23.3.19

Cartada

No tira-teimas mais teimoso
duvido que as dúvidas sejam ajuda
e a ajuda não se estima
no logradouro dos orgulhosos
(que a recusam).
Podemos ser apátridas
incansáveis perseguidores de quimeras
pescadores de versos improváveis
crianças perenes sem a parte pueril
argonautas com aguçado apetite
lutadores sem arena ensanguentada
e mesmo assim
devolvem-nos ao mar
as marés com que nos ornamentam
pois sabemos que o mar
é a haste da sabedoria.
No amparo da noite desenhado pela lua
atiramos à sorte a sorte contra o azar:
não sabemos ao certo
o mapa sem fronteiras
pois as fronteiras foram dissolvidas
no verbo que se não gasta
nem com languidez do tempo.
Por isso
pesamos as sílabas
como se fossem pedras preciosas
nenhuma sílaba deixada por dizer
no ouro inteiro que é gramática onde repousam
as bocas controversas.
E voltamos ao tira-teimas:
a pedra angular por onde se verte a angústia
o medo do medo maior
a partida
irremissível, sem remédio.
Oxalá houvesse um firmamento outro
por onde prosseguir,
dizem:
uma passagem
está por onde somos
meros intérpretes de vontade que não é nossa.
Perdemos o norte, o sul
perdemos das mãos a bússola itinerante.
Podemos emaciar o rosto
no sobressalto da finitude.
Até que um golpe de asa transfigura o palco,
subitamente irreconhecível.
Adiam-se as inquietações
e um pássaro generoso,
com a cobertura de suas asas, 
tudo cobre
e na sombra se distingue o chão húmido
a morada derradeira dos que capitularam
e dos que à capitulação se encomendam.
E, enfim,
já é possível transcrever estrofes proibidas
sem o medo do medo maior
sem sermos assaltados pelos vultos algozes
e da porosidade das pedras 
que compõem a montanha
sermos tutores do devir.
Apanhamos
os contornos do desenho em que somos rostos
e descobrimos um sorriso discreto
não forçado
a aquiescência da maré que tem lugar
sem ter data no calendário.
Bebemos no verso do dia
tiramos ao tutano da vida 
tudo que nele se contém
para devolvermos em dobro
até sentirmos a ossatura firme
um calendário sem páginas por dedilhar
e do copo subimos as paredes
fazendo nele as gotas tidas por evaporadas,
do corpo habilitarmos a muralha
de onde somos feitores.
Não aprendemos a dizer adeus;
refugiamo-nos nos braços do outro
curadores do corpo nosso
e do sexo trazemos o descuidado prazer
que ensina a geografia do infinito,
em oposição
aos manuais do entendimento.
O tira-teimas 
consome-se na sua infecundidade:
que desperdício de vida
estar à espera da morte
com o medo que ela infunde.

#974

Recomende-se vivamente 
a pira de nervos.
Na pira, os nervos são incensados
e ninguém precisa de ansiolíticos.

22.3.19

Vigilante

Dizem que o crepúsculo
não tem vidros
e os uivos da maré decantam
a desmaiada cor do entardecer.
Se soubesse
como cantam as areias beijadas pelo mar
queria para mim a palma de ouro
o leito sagrado das palavras não ditas.
Queria
um sonho intenso
enquanto os cães bulhavam na rua
e os latidos eram verso sem apocalipse,
um sonho por dentro de outros sonhos.
As muralhas servidas no rosto
úbere das lágrimas sustidas
ensinam os óbices superados:
não há mestres por aqui
e os versos entoam as preces sem vento
o temível, admirável declive da vida
e aprisionam a decadência
num quarto sem janelas.
Não quero o crepúsculo
nem me iludo com o sortilégio do entardecer.
Escavo com as mãos
as sementes que as há,
sedentas,
imensamente férteis
e trago a mim a terra molhada
máscara que reifica o corpo perene.
Enquanto
houver perenidade.

#973

Se o pé em riste
dá admoestação
o dedo em riste
dá que punição?

#972

Match point:
a estocada sem comiseração
epílogo em sala de espera.

