19.5.19

Pastiche

O planisfério
rebenta pelas costuras.
Os rios, as pontes, as lágrimas, as fronteiras
extravasaram caudais.
Perderam o freio.
Uma espécie de sofreguidão.
Sem rosto:
enquanto o planisfério
rebenta pelas costuras
desconfia-se da perenidade
e da latitude dos homens.
Às vezes
o atrevimento transporta em seu bornal
as ruínas do vencimento.

#1049

Veio a babugem.
A toxoplasmose
dos tempos modernos.

18.5.19

Manual de operações

O resto
é a adivinha da tempestade. 
O sabor metálico na boca. 
Um pouco de melancolia
como véspera do contrato sem notário. 
Arredondando-se a data
no emolumento da litania
recusando o ultraje
recusando as outras recusas. 
Aquém das mãos mais altas
a voz emudece. 
Amanhece sem manhã. 
O silêncio abate-se sobre o palco transido. 
Um nevoeiro improvável
acompanha o odor sem rasto
os poros ensanguentados pela ternura. 
Das janelas abertas
pecados sem geografia
gerações perfiladas no incensar dos tempos. 
A harpa longínqua,
mnemónica como instância de último recurso,
devolve as estrofes perdidas
costura a memória
na sua reinvenção. 
Não é logro. 
O curativo assisado perfuma a fazenda
que é a residência dos corpos. 
Talvez
um enigma
como são os enigmas:
a redundante evisceração da fala
o temor das palavras ditas
prantos interiores que secam as lágrimas. 
Um farol intemporal acende-se 
rompendo a névoa baça. 
Avista-se um navio
sem nome aposto no casco. 
O farol continua a ecoar
vertendo a fala funda
no alfobre da pele. 
As luzes do navio contrastam com a solidão
(não se distingue um marinheiro só):
alguém conduz o navio
entre as águas traiçoeiras. 
O farol não o deixa perder-se.

#1048

Homenagem.
Ó menagem.
Homens agem.

17.5.19

Limbo

És
a tua própria
prosopopeia
a bravata dos fígados internos
a jornada torcionária
o arranjo conspirado
simulacro de um fingimento
a ardósia onde ninguém escreve
desaviso iminente
celebração sem data
rio sem caudal.
És a tua própria homenagem.

#1047

“Heart and soul, one will burn.” 
(Joy Division) 

E se ao crematório
estiverem destinados
alma
e
coração?
(Do purgatório com encomenda aos arcanjos?)

#1046

Uma perna atrás das costas
como metáfora de facilidades
não paga uma boa ideia.

16.5.19

Os novos párias

Tabuleiro desigual:
as peças são de matéria desigual
(convém não haver olvido).
O fingimento das doutrinas
ensina a mentira do jogo igual. 
Encantados com o êxtase dos instrutores
e o zelo convencional das regras ideais
instruendos são instruídos no pior logro:
aquele de que não dão conta. 
Doravante
mergulham no ardil vetusto
no conveniente legitimar
do status quo
Julgam-se peças iguais
lídimos protagonistas
na importância que se autoinvestem
no altar da igualdade. 
Embeiçam a farpela distinta
como se bastasse para limar o hiato
e serem iguais entre os iguais.
Não deixa a lucidez
que saibam serem risíveis personagens
carne para canhão
(ou idiotas úteis)
do ardiloso convencimento das convenções.
Depois,
assarapantados e descamisados,
descobrem o plano inclinado
as regalias proibidas
os padrões que diferem com as castas
os privilégios ao alcance dos privilegiados
(ou não se cuidasse saber de privilégios).
Depressa se amantizam
com a negação do instruído:
fica por saber
se é vingança do logro que aprenderam
ou se assisam remover prejuízos
com a negação do que lhes negam.

#1045

Fui desalma
em devido tempo
mar sem sal e noite sem lua.

15.5.19

Não estrela cadente

No meu posto solar
soldado desarmado me apresento
tirando à sorte
se é da sorte que o dia vem falar. 

Já disse 
do muito que se pode dizer:
fui viajante em lugares muitos
de mitos recebi desmentidos
ouvi uma constelação de idiomas
e das paisagens tantas guardo os retalhos,
a minha geografia privativa
em orquestra afinada com gramática a condizer. 

Deste promontório em que sou sozinho
bebo as paisagens que me cercam,
vagarosamente. 
O vento capital esbraceja a fúria 
forçado que foi a ascender à cumeada;
esbofeteia quem ousou ser como ele, 
ousado,
mas não é infortúnio que emudeça 
a voz todavia contida
que amanhece as estrofes cinzeladas
no pontiagudo chão que recebe os pés. 

