoeiro dá o mote:
a sazonalidade não se derrota.
É só um vislumbre dos modismos,
marés com seu ritmado compasso.

Consequentemente
anotei os maneirismos.
As páginas à espera de cal
são cobaias da militância emergente,
da sempre efémera militância.
Ficam à mercê do redesenho, 
as páginas.

Consequentemente
antes caiá-las a lápis
tão prestado à efemeridade
como os sazonais modismos que ecoam
uns atrás dos outros
na sucessão dos tempos 
e das modas que com eles rimam.

#828

Fragmento.
A voz errante
num beco furtivo.

3.12.18

#827

(Contradição de termos)
Abespinhado,
o empregado de mesa
advertiu a senhora da caixa registadora:
“desculpe, minha senhora,
mas não peço desculpa.”

A árvore silenciosa

Se fosse uma árvore
era testemunha do tempo inteiro.
Dizem
que as árvores morrem de pé.
Julgo não estar errado
se se estipular
que não dormem também,
as árvores.

(Pois se em pé sempre estão
e se lhes não conhece pose de sono,
a pose é imutável.)

Se fosse árvore,
testemunha do tempo inteiro
perguntar-me-iam 
pelo sortilégio do tempo
pelas barcaças invisíveis
que metem fundos remos nas horas sem moldura
pelos olhos sem medo da penumbra da noite
pelos vorazes letrados 
que serpenteiam as palavras
os deuses sem rosto
(e, portanto, mitos)
que patrulham o sossego da madrugada. 
Seria demandado
pelas autoridades
pelas viúvas sedentas de assunto
pelas patrulhas sem nome
pelos agentes secretos sem gabardinas
pelos astrólogos falazes
pelos curadores dos costumes
pelos poetas sem inspiração
pelos ideólogos subitamente órfãos 
(de ideias)
pelos remotos, heráldicos barões. 

Não sei o que teria para dizer
a tanta gente em suas demandas. 

As árvores 
são guardadoras de silêncios
o mais sepulcral dos silêncios
em formosa constelação de estrofes
embuçada no mais elevado
direito de não falar.

#826

Os nomes inteiros
vacilam na rua do pensamento
entre desmemória e apuro. 

2.12.18

Bitola

Remexem-se os dizeres da vida
como se fosse posfácios urgentes.

Os párias não contam,
dizem.
Não sei se concorde.
Nas ameias da penumbra
persistem algozes em maturação
congeminando uma fúria inviável.

Apanhem-se os frutos do chão
e que sejam entronizadas as suas dádivas:
não é a penumbra que conta;
são os radiosos céus
que irrompem pela janela.

#825

A fotografia
desenha os rostos imóveis.
Os rostos que parecem debater-se,
imóveis, no vazio que os preenche.

1.12.18

#824

Doce a filigrana
quando os teus lábios
se molham em minha boca.

Emolumento

Uma miríade de cabeçalhos
as palavras como faróis
saciando-se na volúpia das sílabas.
Os cais secos preparam-se 
para serem o chão atapetado
onde discorrem as palavras salivadas
os bustos da improvável fecundidade
em promessas seladas
com o granito como haste.
Passam as horas
e as nuvens pesam no mesmo lugar.
O gelo que arde
deita-se no património repatriado.
São lagoas de águas paradas
os feixes por onde fogem as palavras
por todos os lugares
em seus malditos prantos
as invisíveis lágrimas nos suados vitrais.
Despedida a noite
no trono estilhaçado por um cometa errante
recolho do chão os corpos derrotados.
Esforça-se a manhã 
no desembaraço dos estivadores da alma
e rejeita as promessas bebidas
em cálices de ouro.

#823

O sentido das proporções
(a maré que transborda).

30.11.18

Asceta

Consigo a alquimia
no longo mar que se oferece
no possível infinito diuturno. 
Arranjo os modos
de compor o sangue em ebulição
domando-o à boca de cena
contrariando os presságios
em anulação das angústias a destempo. 
Não me serve o estertor
como não servem as fantasias órfãs
nem os importantes desenhos do tempo
com suas estrofes aformoseadas. 
Na mesa 
vejo os despojos
as cicatrizes fechadas
que avivam as marcas emolduradas. 
Trago no pensamento a luminosidade original
a espada bastante para cercear os incómodos. 
Dessa alquimia quero-a imorredoira
o lancil de onde me projeto
no largo amplexo do mundo
por meus braços recolhido
com a rima das ondas iracundas
que desfazem a lisura das areias.

#822

Sou a porta sobre a manhã
a medida sem métrica
no parapeito sem algemas.

29.11.18

Jogo de compensações

As compensações. 
Um jogo. 
Estafeta entre o ardil e o nó górdio.
Aventam-se as hipóteses. 
Elucubra-se.
Na autoestrada dos inverosímeis destinos
a sinalética das hipóteses
debate-se no intemporal vagar da dúvida. 
O ultraje disfarça-se de ousadia. 
Os ares límpidos da oportunidade
ocultam a adulteração dos sentidos.
No jogo tumultuoso
onde as nuvens temperam o despautério
confundem-se os lados
intersetam-se as palavras com seu sentido 
antagónico,
em invisíveis paradoxos. 
No desdicionário dos sentidos
jogam-se as compensações
no tabuleiro onde a consciência 
toma timorato lugar. 
São um arremedo de satisfação.
Só aproveita aos convolados
em seus interiores sobressaltos. 
O mal está feito.
Não é remediado por arrependimentos.