21.3.19

Abreviatura

O mistério que adoça o peito
é feito de flores nascentes
um perfume destinado aos deuses
a crisálida estonteante
hasteada nos dedos exultantes. 
Não há de ser o sangue gutural
servido em veias vulcânicas
a separar a água do caudal;
a voz pinta a lua derradeira
e dos pássaros vem um canto fluido
o sucedâneo das palavras
as que teriam sido ditas
se o silêncio não fosse imperador. 
À volta sente-se a presença de vultos. 
Os corpos nus como floresta
os dedos entrançados como ramos metabólicos
os lábios que esperam beijos
de outros corpos nus. 
Decidam-se os hesitantes rostos
decidam-se
enquanto há maresia:
desde a noite superada
arrastam-se cadáveres em forma de pesadelo
(ou pesadelos disfarçados de cadáveres)
e o contrabando de tudo
parece o epítome da autenticidade. 
Nas loucas correrias que cortam a floresta
os cuidados esquecidos balizam
as armadilhas. 
Não sei se será do labirinto
e das suas formas coesas,
o mistério para o ser exige ser mistério:
ou será que alguém se propõe
a decifrá-lo,
desfazendo o mistério do mistério?

#971

As palavras que digo 
são as que escrevo
mas não escrevo
todas as palavras que digo.

#970

Chora os chacais
e chama a charada.

20.3.19

#969

Um tiro no escuro
uma bala encravada
nos contrafortes das probabilidades.
Uma bala não desperdiçada.

Propulsão

Por dentro da memória futura:
um lago desidratado
a névoa que se insinua na colina
a identidade sem vestígios
e o aparente algoz
hibernado. 

Conto os números
por distração. 

Conto as pessoas
enquanto desfilam à minha frente
e o café arrefece,
à espera de molhar os lábios. 

Não há notícias de tempestade. 

Evocações distantes,
perdidas no poço fundo da desmemória,
transfiguram o espaço em que se move
o tempo. 

Não há notícias do tempo
na sua indolência futura. 

O marégrafo constitui-se espectador,
ele que se esperava fosse ator;
a tirania do vazio
ocupa-se das empreitadas assinaladas
e os netos dos netos podem esperar
uma multiplicação do vazio. 

Não há notícias de tempestade:
o tempo corre pela cronologia arrastada
e os desenhos na ponta do dedo
dizem que as sombras se dissolveram
no seu movimento exíguo. 

Para fora da memória futura:
esvazio o armário
e fico à espera 
que as quimeras sejam adiamento 
perpétuo. 

#968

Da desobediente alma,
curativo meridional
em colheita nunca tardia.

19.3.19

Arte

Preces inacabadas
ou monumentos em ruína 
– nunca soube 
que metáfora se alinhava
no diadema das considerações.
E talvez estivesse no fulcro do mundo
a fáctica convulsão arrojando-se
contra o meu rosto
e eu,
simples erupção
vulcão modesto sem ninguém assustar.
Devo dizer
que não fora esse meu propósito; 
e que,
insisto,
sempre me foram indiferentes
as dores e as bebedeiras de júbilo
os disfarces e os rostos marcados
os ossos corroídos ou as atléticas esfinges
a decadência ou a opulência
que outros reprimissem ou ostentassem.
De todos os males, 
o menor:
não sou adestrado em preces
e não tenho medida de monumentos em ruína.
Há algo em mim
(sussurra uma voz interior
de que não conheço o timbre)
que me chama para outros quadrantes
destes que são incógnitos no diapasão que sei.
Outras páginas
outras paisagens
outros teares de imberbes palavras
outros cometimentos
outros lugares
outros mares com diferente salitre
outros ângulos do mesmo olhar
outros lagares onde a alma se refreia 
– uma anestesia, 
uma hibernação, 
uma coisa assim parecida.
Sei, contudo,
que tantos outros
(estes e outros outros que subam às paredes)
são a desmedida da medida que sou
e retorno às costuras de mim
no deleitoso palco em que sou eu
sem o embaraço da diferença
de um eu que não cobiço ser.

#967

Entrego-me
literal
e no sopé de mim mesmo,
curador do teu desejo.

18.3.19

Geiser

Arrumada a aritmética dos sentidos
agora sei dos vestígios do sol
antes de ser evaporado no entardecer.
Registo o voo dos estorninhos
os decibéis da coreografia
e de todas as metáforas palpáveis
escolho a que reputo de improvável:
as arestas do céu
minadas pelos rastos dos aviões apressados
moratória não divina,
apenas o sepulcral silêncio
em cima da carne crua

o peito sem amarras. 

Não me apetece regressar à aritmética. 
Os sentidos estão inventariados. 
Tenho uma página
à espera que seja seu síndico.

