19.2.19

#929

Há eras
o que eras.
Às heras
à espera de outras eras.

#928

Tenho predileção por aqueles bravos
peritos em meias palavras
e que se esquecem dos nomes.

18.2.19

#927

Uma camada protetora
o ozono apadrinhado
asfalto atapetando meus pés.

05:42

Às cinco horas e quarenta e dois minutos:
sinto a manhã
a latejar nas pálpebras,
a resina que destrona a letargia.
O orvalho 
colhido nos dedos ainda entorpecidos
cimenta o apetite pelo dia nascente.
Não sei dos sonhos havidos 
– até parece que foram há eras.
Do lado do mar
a lua entaramela-se no seu ocaso
apenas um timorato espelho
cansada de irradiar a noite.

A lua vai a caminho
dos seus sonhos
e eu nem dos meus tenho evocação.

Ponho o relógio,
que o torpor não tenha recaída.
Logo à noite
se verá se as pálpebras ainda latejam
e se a lua não se arrependeu
de irradiar a noite.

#926

A contrassenha 
na penumbra furtiva
o estremecimento que há na boca sedenta.

17.2.19

Desaparecido

Ao desbarato
como um carro desgovernado
se despenha no rosto fingido
e as malhas apertadas nos braços
deixando-se cair,
desmaiadas,
num pesadelo.

O soluço que não consegue travar
hiberna o silêncio
e são as fruteiras vazias
que ordenam a vastidão que não frui.

O almirante
desapareceu sem dar conta
mas ninguém se importa.
Ninguém se importa
com pesadelos.

#925

Corto a eito até ao osso
e julgo na imersão profunda
os netos do dia corrente.

16.2.19

Jasmim

O jasmim tardio
colhido das mãos sem nós
entrança-se no modo diuturno
em rimas disfarçadas com o dia.
Não é o conteúdo das ondas
que importa na contabilidade amadora
ou o verbo mendaz que atrasa a fala:
é o jasmim
o tardio e o maduro
que compõe o perfume do dia.

#924

Copy paste. 
Sem ser plágio.

15.2.19

Caixa forte

Um rosto túrgido
triangular encenação da candura
pintura a óleo com cores desmaiadas
a uma maré que é espelho.
Não é a lua calada
expoente das reverberações impostas:
é a porta arrombada
as naus na vertigem da ferrugem
a intermissão das insuspeitas divas
os conflitos diluídos na suprema vontade
fotossíntese de quase tudo.
Gastam-se os mares em causas repletas
e nem assim se perdem no infinito:
não descuidem os inspirados alquimistas
do fado que dizem cuidar;
não descurem os alfaiates do mundo
de seus contornos errantes
da improvável chama que acende o zénite:
não deixem nada ao deus-dará
que os demais somos tutores do caos
o selo distinto do legado que nos deixam.
Nós,
os dos rostos não emaciados
os que não se isentam da emancipação
nem se anestesiam em jogos florais
pela autoridade das razões das autoridades.
Nós,
os dos rostos túrgidos
penhores da pura, não adulterada, 
e talvez quimérica,
ousadia que de nós faz homens.

#923

Não gosto do novo ano.
Tudo é antigo
mesmo o que só conheceu
meia-dúzia de dias.

#922

Incomodado, protestou:
“que massada!”
Logo percebi
que não gostava de massa.

14.2.19

Observatório

Desde a escarpa sobranceira
o solstício aprumado:
arrumações e provas dos nove
versos aprontados a lápis fino
visitas imaginadas
no calor avivado dos braços repostos.
Serei
o incorruptível membro
aquele que não capitula 
nem diante do medo
orgulhoso de sua cepa dita infecunda
ilha 
acossado 
pelos esfaimados redutores de tudo
ao vício dos favores.
Desde a escarpa sobranceira
as arestas que não sobressaltam:
delas serão sua manjedoura
os esfaimados redutores de tudo
ao vício dos favores.
E eu,
em inconfessável deleite,
testemunha sublime 
no anteparo do riso desbragado.

#921

Para poder festejar o dia dos namorados
permaneceu para sempre 
solteiro.

#920

Há lugar para o amor
num general viciado em guerra?

#919

Só um dia para celebrar o amor.
A parcimónia do mundo com o amor
é sinal da sua 
(mundo? amor? ambos?) 
decadência.

13.2.19

#918

Queria
um livro descarnado
mas temo tanta nudez.

Dialética

O comboio
cavalga sem siso
esculpindo os carris férteis.

O cavalo garrano
toma a fonte como apeadeiro
desenhando sua língua espirais na água.

O marinheiro
atravessa o cais
desapoderado de seu elemento.

O escultor
amacia o granito
para nele assentar moldura radiosa.

O mendigo
dorme no pontão
à espera que o tempo não seja madraço.

A bailarina
chora no palco vazio
na agonia da solidão.

O cão danado
foge em correria
da loucura dos anciãos.

O paciente
admira a sala de espera
contra a frieza da doença.

O armador
despenteia as páginas do livro
revoltando-se contra a abastança herdada.

O joalheiro
antecipa a luz vívida
na encruzilhada preciosa.

O rapaz 
estroina sem remédio
não sabe o que é dormir à noite.

A costureira
atira o olhar para o firmamento
costurando os sonhos audazes.

O cobrador
pendura-se na estribeira do elétrico
avivando os ecos da infância.

A lareira
desembaraça-se de cinza
e na casa respira-se conforto.

#917

De memória
apanho as sílabas
pausadamente entoadas
na saliva que as aprova.

12.2.19

Acerto

Foram estas as braçadas
que abriram o caudal ao corpo
dantes imóvel na cortina de pesares
dantes sedentariamente militante. 