Sou
antítese de uma estrela cadente
o guardião da memória embaciada
a árvore frondosa na estepe
o caudal cheio ferindo o calcário
o tirocínio inacabado
a estola pousada no rosto encimado
as cinzas vetustas encomendadas aos meãos
e sou
matéria absoluta
campeão das interrogações
bactéria benigna
semente desfolhada nas mãos ávidas
contrato sem papel em assinatura falada
húmus da bondade discreta 
ponteiro do relógio sem paradeiro certo
novo de mais para desaprender
velho de mais para renunciar
miradouro de peito aberto
conspiração contra mim mesmo.

Das teias expostas
em citações ao acaso
obtenho o ouro perdido,
eu:
nómada fecundo
voz murmurada ao ouvido da noite
iracundo domesticável
e não,
estrela cadente, 
não.
Pois tenho este esplendor
guardado na ossatura funda
o esplendor que contudo se aviva no olhar
contra as homilias que atentam contra
joeirando as limalhas que rimam
com os contratempos.

#1044

No esculpir do exílio
torna-se matriz
a mão álibi.

14.5.19

Martelo pneumático

As ruínas da fábrica
pesam sobre os alicerces
em paráfrase de escombros que não tardam. 
O telhado decadente
arqueia-se sobre a ferrugem 
abraçada à cofragem desnudada.
Arqueado
o telhado dir-se-ia sufocar
a alegria que houve 
na prosperidade da fábrica. 
Não fosse
os operários terem desertado 
para a terra dos não vivos.
(Não fosse,
caso um desvio marxista
empenhasse o raciocínio,
desmentir a teoria 
da felicidade dos operários
enquanto operários).

(Estação de comboios da Pampilhosa)

#1043

Preto no branco. 
E não é isso
um poema?

#1042

Confissão:
sonhara académico ser
só para poder dizer
(gulosamente)
“corte epistemológico”.

13.5.19

#1041

Um espelho estilhaçado. 
A metáfora do zelo composto.

Pequeno manifesto anti-piranhas

O que são as pontes
se não um cais para a diferença?

Não será voraz
o apetite igual
o imperativo mesmo rosto
os gestos melodiosamente harmoniosos
a gramática sem dissensões
os gostos por decreto
o infecundo arrazoado da deferência. 

Avançam os relógios
sobre a inércia tiranete
o obnóxio respirar compassado
a página perfeita e sem vincos
a justaposição do mel tentador
sobre a mais apetitosa divergência. 
Avançam os esconjurados
numa estrada sem chão
talvez tutores de castelos no ar;
não é preciso o chão
se ele for a fértil condição de feudos
na mais infértil capitulação que se organiza. 
Não serão as rimas exigíveis
os olhares da mesma cor
os painéis todos com o mesmo debruado
as implacáveis comoções
os hinos de canto obrigatório
a homogenia. 

Desacertem-se os relógios
a teologia dos fusos diferentes
na escolástica da dissidência. 
Cozinhem-se os ingredientes inesperados
em conjugações verbais não canónicas
caiam as lágrimas
até no esplendor da heroicidade
e arrumem-se os varões iconoclastas
suspeitos de intolerância
próceres do seguidismo
anacoretas da terraplanagem dos hereges 
– arrumem-se 
em aquários contraproducentes
extasiados em suas próprias camisas-de-forças
imersos em seus próprios espasmos bolçados.

#1040

O silêncio em contrabando
antes que as palavras trespassem.

12.5.19

Worst case scenario

O semáforo constantemente vermelho
e a impaciência medra
latejando furiosamente nos olhos.
Arranjam-se as lantejoulas
para nenhum acontecimento:
a decadência da memória
afunda a lucidez
e as pontas soltas jamais serão atadas.
Ao menos
sobra um futuro.

#1039

Não a espantalhos
por serem sentinelas
e não: por estarem de atalaia.

11.5.19

Cabo Espichel

Atira a cor das tangerinas
desde o mais alto miradouro
e vê-la amadurecer
(a cor):
as tentativas não serão vãs
se forem tentativas;
mesmo que saibas perdido o jogo
à partida.
Ao entardecer
junta as mãos ao rosto
e empalidece com o desmaiar da luz.
Ao contrário do pressentido
não serás a mudez de ti.

