14.12.18

#841

Travo
sob a pérgula da memória
o pleito contra os deletérios farsantes
os que se saciam na miséria dos outros.

13.12.18

Apetite

No tricotado das palavras
o desenho das vozes noturnas. 
Espreguiçam-se
no alpendre do tempo sem fim
como anzóis errantes num lugar ermo. 
Atribuem-se os sonhos madrastos
vasos capilares dos tumultos telúricos;
a gesta emoldurada
não sabe dos verbos favoráveis
e a maré joga-se 
no abecedário dos contratempos. 
À exceção do imaterial sorriso lacrimejado
não se sabe do paradeiro das feitorias
e o desassossego contamina os sonhos
(ou, dir-se-ia,
os maus sonhos 
fermentam no desassossego).
E é a noite,
na mais profunda noite,
que se amenizam as convulsões
desadmitindo as fatias de angústia
que o dia intemporal parece servir.

#840

A lua não é mentira;
habita em mim
quando me faço poeta.

#839

Ebulição,
o sextante
que tira a medida
do olhar.

12.12.18

Manhã

Não temos juras
nos braços que nos recebem
não precisamos de pretextos
para fugirmos de máscaras
não desafiamos
se não os deslimites onde somos.
Não dizemos não
a não ser para negar outros nãos
não escondemos o sentir
em ameias tricotadas de desdém
não transigimos
se não na transgressão. 
E não adiamos os dias perenes
no doce regaço em que somos nós.

#838

O mosto do inverno
pressentido
no hálito das lareiras.

11.12.18

#837

Pelo contrário,
antes pelo contrário 
– ripostou o pianista
à hipótese de orquestra.

Correio

Nas outras pessoas
o ónus de serem desafio
enquanto por mim porfio
sem nada querer com loas. 

Sei do amanhã um tremendo nada
resolvido num lençol de suor
amarrado à tenaz da dor
e nem assim aceito protetora fada. 

Se do ontem memória houve
trato (ato contínuo) de seu arrependimento
em cuidando deste esclarecimento
para a voz que de mim se ouve. 

Acerto o relógio com o presente
num infortuito sopesar da alma
no navegar do rio de água calma
sem tudo querer no que o dia consente. 

Se o corpo se debate, incansável,
na arena onde as proezas não importam
retiro da alma predicados que me imputam
e deito os dados ao céu insaciável.

#836

Declaro encerradas as hostilidades
e doo o dorso sereno
à posteridade.

10.12.18

Roda livre

I
A boca aberta
excessivamente aberta
dos osteopatas das farsas
retrocede ao paleolítico
quando as fraldas ainda eram de pano
e as gaivotas não eram omnívoras. 

II
Garante-se
a cova de um dente
sem míngua de mantimento;
tanto chega
no bazar da modéstia
sem confusão com a monástica condição. 

III
Um truque não é um ardil 
– protestava o diletante
enquanto o vento subia pelas pernas
e a maresia combinava um almoço
com o luar.

IV
Na linha de fogo
a língua de trapos
manifestamente gongórica
folcloricamente erudita
no divã do psiquiatra sonolento. 

V
A sede do dia rivaliza 
com a penhorada súplica por inverno
na contrafação dos calendários
e em contravenção 
com a maré estabelecida. 

VI
Tenho sede 
num palácio que aspira a sê-lo 
e orgulho no desorgulho que tenho
nas bainhas gastas de um povoado liquefeito
sem sombras por parapeito
e com garraiadas com toureada gente. 

VII
Podiam ósculos ser dieta capaz
mas arriscamos a sua banalização
e eles merecem tratamento a preceito
em vez de flácidas trompas
ecoando melancólicos estribilhos gastos. 

VIII
Se dissesse
“estou feito num oito”
compulsava-se a comiseração
a detestável, piedosa comiseração
e assim digo que estou feito num quatro
(ou num dois,
se me for dado a intuir
que meia dose de comiseração
é trazida à mesa).

IX
As mangas descidas
patrocinam a pueril encenação 
onde circenses figuras
se entaramelam em jogos florais
o reduto do humor sem humor. 

X
Se houvesse tempo
os adágios seriam boicotados
alfandegados em pirâmides sem vidro
à espera da desmemória sua sepultura. 

XI
Não paguem dívidas sem escol
que os incorrigíveis agiotas da alma
não perdem pela demora
mal se franqueie a porta do lúgubre lugar
a que destinam os imprestáveis.

