29.5.19

#1062

O álbum de família
a pedra angular.

28.5.19

Adeus ao adeus

Diz o adeus
que a deus não torna
o irremediável selo sem juro
na jura que se desfaz na despedida. 

Diz o adeus
que adeus dizer
tem preço incomensurável
e se de deus se diz ser imaterial
o adeus dizer 
é bem escasso
passível de sopeso. 

O adeus diz-se no ocaso
e não se sabe
se dito ao acaso
do adeus se devolve o seu finito
e se diz do adeus
seu último capítulo. 

Melhor será
deixar o adeus em paz
que não se interrompe o devir
com opúsculos sobre o incerto
e assim desdizer de cada vez
que ao adeus alguém se encomendar.

#1061

Em tempos de estiagem
o manda-chuva é dádiva.

27.5.19

Composição frenética

Atiro o corpo cansado
às serranias imersas no nevoeiro.

Ouço os caudais estrepitosos.
À passagem dos pés
a folhagem seca, outonal,
crepita.
Prossigo.
O corpo ensopado
desafia os pesares.
Luta contra a sua própria carne
as veias crestadas no vulcão da dor.

Ou pode não ser nada disto:
será
o olhar fecundo
que rompe a neblina que é horizonte
e entretece as faias floridas
o azevinho generoso
a alfazema aromática
o tojo moderadamente colorido
as árvores que seguem a coreografia do vento
os recortes das cumeadas
o desenho árduo da serrania composta
e os vales que se colhem com uma mão
no corpo levitado na ascese imprecisa.

Não sei do caminho.
Não sei onde estou.

E talvez saiba tudo o que importa
na tela profusa que o olhar compõe
sem vivalma por perto
na solidão heurística
um húmus 
onde o pensamento encontra guarida
e rejuvenesce no dorso da extenuação
os violinos sem intérprete
soletrando as arestas dos versos.

Sinto a maré-viva que não contenho
como erupção da lava irreprimível
o fértil nutriente das paisagens recortadas
que outorgo à geografia dos corpos.
E alinho as estrelas no firmamento
repostas com os meus dedos quiméricos
no bálsamo inteiro
servido 
em pequenos copos coloridos.

#1060

Em hábitos de alvura
as freirinhas
como noivas de deus.

#1059

Marcar passo
no esquadro do hemisfério
enquanto a alvorada se anuncia.

26.5.19

Decibéis e parêntesis

O decibel da torre de marfim
ecoa no pavilhão auditivo.
Ecoa e ecoa,
persistente,
em reverberações que doem
a cada percussão que, 
funda, 
se aloja.
Podia-se meter um parêntesis na audição
e o decibel da torre de marfim
ao mar morto era devolvido;
mas, 
pelos tempos que são estes,
estão dispendiosos
os parêntesis para qualquer uso
e o decibel da torre de marfim
não tem a estridência
que a primeira audição augura.
Poupados os recursos,
outros, 
mais prementes, 
desideratos
encontram-se em fila de espera.

(E à espera de desenredados serem
da teia de incógnitas 
que adeja sobre o dia madraço.)

25.5.19

#1058

Consagrado.
(Sotaque do norte:)
Cão sagrado.

24.5.19

Slowing down

Queria ser pária,
a noite do dia
a contravenção das regras
braçadas ao contrário da maré
dissidente até das dissidências
contumaz de todas as regras
a negação das negações
na positivação sublime.

Queria ser pária
mas não era habilitado:
contorcia-se no pensamento insubmisso
mas era um coral admirável
frequentado por multicolores peixes
em águas tépidas
e nadadores amadores enfeitiçados
pela exótica geografia.

Um dia, 
desistiu.
Pária não conseguia ser,
ou não reconheciam a condição,
e abandonou-se nas margens infrequentadas
onde são consumíveis
as baratas ideias sem pretensões.

Entendeu
nessa altura
sem melancolia à mistura
que estava fadado à madurez.

#1057

Estão abertas as candidaturas
para historiadores do futuro.

#1056

Deviam à fábrica desaguar
os iminentes eminentes
a suplicar um banho de cultura.

23.5.19

#1055

Não era um estudo seminal.
Era um engasgo pretensioso.

Corsário histórico

Corsário sem mar
assobia os olhos cansados
na reforma que o deixa exangue.
Já não assalta navios
nem ensimesma a vanglória 
de ser senhor dos mares.
Deixou-se de aventuras protuberantes
sarcófagos inelutáveis
baías escondidas atrás dos mapas.
Deixou de ser demónio alheio
nas orações lisamente entoadas
e nas juras aos divinos estamentos
sobre 
arrependimento
e redenção.
Agora procura indulgências
na cordilheira que é seu verbo.
O corsário desencartado
é a humilhação da classe.
O corsário
já não se lembra que foi corsário.
De manhã
quando se habitua à luz clara
diz de si mesmo
que é alguém em esboço.
Alguém 
à espera de ser anunciado.

#1054

O rei vai nu
mas ninguém quer ver.
(E não é por pudicícia.)

22.5.19

Âmbar

Corri no estreito corredor
onde desagua o sal tingido
pelas pétalas tardiamente perfumadas.
É lá que me jogo 
ao acaso
na imperturbável rixa interior
uma metade 
agitada no húmus da inquietação
a outra metade 
contemplando as admiráveis coisas do mundo. 
Não há lugar a juramentos
neste que é um lugar madraço
o visível icebergue em representação tentada. 
Cobro do tempo que tenho
o juro mínimo 
que é desgaste desse mesmo tempo. 
Ainda não percebi
se dele sou
credor ou devedor.

#1053

Abrir a escotilha
em demanda profícua
de sobriedade.

