31.12.18

A matemática da loucura

Os loucos não erram
na sua aparente errância.
Devolve-se-lhes um caudal próprio:
o desinteresse 
pela demência do mundo
que os determina loucos. 
E pergunto-me:
se um demencial mundo
(disfarçado em seus impecáveis pergaminhos)
é legítimo
para deitar os loucos ao ostracismo. 
É dos livros e da matemática:
dois negativos 
um positivo somam. 
(Se admitirmos,
como julgo líquido conceder,
que duas loucuras arrostam 
sinais negativos;
outro seja o predicamento
e o pleito salda-se
pelo estilhaçar do cordão sanitário
em redor da loucura,
enfim normalizada.)

#859

Nomeia o fiel a jeito
este que te verte o peito
o verbo todo a preceito. 

30.12.18

#858

Estou por dentro dos teus sonhos
como tu és tutora dos meus. 

Moeda

Esta é a moeda
o aroma ouvido nas claves
o distinto chapéu como ornamento
o lauto jantar
um esboço de perfeição
(inacabado)
(inacabada)
a tentativa de superação
árvore centrípeta a exigir atenção
a estrofe tardia
o sonâmbulo terçar das armas
(circunspectas)
o grito lúgubre
os instintos sem nome
a convulsão adiada
o espectro do medo
(infecundo)
a lição sem palavras
o testamento sem morte
a lívida aura dos inocentes
a pena sem pena
(ergástula)
o gosto sem gasto
(não o gasto sem gosto)
a mão tremeluzente
o candeeiro apagado
a rua à procura de paradeiro
o salitre vertido nas casas litorais
os frutos não colhidos
(à espera da podridão)
o mapa desalinhado na véspera da moeda
(falta saber se boa). 

29.12.18

#857

Entre o dois de espadas
e a espada de Dâmocles 
que seja do diabo a escolha. 

28.12.18

#856

Ressentimento
não é o que vocês pensam:
é um sentimento
sentido em repetição.

27.12.18

Genealogia

A genealogia indiferente
raspa as arestas militantes
e revela o vazio dentro do vazio.

Súmula,
aquela música
de um minuto e quarenta e três segundos:

o impossível
é condensar o muito que se diga
num punhado de palavras.

Não há genealogia que o precate.

#855

À contraluz
a silhueta dissolvida
na sua verdade.

26.12.18

Sei

Sei
das lágrimas enxutas
na varanda sobranceira
ao mar. 
Sei
dos vultos
imersos na neblina tardia
de seus olhares vigilantes
rimando com a noite 
furtiva. 
Sei
da chave fundida
na pauta arcaica
de onde entoa o ciciar 
matinal. 
Sei
das marés adstringentes
no sopé do horizonte
por onde o olhar 
se projeta. 
Sei
da memória
que se desenha na posteridade
entre páginas e páginas 
por saber. 
Sei
de memória
as palavras desembainhadas
no santuário 
do desejo. 
Sei
do paradeiro 
dos penhores da paráfrase
hasteando os lenços humedecidos 
pelo orvalho. 
Sei
das noites sem sombras
no desembaraço dos fantasmas
na maresia que entra 
pelo postigo. 
Sei
das proezas vindicadas
por falsários sem remédio
peritos singulares 
na mitomania. 
Sei
dos oráculos sem rosto
as páginas caiadas em perfeita alvura
o ímpar relógio que dá as horas 
do futuro. 
Sei
das palavras que quero na boca
metáforas incindíveis
mostruários das profundezas 
da alma. 
Sei
dos lugares atapetados
dos equinócios sem portas por encerrar
do perímetro apetecível 
de um labirinto.
Sei
um módico
medida bastante
para sobre um algo ter 
ciência. 
E sei 
do que sei
sabendo do imperscrutável
que fica por saber.

#854

Na muralha da penumbra
ou na malha dos nenúfares
os segredos patentes à sindicância.

25.12.18

#853

Antecipo o litro no miradouro
sem esperar mel em forma de juros.

24.12.18

Rastreio

Emboscado
pelas mãos com salitre
uso a maresia
para bode expiatório.

Não cuido da redenção;
o cerco malsão
não se aceita sem causa próxima.

Das ondas conceptuais
retiro a centelha que preciso.

Ornamento o chapéu
com o desuso sem fartura
e torno ao lugar da partida
vestindo a alvura 
das sereias sem paradeiro.

#852

Simulação
com transparência
a todo o vapor.

23.12.18

Decadência

O estatutário medo:
a decadência
no corpo gasto
irremediável decadência
simulacro do que foi
o corpo gasto
e o golpe derradeiro que se demora
abrigando a agonia
a profunda, humilhante condição
pior do que o vegetativo estado:
a lucidez 
dá conta da decadência
um punhal fundo na carne
ensanguentando a alma
com o impossível devir.
Fosse deus uma existência
não caucionava a decadência dos corpos
em castigo soez
autêntica pena capital a repetir-se
um dia atrás do outro 
ecoando o medo no relógio sem horas.

#851

Não sei fazer previsões.
Essa é das minhas maiores virtudes.

22.12.18

Xadrez

A destilaria arcaica
repensa os modos 
– os imberbes na fila
à espera de conselho.
Não tem nada para dizer,
a destilaria.
Os imberbes,
deixados à sua sorte
no manejo das espadas
e o tabuleiro compõe-se de sangue
na matriz dos sacrificiais relógios
onde se admitem os corpos exangues.
Só então
já não imberbes
os sobreviventes estão a jeito
de serem jogados à prova. 