XII
Juras sem notário
são as que sobem no mercado
na fecunda, verosímil varanda
onde se congeminam as vontades.

#835

Para memória futura:
o desviver não tem estorno
nem confere paga vindoura.

9.12.18

Desutopia

Conclui-se o anátema esforçado
a reviravolta a meio da jornada
enxugando as lágrimas de vinagre
que juravam boicotar a ternura. 

Admitem os sarcófagos
a desdita impensável
no contratempo sem remissão
na ignição da penumbra estiolada. 

Os compêndios são atávicos
e continuam a ser idolatrados
na sua meã consideração
de um lugar sombriamente emaciado. 

Compensam as falas surdas
sintomas de um lampejo de claridade
em antinomia com a cidade em escombros
fortuito acaso no tabuleiro montado. 

Se o anoitecer for esta promessa
as bocas não se encerram no mutismo
e subsistem acordadas na madrugada
à espera do dia finitamente caiado. 

Matéria fulminante no lodo inerte
vocábulos vagarosamente silabados
ornamentam a arcádia entreaberta
e os olhares insaciáveis espreitam no dorso. 

Não cuida ninguém de apurar a utopia
que todos recusam sacerdotais messiânicos
na exultação da aprendizagem pretoriana
contra os façanhudos peritos do logro. 

Um módico lampejo de claridade
lido nas entrelinhas do tempo
é erupção de sobra para um telúrico palco
desembaraço em falta para a derrota do letargo.

#834

(Positivity)
Sit down.
Shut down.
Shit down.

8.12.18

#833

Mar de fundo.
O néctar dos poetas.

7.12.18

Proposta

Persegue o minotauro
a besta desenganada
colhe de seu sangue
a tua infâmia. 
Devolve ao rio iracundo
a pele arcana que há em ti.
Combina com os demónios
o sargaço vitaminado
o repasto sem comensais
e habilita o leito nupcial
onde se verga a desonra. 
Vocifera os impropérios
não impeças o vernáculo estilizado
consome-te nos piores vícios
terça argumentos com impenitentes teimosos
mas não te adulteres
não deixes que te adulterem
na massa única de que és temperado.
O ónus arqueia-se 
sobre as comezinhas desempreitadas,
não te intimides.
Não há igual. 
Não há igual a nenhum outro. 
E nenhum outro 
é igual aos demais.

#832

Receoso
o rapaz entreolhava
o desiderato esboçado a giz
na parede do quarto.

6.12.18

Pesticida

À matemática fruição da estultícia
atire-se-lhe pesticida.

É no poço fundo onde medra
a provecta infertilidade dos obnóxios
em iletradas varandas que esfregam ódios
e vácuas sabatinas de egos incontidos:
atire-se pesticida
sobre tais águas vurmosas.

Atire-se
o vaso pesado por ação da relatividade
(é da força que se fala)
até que sejam modestos eremitas
reverberando a sua infausta condição.

Não se esqueçam
de comprar o pesticida.

#831

É mentiroso
aquele que acredita
na mentira?

#830

O soldado sem tirocínio
atirado à trincheira
em dois dias a morte deitada 
com o rosto mergulhado na lama.

5.12.18

Dizem que foi um (a)deus

Deletério terramoto
os escombros farejando a morte
e um rio por diante
calmo
em paradoxal configuração das almas.
Não se trata de assuntos urgentes:
a urgência está no seu contrário
no vagaroso escorrer do tempo
em trânsito da contabilidade onerosa.

Dizem que foi (um) deus.

Que punição pode de deus fazer
bondosa entidade,
ó contradição de termos?
A menos
que a rima de vingança com deus
dê como provada a ausência de deus.

Dos escombros
exala um pestilento aroma.
Contrataram cães farejadores
os ladinos contabilistas da desgraça.
Cá fora
o povaréu subsiste
reprime as lágrimas pelos entes decessos
(deve haver um ou outro sob os escombros).

Desfeiteada a hipótese da vingança divina 

(talvez
em abono do próprio deus 
– ou em favor dos que nele creem)

sobra a maldição.

Um demónio
a soldo de fariseus sem rosto
em contundente empreitada contra este lugar.
Há piores catástrofes.
Há as personificadas 
por muito puras, públicas figuras
as que parecem embaixadores do lugar
e não passam de seus octogonais coveiros.