#966

Em tempos
tinha o Jornal de Notícias como pleonástico.
Hoje, com o império das notícias falsas,
é um vocativo.

#965

E depois havia os sonhadores,
os que não se conformam
com o dia em forma de vulto.

17.3.19

#964

Não tinha nada a dizer
às finas tapeçarias
esquecidas no lúgubre sótão.

16.3.19

Corpo refúgio

Tenho em minha posse
as posses que de que sou penhor
quando sou refugiado
no castelo sem terra
e exerço,
para meu grande deleite,
o dever de abraçar ao corpo
o corpo teu que é meu refúgio.

#963

Sem a sede do teu corpo
seria nómada apenas com um deserto.

15.3.19

Ditado

Empenho um adeus
no vale verdejante
onde as romãzeiras são sombra
e destino aos céus
o vulto enigmático 
do discurso sem armadura.

O poema é transitório.

Dos dentes do coiote
sobra o sangue perdido da presa.
Contingências da natureza,
a sua bruta feição
irreprimível
mas abismal ao olhar desprendido.

O mar sentido
porto de amaragem dos argonautas
decide sobre a pele ávida.
Ao menos ele,
o mar sentido
ancoradouro seguro
mesmo quando se enovela
em vagas medonhas.

Não temos mão na natureza.

#962

Nunca admirei o super-homem.
Os heróis
põem-me em pose de desconfiança.

14.3.19

#961

Não sei
se não soubesse
que não saber
é a melhor sabedoria.

Clorofila

Remendo
no penhor das ondas ruidosas
os estragos da maré
o extravio da maresia. 

Remedio
na estafeta que atravessa a noite
o fantasma a desmodo
a praia atribulada nos estragos da invernia. 

Redimo
no apaziguado lacre da lareira
os foles perdidos na gélida desmemória
a retórica febril no pensamento exacerbado.

#960

Parte de mim
crepúsculo adiado
e a outra parte
rumor projetado no devir.

13.3.19

Profecia de adágios

O que ri por último
tira a barriga de misérias.
Fino como um alho
consegue meter o Rossio na Betesga
sem embandeirar em arco.
Nem às paredes confessa
o riso louco do que ri por último
não vá o cobrador dos impostos
redigir auto de incumprimento.
Não são desculpas de mau pagador:
o sol na eira
e a chuva no nabal
agradam a gregos e troianos.
Acertados os que dizem 
não serem grátis os almoços
e ele, desistindo de ser cigarra,
amofina-se como formiga:
assim como assim
todos gastam coiro e cabelo
e a ninguém se lhes leva
a brancura da alma,
que a não há mais branca,
como a demanda de agulha perdida num palheiro.

#959

Tanto sangue derramado
em guerras perdidas no tempo
e o mar continua azul.

12.3.19

#958

O ritual
ou prémio de consolação
no conciliábulo dos eremitas.

Do nada se traz nada

Não sei o que é nada
pois se o nada se resolve no vazio
e do vazio não se traz cor à água
o nada é um indeterminável,
um todo nada.
Se no nada fosse possível nadar
o nada não era um nada assim definido
era uma água qualquer
respirando um algo
nos antípodas do nada.
Mas se ao nada as coisas se devolvem
são ausência em si mesmas
matéria devoluta
dissolvida no ar invisível
como acontece com o nada
e no nada ninguém nada.
Não há conhecimento
de quem tenha emoldurado o nada
ou de quem dele faça retrato
pois o nada é nada
(não é nada, como arbitram os desatentos)
e como nada que é 
esconde-se na cortina do inverosímil.
O nada é nada
não existe,
indemonstrável.
Que seja terminantemente recusado
que o nada é a negação do que existe
pois o contrário de um lado
não se reduz ao seu oposto.
O nada não é nada,
para não configurar a sua negação.
O nada como nada,
dupla negação,
transfigura-se num algo.
E não há notícia
que uma ausência 
seja o seu oposto.

#957

A linha mestra,
antologia.
A linha.
Mestra.

11.3.19

Oximoro

Do lobo
tirou a rebeldia
o isolamento dos fugitivos
a consciência da desrazão.
Apostou as moedas
na contrafação da franqueza:
pior não seria a deceção
desse conta da aposta arrematada.
Na derrota
o insidioso desvario
dos habilitados pela vitória.
Ele há pelejas vãs
que não adianta bulhar
e muito menos triunfar.