#850

O aconchego biológico:
a pele entretecida noutra pele.

21.12.18

Pólvora

Não é por motim
que ordeno o silêncio
interior.
As teias urdidas no gasto tear
cobram o seu preço 
e os tapetes violetas não chegam
para sossegar os medos.
A fogueira crepita
na viva combustão nutrida.
Olho para os contrafortes do sono
onde se balizam os limites do nada
e sirvo em cálice a saliva
os juros das palavras silenciadas.
Sei que a noite amedronta.
Sei que à noite
a solidão parece um gigante
as suas largas patas espezinhando
o fértil chão agora sem uso.
Não é por mim
que arvoro as estrofes hirsutas
e que contrato druidas sem rosto.
Não é por motim
que digo não.
Na acastelada sucessão de leis
desordenam-se os sacerdotes
por “inútil superveniência”.
A escadaria arde
num fogo brando, 
insistente:
a lógica ensina qualquer coisa
mas o motim
levou a memória.

#849

(Variante do #757)

Quem, em sua lucidez,
vai a correr atrás do prejuízo?
(A menos que seja para o liquidar.)

#848

(Da longanimidade)
Não é miopia:
é o nevoeiro
que embacia o olhar.

20.12.18

Quarentena

Três alqueires de alquimia
por cima da pele gasta
no olho do observador experimentado
no furacão ensandecido
que não pactua com vírgulas a destempo:

pode-se enganar uma pessoa de cada vez
mas não todas ao mesmo tempo.

A vã ilusão da grandeza
esbarra no caudal apertado
nas águas mortiças que estagnam
no imemorial lampejo da recordação perdida
interpelando o barro arcaico
a fortaleza que oculta as rugas que destoam:

pode-se pretender ser o fingimento
o papel mais fácil 
(de atuar e de desvendar).

Profetizam os beatos adivinhadores
desgraças mais infaustas
o comezinho pó que se insinua nas entrelinhas
o pós-qualquer-coisa que pisa seus calos
o promíscuo contrabando de ideias
das pessoas desalinhavadas da vertebral coluna:
não sejam insistentes pregadores
não vá sua calvície acabar patenteada
ao público olhar. 

Pode-se jogar no arame da ignomínia
sem saber
que os jogadores são as presas favoritas.

#847

Joguei à simplicidade,
o complexo jogo
fermento das perplexidades.

19.12.18

Vias de facto

A vergonha não é órfã
sitiada no peito exposto
aos ventos alheios.

Torci pelo perseguido
não suportando maiorias
em diatribes moralizantes.

Caí na transgressão
num leito de pura provocação
o gratuito berro ecoado ao ouvido.

Nas descidas inclinadas
onde se antepõe a decadência
quis amesendar a preceito.

Intuí a delicodoce liberdade
o despojamento sem peias
a dor sarcástica da carência.

Folguei no folguedo
nas variedades proibidas
e não transigi aos costumes.

Da trincha empreendi
e das tintas usei
para dizer que nas tintas estive.

Nos colóquios apessoados
apeteciam andrajos
e a nuvem da higiene em falta.

Não será um fartote de rebeldia
que se me dizem rebelde
logo apetece alinhar pelo canónico.

Chamem-lhe (por assim dizer)
espírito de contradição
apurado com o andamento do tempo.

Espírito de contradição concentrado
depurado com a madurez
contra as aleivosias determinantes.

Pelo gosto de dizer não
quando suplicam o sim
e sim quando esperam o não.

Pelo dever de apaziguar
os demónios que se alimentam das veias
incensando-os nas cinzas transcendentes.

Até de mim saber paradeiro inteiro
o fôlego incansável
refugiado no cais longínquo.

Até de mim sobrarem 
(quem sabe)
epitáfios sublimes, silêncios.

#846

Desmaia a partitura
nos interstícios da dúvida
e eu rendo-me à latitude asceta.

18.12.18

Evanescente

Esqueci
do amanhã em equação.

Desvendei o vazio
no nevoeiro baço.
No tiranete bolçar das veias
fujo do calmo adornar dos corpos
das medidas enquistadas na arca
sem o temor dos temores
do sino maldito que turva o sonho.

Esqueci
da manhã em cogitação.

Arrematei o revólver 
no coldre sem fundo.
Nas águas onde corre o sangue
invisto com o destemor dos loucos
contra a vilania dos velhos
sem amordaçar as palavras
no verso repetido no eco da noite.

Não esqueci
dos vasos intumescidos
à boca do meu desejo.

#845

Faltam 
as horas contadas.
A metáfora do tempo que folga.

17.12.18

Parêntesis

Não fechou o parêntesis
na prosperidade da ideia por medrar.

Precisa de olhar
para o outro lugar:
onde não há castelos
e o luar 
se desfez dos vestígios de pedras.

O parêntesis continua aberto.
À espera 
das palavras insistentes
dos verbos sem medo
da formulação da manhã prometida.

Até hoje
continua convencido
que o parêntesis deve continuar
por fechar.

#844

O istmo embainhado no mapa
apregoa os lamentos intangíveis;
sobra-lhe a ambição de ser península.

16.12.18

Tiro no claro

É nesta pira
que os embotados se incensam
no espartilho do entardecer
blindado na sombra de um passo
a redenção do grama de crueldade.

As espadas vãs
não conferem com a maresia
e a alma aprende os rostos vazios.

A sabedoria sem rédea
é o castelo onde o sangue arrefece.

#843

O sortilégio
é não sabermos
quando uma vez é a última vez.