Não operei nenhum milagre

(estou capaz de jurar
que não caminhei sobre as águas)

o perpétuo dançar não me é caucionado
e, seja como for,
não foi para coreografias 
que se deu meu nascer. 

Prefiro dizer que não fujo das águas
independentemente de sua tempera
e salinidade;
pode ser desmesurada a medida,
contraporão desconfiados em sua metódica 
ciência:
perguntarão se me atiro
até aos mares invernalmente iracundos
se não temo a morte que sussurra
na báscula que atiça as ondas mortais. 

Respondo
por inversa ordem das demandas. 

Sim
a morte é do que mais temo
o pior dos maus.

E sim
quem pode dizer nunca ter sido posto à prova
e quase todos os dias
por mares terrivelmente tempestuosos
que desmentem o bucólico rosto da existência?

#916

Nos contrafortes do peito
onde as águas se amansam
a nitidez desenhada numa silhueta.

11.2.19

#915

Nunca entendi
por que chamam “vampiro”
a quem faz controlo antidoping.
Talvez seja melhor a trapaça.

Dois urros aos preletores da pedagogia

É a petição
que se oferece ao mote:
o arranjo das palavras diagonais
com incidentes de sintaxe
e uns quantos lapsos ortográficos;
mas o pior
é a mensagem,
ininteligível
– por vezes gongórica, 
só para disfarçar a ausência de ideia. 
Não é por acaso. 
A leitura foi atirada para um canto
onde
– de acordo com os argonautas da modernidade – 
vegetam os misantropos. 
Que interessa 
se engenheiros têm uma escrita pueril
se plumitivos 
tropeçam na ortografia e na gramática
se há tanta gente a tresler o idioma maternal,
se os juízes empossados
(lídimos decantadores da pedagogia)
ajuramentam o grande malefício
de ensinar aos petizes o idioma
sob o labéu do erro penalizado?
Não será também por acaso
que tão insignes mestres da pedagogia,
a eles chamando a coroa no périplo
dosprimus inter pares,
sejam apanhados, 
e tão frequentemente,
no logro do pobre idioma.

#914

Componho o crepúsculo
o esconderijo como asilo
enquanto me devolvo a quietude.

10.2.19

Embargo

Do embargo da alma
a cortina evaporada
sal que não salga
a enseada dos estouvados boémios
o arreio atrelado na gravata de doutores
e um escrito com três frases
a jura de um candeeiro para noites
num remoinho retirado ao caudal veloz.
Do embargo da alma
um instante esgotado
a recusa das maldições
o suculento verso à procura de leito,
um papel singelo
humilde.

#913

Sou eu 
que empurro o vento
na vigilância selada com saliva.

9.2.19

#912

Vergonha é culpa
(Antígona):
o eclipse da humanidade,
ou a sua cegueira.

#911

Vinha mesmo a calhar
(o 911).

Caiado

Por dentro do segredo
a melodia
anestesia em forma de favor. 

Por parte do ensejo
o chamamento
refúgio sem portas visíveis. 

Por adesão à farsa
o jogo
tribunal longe da justiça. 

Por compromisso da maresia
o castelo
notário à míngua de papéis. 

Por fuga do hodierno
a centelha
luz desmaiada no recobro do olhar. 

Por vontade sem freio
um livro
paisagem que colhe substantivos. 

Por armadilha esperada
a cautela
provisão disfarçada de advertência. 

Por causa de tudo
uma ideia
santuário de todas as dúvidas. 

Por deferência das interrogações
o bálsamo
apetite do irrecusável.

8.2.19

Moldura

Calculo de cor
a altura da tua pele
o cais em que vejo as cores
num destino sem mapa
se não a bússola em minhas mãos. 
O estremecimento não cora
à espera das armas iguais,
enquanto tribunos no mais elevado altar
somos penhores das joias singulares
no pleito onde entregamos os corpos
em mares agitados num frémito sem horizonte
e as bocas que se cruzam
no suor intemporal. 
Corremos os apeadeiros
em incalculáveis paisagens ditadas pelo olhar.
A submissão da voz
desembaraça o silêncio que fala mais alto
e os sonhos já não são sonhos
porque os traduzimos em cada dia nosso. 
Cresce uma espada sem dor
manual impecável sob a lareira meã
cresce
pelo que de ti há de tanta água em minha boca
no mapa que tateio
o corpo que quero, 
ávido de o querer:
não serão vãos os predicados;
a bem, percorrendo os teus centímetros
a cartografia que aprendo de cada vez
mesmo sabendo-a de cor.
Juntamos a noite ao peito faminto
e se as bocas não se perdem
continuamos feitores da empreitada
uma coreografia em papeis suaves
uma paleta das cores que inventamos
uma marca registada
singular.
Do amanhã
sabemos ser nosso caudal
a bissetriz onde se fundem os corpos nossos
um amanhã que se faz hoje a cada minuto.
Cuidamos do incenso
que se insinua nas veias:
não o deixamos decair
pois somos os curadores das fogueiras válidas
em prosa elegantemente deitada
nas folhas arrancadas ao céu da boca.
Pétalas frondosas emergem dos poros
enquanto dançamos a dança verossímil
compondo as pautas ufanas 
no amparo das velas dispostas
os corpos transidos
a certa altura, 
exangues,
no imodesto verso que te dou
à troca do tanto que me completas.
Se um deus houvesse
tenho a certeza que daria a aprovação
ao império impróprio 
que juntamos com as mãos feitas 
no sangue vínico. 
Os sonhos já não são sonhos
porque os traduzimos em cada dia nosso.
No amanhã que se faz hoje 
a cada minuto.