#821

Alinhavei
nas baças entrelinhas 
as venais, escondidas palavras.

28.11.18

A extração dos sonhos

Sonhei
que tinha a exaurido
a fonte dos sonhos. 

Sonhei
que os sonhos
se dissolveram no meta-sonho,
o sonho em que com nada se sonha. 

Por dentro deste sonho negação
soube-me num cais que era ilha
remota edificação no meio do mar
sem terra no termo da vista
cais órfão de fundações. 

O sonho sem sonhos 
– o sonho sua própria negação – 
sugou por dentro o oxigénio
manutenência
improvavelmente gasto 
no seráfico manto da mensurável textura
ao alcance dos dedos. 

Sonhei
que já não tinha sonhos. 

Afinal,
fora só um pesadelo.

#820

Perguntaram:
“o que é a identidade?”
Disse:
“é o emaranhado de uma matrioska.”

27.11.18

#819

Amarrotado
era o papel que desempenhava.

Extrato de conta

Contabilidades não marçanas
no rebuço da consciência
em silenciosos exercícios diuréticos.
Balançam-se
os proveitos e os danos pretéritos
inscritos numa matriz dicotómica,
pretoriana:
a inventariação arrasta-se
para nada ficar perdido 
na poeira do olvido.
Compulsadas as variáveis
o olhar atónito estende-se 
nas folhas feitas inventário.
Implexa tarefa:
casos de difícil arrumação
não se sabendo 
se são do lado do mais
ou do lado do menos;
mais ou menos
na lógica imperial das dúvidas arcanas.
Prefere-se salomónica resolução:
um terceiro género,
indiferente
ou indeterminado.
Nem assim se aplaca a complexidade.
As proezas e os danos
não se medem em números frios;
as proezas e os danos
valem diferentes pulsões
se medidas no termómetro das emoções
e avaliadas na matriz que os eventos sopesa.
Não sei ler o extrato de conta.
Talvez não interesse.
Leituras mais proveitosas ficaram à espera
com prioridade sobre o extrato de conta.
Folgo em saber.
Nunca foram o meu forte,
os números.

#818

Talhados de vidro
o colostro fatiado
nas entrelinhas das cicatrizes.

26.11.18

Extinção da espécie

O que era feito
dos duendes?
Invisíveis em seu nanismo
ou escondidos contra os pleitos
que deles se aproveitavam?
Dizia-se 
estarem a coberto
para não serem continuadamente
escarnecidos. 
Outros diziam,
com o medo a sussurrar atrás das ideias,
que os duendes conspiravam
e haveriam de inventar elixir
que invertesse as forças em desproporção. 
Alvitrava-se muita especulação
(desporto favorito de abundante gente
provavelmente desocupada
ou apenas farta dos seus eus).
Não ocorreu a ninguém
a mais simples das hipóteses:
os duendes 
estavam na penúria da espécie
em excruciante travessia da extinção.

#817

Já alguém colheu
de crocodilos lágrimas
para atestar o que são
lágrimas de crocodilo?

25.11.18

O silêncio

Dou à chave ignição
no visível entardecer 
só à espera de uma flor
em prodigioso desabrochar.
Não conto com quimeras.
Espero pelo tempo capaz.
Não tenho da alvorada
uma medida sem proporção.
Apenas a quero
madrugada
ainda silenciosa
ainda não testemunhada
quase só minha,
estremunhada a madrugada.
Não é um pórtico da solidão
(como se podia ajuizar,
se fossem banais 
as baias do juízo).
Do silêncio
hospedo a chave dos segredos,
dos que navegam no caudal meu
e precisam de fecundação.

#816

Não digas “sessenta”.
Faz como os franceses,
diz “três vintes”.
(Para ver se enganas os números).

24.11.18

Autoajuda

Bebeu coragem
nos preceitos sagrados 
de guru de categoria. 
Até as cinzas pisou
e descalços iam os pés. 
Ainda jura
que a dor não o derrotou. 
Tudo aquilo
era uma embriaguez de vida
a perene boa disposição
era como se não tocasse em desacerto
a melancolia
o contratempo
a injustiça 
para dela se dizer vítima. 
Éramos quase capazes de jurar
a crer na encenação
que era o epítome da perfeição. 
Perguntava, perplexo
diante da nossa dúvida metódica:
como é possível 
uma alma que de alma seja feita
recusar as lições do guru?
Oh, oportunidade em débito:
dilação da excelência
diligência da serenidade
e a desoportunidade de sobre cinzas andar
sem sequer a dor notar
e a epiderme ganhar tisnado aspeto. 
Oh, crime de lesa-majestade
deixar tanta virtude em órfão estado
desperdiçar
a bondade do régulo da autoajuda,
oh impenitente insubordinação
de que sobram, hélas,
as providências que desacautelam 
os dias inteiros ungidos 
pelo imorredoiro bem-estar.