21.5.19

Malvasia

Vou ao batistério
onde as águas são suores acusados
e enfeito a voz com uma magnólia. 

As unhas algemadas
contêm o sorriso alarve dos peritos
e da máscara avinagrada
retenho o ócio simpático. 
Estas são 
as escadas da discórdia
o penhor das alimárias candentes
o canto empenhado da voz seguinte
um certo dadaísmo sem inventário
a tenaz apertada à boca de cena.

Roubo a faca ao ladrão
e não é crime o que cometo;
as desculpas
guardo-as para segundas núpcias
aquelas sem noivas convidadas
e convidados para boda nenhuma,
o lugar onde o bodo se devolve aos pobres.

No lustre embaciado pelo uso
executo o não plano
o acordo firmado 
nos soluços vínicos
na palmilha sem pés por perto
no grotesco movimento fradesco
sem freiras por perto.

Não vou ao batistério
por ausência de comoção mínima
e convocatória de águas perenes.
Prefiro um rio sem desenho
o caudal esventrando no chão rochoso
e as perguntas alinhadas sem ordem
no sopé da manhã estimada,
o eco da concórdia.

#1052

Ao contrário de Shakespeare
eu digo
é melhor ser rei das tuas palavras
do que escravo do teu silêncio.

#1051

As memórias
são o opressor do futuro.

20.5.19

Caderno de encargos

Encargos tantos
depois do caderno
as linhas soltas
no equinócio sem pulso.

Encargos tantos
que não sei da régua
e dos verbos encimados
às ondas sem piedade.

Encargos, há tantos
no sopé das flores
na tácita adulteração
no contemplar do ocaso.

Encargos, depois de tantos
os logrados em contrafação
os embolsados com orgulho
os de paradeiro incerto.

Encargos são tantos
e a caligrafia anota
em papel de almaço
como os bolos ressequidos.

#1050

Sem hipoteca
o horizonte fadado
imarcescível em minhas mãos.

19.5.19

Pastiche

O planisfério
rebenta pelas costuras.
Os rios, as pontes, as lágrimas, as fronteiras
extravasaram caudais.
Perderam o freio.
Uma espécie de sofreguidão.
Sem rosto:
enquanto o planisfério
rebenta pelas costuras
desconfia-se da perenidade
e da latitude dos homens.
Às vezes
o atrevimento transporta em seu bornal
as ruínas do vencimento.

#1049

Veio a babugem.
A toxoplasmose
dos tempos modernos.

18.5.19

Manual de operações

O resto
é a adivinha da tempestade. 
O sabor metálico na boca. 
Um pouco de melancolia
como véspera do contrato sem notário. 
Arredondando-se a data
no emolumento da litania
recusando o ultraje
recusando as outras recusas. 
Aquém das mãos mais altas
a voz emudece. 
Amanhece sem manhã. 
O silêncio abate-se sobre o palco transido. 
Um nevoeiro improvável
acompanha o odor sem rasto
os poros ensanguentados pela ternura. 
Das janelas abertas
pecados sem geografia
gerações perfiladas no incensar dos tempos. 
A harpa longínqua,
mnemónica como instância de último recurso,
devolve as estrofes perdidas
costura a memória
na sua reinvenção. 
Não é logro. 
O curativo assisado perfuma a fazenda
que é a residência dos corpos. 
Talvez
um enigma
como são os enigmas:
a redundante evisceração da fala
o temor das palavras ditas
prantos interiores que secam as lágrimas. 
Um farol intemporal acende-se 
rompendo a névoa baça. 
Avista-se um navio
sem nome aposto no casco. 
O farol continua a ecoar
vertendo a fala funda
no alfobre da pele. 
As luzes do navio contrastam com a solidão
(não se distingue um marinheiro só):
alguém conduz o navio
entre as águas traiçoeiras. 
O farol não o deixa perder-se.

#1048

Homenagem.
Ó menagem.
Homens agem.

17.5.19

Limbo

És
a tua própria
prosopopeia
a bravata dos fígados internos
a jornada torcionária
o arranjo conspirado
simulacro de um fingimento
a ardósia onde ninguém escreve
desaviso iminente
celebração sem data
rio sem caudal.
És a tua própria homenagem.

#1047

“Heart and soul, one will burn.” 
(Joy Division) 

E se ao crematório
estiverem destinados
alma
e
coração?
(Do purgatório com encomenda aos arcanjos?)

#1046

Uma perna atrás das costas
como metáfora de facilidades
não paga uma boa ideia.

16.5.19

Os novos párias

Tabuleiro desigual:
as peças são de matéria desigual
(convém não haver olvido).
O fingimento das doutrinas
ensina a mentira do jogo igual. 
Encantados com o êxtase dos instrutores
e o zelo convencional das regras ideais
instruendos são instruídos no pior logro:
aquele de que não dão conta. 
Doravante
mergulham no ardil vetusto
no conveniente legitimar
do status quo
Julgam-se peças iguais
lídimos protagonistas
na importância que se autoinvestem
no altar da igualdade. 
Embeiçam a farpela distinta
como se bastasse para limar o hiato
e serem iguais entre os iguais.
Não deixa a lucidez
que saibam serem risíveis personagens
carne para canhão
(ou idiotas úteis)
do ardiloso convencimento das convenções.
Depois,
assarapantados e descamisados,
descobrem o plano inclinado
as regalias proibidas
os padrões que diferem com as castas
os privilégios ao alcance dos privilegiados
(ou não se cuidasse saber de privilégios).
Depressa se amantizam
com a negação do instruído:
fica por saber
se é vingança do logro que aprenderam
ou se assisam remover prejuízos
com a negação do que lhes negam.

#1045

Fui desalma
em devido tempo
mar sem sal e noite sem lua.