#1038

Salto páginas do guião
sem da história perder o rosto.

10.5.19

Pecadores certos

Certos e pecadores
estamos escolhidos
pela absolvição.
Não por rezas
ou pelo selo abençoado
do arrependimento
ou de outra farsa qualquer.
Comina-se o feito
com os sais que são cáusticos
ou com a vergonha.
Remedeia-se o que foi feito
com juras de jamais outra vez
tatuadas na pele embainhada
sob pena de juros leoninos
em forma de ruína da alma.

Se não
pela noite
furtivamente
embuçados desapiedados
para o ajuste de contas
e doravante
o sono locupletado por pesadelos
não irrisórios
e a alma envergonhada.

Pecadores e certos
estamos promovidos.
Desmentem-se profecias
e os figurantes passeiam na indiferença
sem que a baía deixe de receber o mar
e a boca se encha de mentira.

Pecadores certos
e certos pecadores:
a fragilidade fortaleza
no império da carne que é para canhão.

#1037

Fui ao fundo da fuselagem.
As mãos apartaram a poeira
e trouxe o escafandro esquecido.

9.5.19

Muralha

Procuras a muralha
à prova de vendaval. 
Sabes o que é
não ser vendável
o ritmo compassado no obelisco
onde se resguardam as relíquias.
Não te apetece
se não a letargia;
não capitulas:
não têm préstimo os epitáfios
se as pedras cimentadas
consumirem o desejo da vida. 
São as impensáveis escadas
que intimidam?
Vacilas. 
Olhas pelos interstícios das nuvens
onde o vazio se esgota
na temporalidade do espaço vago. 
Desejas o impossível 
– antecipas, como hipótese,
ao raiar do dia. 
O diálogo pressupõe 
palavras e um par de pessoas
gramática apessoada
e substância do enredo.
Não sabes 
se os gritos que ecoam
são a aflição personificada
ou o aleatório esbracejar do mundo. 
Não sabes
se a miséria pertence aos abastados
aos gongóricos eruditos
aos campeões de si mesmos
enquanto se exibem 
diante do espelho 
– de um espelho
que não sabem estilhaçado. 
A pureza das condições é um quesito,
desaproveitável,
perfeitamente inútil
(ele há poucas coisas tão perfeitas).
Corrias contra o tempo?
Não:
corres a favor do tempo
porque o tempo traz-te em seu regaço
a mão não tolhida composta a teu favor. 
Admites os contratempos
as linhas entortadas que aceitam estrofes
o linho envelhecido que é teu caudal
a redenção não requerida
a ata desorganizada que dispõe o pensamento
um beijo adocicado da clepsidra futura
o sangue domado entre paredes estreitas. 
Aceitas tudo
a começar nos sobressaltos
(que assim deixam de o ser).
Pois descobres
que és a tua própria muralha.

#1036

Esta varanda
onde colho o mar
nas mãos.

8.5.19

Que sei eu?

Que sei eu
de metáforas impostas
das velas hasteadas numa vírgula do vento
do medo alfandegado em vultos perenes?

Que sei eu
dos colóquios órfãos de ideia
dos voluntários remates do dia
das onomatopeias sem rosto?

Que sei eu
dos nomes sem paradeiro
das armas por terçar por guerreiros sem corpo
da escotilha que espreita o aroma do tempo?

Que sei eu
das flores avulsas em jardins sem mapa
das divindades assinaladas 
da gastronomia estrénua?

Que sei eu
dos cavalos foragidos
dos prisioneiros à margem do verbo
das virtudes escondidas em cortinas baças?

Que sei eu?

#1035

O alfarrabista conserva o tempo
como nenhum retardamento de velhice 
consegue.

#1034

Apanho conchas
na areia da maré-baixa,
pétalas bolçadas pelo mar.

7.5.19

Conjurado

Hoje não há ardinas.
Não há sequer varinas.
Não há sãs narinas.

Hoje não compro jornais.
Não vejo da televisão os canais.
Não há poucos boçais.

Hoje digo poente.
Adio o demente.
Recuso estar doente.

Hoje colho alfazema.
Escrevo o “o” com trema.
Dedilho o açúcar do tema.

Hoje não digo futuro.
Não parafraseio o escuro.
Não viro o avesso do osso duro.

Amanhã esqueço-me do hesterno.
Desenho o parapeito do moderno.
Aqueço as mãos no meu fogo eterno.

#1033

Conheço
o rosto da madrugada
a cura para doença nenhuma.