Eles são a deletéria candeia
o apocalipse encomendado
a espada afiada que desce sobre os imprudentes
a provada finitude dos lugares meãos.

Dizem que foi um adeus.

#829

- O que te faz rir?
- O pretensiosismo dos farsantes
os destros eruditos que se entronizam 
num vazio sem fundo.

4.12.18

Consequentemente

Consequentemente
limpei da areia os vértices lagrimados
e deixei que as páginas fossem caiadas.

O larvar desejo dos ascetas
é inconsequente:
a modernidade é adversária do espírito

(dizem, contristados, os eremitas).

As modas são ímanes:
abraçam-se aos corpos
até aos renitentes
como uma enguia se entrelaça 
nos braços do pescador.

O centrípeto limoeiro dá o mote:
a sazonalidade não se derrota.
É só um vislumbre dos modismos,
marés com seu ritmado compasso.

Consequentemente
anotei os maneirismos.
As páginas à espera de cal
são cobaias da militância emergente,
da sempre efémera militância.
Ficam à mercê do redesenho, 
as páginas.

Consequentemente
antes caiá-las a lápis
tão prestado à efemeridade
como os sazonais modismos que ecoam
uns atrás dos outros
na sucessão dos tempos 
e das modas que com eles rimam.

#828

Fragmento.
A voz errante
num beco furtivo.

3.12.18

#827

(Contradição de termos)
Abespinhado,
o empregado de mesa
advertiu a senhora da caixa registadora:
“desculpe, minha senhora,
mas não peço desculpa.”

A árvore silenciosa

Se fosse uma árvore
era testemunha do tempo inteiro.
Dizem
que as árvores morrem de pé.
Julgo não estar errado
se se estipular
que não dormem também,
as árvores.

(Pois se em pé sempre estão
e se lhes não conhece pose de sono,
a pose é imutável.)

Se fosse árvore,
testemunha do tempo inteiro
perguntar-me-iam 
pelo sortilégio do tempo
pelas barcaças invisíveis
que metem fundos remos nas horas sem moldura
pelos olhos sem medo da penumbra da noite
pelos vorazes letrados 
que serpenteiam as palavras
os deuses sem rosto
(e, portanto, mitos)
que patrulham o sossego da madrugada. 
Seria demandado
pelas autoridades
pelas viúvas sedentas de assunto
pelas patrulhas sem nome
pelos agentes secretos sem gabardinas
pelos astrólogos falazes
pelos curadores dos costumes
pelos poetas sem inspiração
pelos ideólogos subitamente órfãos 
(de ideias)
pelos remotos, heráldicos barões. 

Não sei o que teria para dizer
a tanta gente em suas demandas. 

As árvores 
são guardadoras de silêncios
o mais sepulcral dos silêncios
em formosa constelação de estrofes
embuçada no mais elevado
direito de não falar.

#826

Os nomes inteiros
vacilam na rua do pensamento
entre desmemória e apuro. 

2.12.18

Bitola

Remexem-se os dizeres da vida
como se fosse posfácios urgentes.

Os párias não contam,
dizem.
Não sei se concorde.
Nas ameias da penumbra
persistem algozes em maturação
congeminando uma fúria inviável.

Apanhem-se os frutos do chão
e que sejam entronizadas as suas dádivas:
não é a penumbra que conta;
são os radiosos céus
que irrompem pela janela.

#825

A fotografia
desenha os rostos imóveis.
Os rostos que parecem debater-se,
imóveis, no vazio que os preenche.

1.12.18

#824

Doce a filigrana
quando os teus lábios
se molham em minha boca.

Emolumento

Uma miríade de cabeçalhos
as palavras como faróis
saciando-se na volúpia das sílabas.
Os cais secos preparam-se 
para serem o chão atapetado
onde discorrem as palavras salivadas
os bustos da improvável fecundidade
em promessas seladas
com o granito como haste.
Passam as horas
e as nuvens pesam no mesmo lugar.
O gelo que arde
deita-se no património repatriado.
São lagoas de águas paradas
os feixes por onde fogem as palavras
por todos os lugares
em seus malditos prantos
as invisíveis lágrimas nos suados vitrais.
Despedida a noite
no trono estilhaçado por um cometa errante
recolho do chão os corpos derrotados.
Esforça-se a manhã 
no desembaraço dos estivadores da alma
e rejeita as promessas bebidas
em cálices de ouro.