13.6.19

Lei de bronze

Tirando os tapetes
o chão em sua nudez
e os olhos desembaraçados de peias. 
Todas as ameias são um refúgio
e um refúgio acontece
quando se tem algo a esconder
ou quando grita ao ouvido
a necessidade de um esconderijo
contra os malefícios do exterior. 
Por isso,
as máscaras. 
Os fingimentos repetidos. 
A dissimulação,
um eufemismo adestrado pelos mitómanos. 
E quem os pode julgar
se a maresia insinua um universo homogéneo?
Não chega a ser contrabando;
no limite, 
um teatro imenso
desdobrado em palcos numerosos
e a função de ator transgredida
no papel que todos assumem. 
A bruma incendeia a lucidez
nos algoritmos espaçados que untam,
com matemática autoridade,
o fingimento que deixou de ser. 
Não se compõe o campo alisado
com sílabas destacadas no logro imperial;
os homens são o seu próprio covil
e não se importam,
não estão a cobro da anestesia
que não passa de pretexto para caucionar
o tão organizado caos
o imenso baile dos fingimentos. 
As ameias
são simples couraças
em que todos se protegem
das mentiras dos outros
e das que contam a si próprios.

#1081

Para ser “alto quadro”
que altura é a mínima?

#1080

Dedicado a quem lamenta
ter perdido o paradeiro do tempo:
não se pode perder
o que se não tem na mão.

12.6.19

Estroinas

Estas tremuras
no logótipo das mesuras
não rebaixam as tonturas.
Soubesse das agruras
dos valentes feitos miúras
em pleito com suas cesuras
e quem se importava com as coisas puras?
Talvez só as cavalgaduras
que desconfiam das coisas maduras
e só apreciam tempuras
em suas precoces cozeduras.
Agarram-se às faturas
sem tempo para as manhãs impuras
e deles não é o altar das ternuras.
E fogem das palavras duras
por medo de serem tomados pelas curas.

#1079

Dizer “dou de barato”
é uma entorse à teoria do valor
(o que é dado não tem preço).

11.6.19

Mosto

No leve rumor
da transparência
entre rostos seráficos
e bengalas perdidas na floresta:
não é ao acaso
a empreitada estimada;
o diafragma retesa-se
a respiração adia-se
falta algum oxigénio
e o raciocínio embotado pinta o cenário 
– ninguém sabe do seu paradeiro
e a geografia perdeu estima. 
Julgo que se trata
de uma amálgama desatenta
e a transparência 
é aspiração vertida para fora,
só para fora,
no beijo álgido 
que não deixa um estremecimento. 

Perguntem aos estorninhos
o que diz a sua lavra. 
Perguntem 
aos sacrificados
no óbice de suas falas.
Perguntem aos modernos gladiadores
que alimentam a energia que parece perene. 

Os nomes irmãos falam em uníssono
mesmo quando discordam.
Falam. 
O que parece traduzir-se em boa nova. 
Rompe-se a letargia. 
Reagem os obstetras de colóquios impensáveis. 
Os anátemas 
soçobram à violência do tempo
e é quando se descobre
a frivolidade da transparência. 

Eu sempre tive por desconfiáveis
os que se oferecem ao panteão das virtudes
ao trono suportado em “valores”, 
numa competição sem mecenas
apenas uma exibição de pós-aburguesamento
sem intervalo na crónica dos (bons) costumes. 
Eu sempre tive 
por nada confiáveis
os que em si mesmos conhecem
os lugarejos onde apascentam
a transparência.
Eu sempre tive por desconfiável
que tanto lustro seja aditivado
a um pergaminho que se deseja solar.

#1078

Acerto a fala
pelo meridiano rasurado
e a pauta alinha-se no ceptro esperado.

10.6.19

#1077

No ulmeiro fora do mapa
desdisse das mágoas
seus remédios.

Dança

Arranquei o sal aveludado
do teu corpo exposto.
Em troca
sublimei os faraós encantados
e o verbete do desejo saciado.
Aos nossos pés
depôs-se a noite testemunha.
Depois
a mão tocou num pedaço teu
e os relógios fecharam os olhos
no verbo intemporal
que dissemos em uníssono.

9.6.19

#1076

Cabo do mar.
Onde cabe o meu infinito.

8.6.19

#1075

Devolvida a fronteira
sobrava a exiguidade
da solidão.

7.6.19

Insígnia

Descombino o oráculo
onde muitos se aninham
(para seu resguardo,
assim julgam).

Na contingência do parágrafo
a aspereza do verbo cru
saliva uma certa fúria escondida
(imaginam os ferozes estetas
em seu incomparável donaire).

Se as ameias fossem perfeitas
e as rosas perenemente perfumadas
os cintos lógicos da desmemória
não seriam o punhal sobre a jugular
e até as comezinhas coisas 
seriam o valor do ouro
(anunciam os ingénuos
de mãos atadas nas cortinas do pretérito).

Fazem-se as luas tingidas
pelas lágrimas sem rima
e as vozes sem nome correm sem medo
contra as paredes altas,
inacessíveis
(no pranto contumaz
da viuvez de quem não foi consorte).

À altura do miradouro
juntam-se as falas sem sentido
os sentidos proibidos
as proibições sem lei
e a lei de bronze que está esquecida
no forno ressequido
(e o homem magoado
indaga o horizonte sem freios).

Os escombros,
por estranho que seja,
não são velhos
e os capazes alinhavam as estrofes avulsas
de onde sai o mar em seu irredentismo
(contra a metáfora
do boémio totalidade).

O chão quente
seca a chuva inóspita
e as plantas não chegam a saciar-se. 
Os rótulos não sabem das garrafas
e as pálpebras retêm as vírgulas a destempo,
curadoras da gramática exemplar. 

#1074

(Allen Halloween, Parque da Cidade)

“Daqui não levo nada.”
A sinopse da minha relação
com a igreja.

6.6.19

Degrau

Sobre o mar
o verbo alado
consome o tempo. 

Digo:
o mar é meu
por saber ser meu
o olhar que nele se detém. 

Do mar intransigente
recolho a paciência
na impura condição assinada. 

Digo:
o mar sou eu
pelo menos hoje
que tal se congemina a vontade. 

E se ao mar deitar
o suor envernizado
resultam as garrafas órfãs
que encontram epílogo no areal. 
Do mar ciciam
as garrafas não vazias
testemunhas da constelação de palavras
e de uma miríade de sentimentos. 

E do mar
e ao mar
os revolvidos poréns
as seráficas visões
os destroços reavivados
os rostos inanimados
a esfíngica silhueta do mundo
com o arco-íris multiplicado
a um expoente sem conta
como verbete da rica 
diversidade.

#1073

Considerar a obra-prima
é discriminar as tias.
(Heresia!
clama-se na Quinta da Marinha.)

#1072

Os ecos são o mandato
do verso transfigurado.

5.6.19

Italianização

Precisamos
de uma certa italianização 
– consagrar o mascarpone 
em vez do queijo da serra
o limoncelo
em vez do licor Beirão
as beringelas
em vez dos nabos
até o Dante (apesar de tudo)
em vez do Herculano.
Precisamos
de uma injeção de esbracejares
em vez da introspeção misantropa
de palavras salivadas em todas as suas sílabas
em vez do mutismo das palavras pela metade
do ruído de todos que falam
(até que seja uns por cima dos outros)
em vez do velório circunspeto
de música festiva
em vez do fado
da metódica desorganização
em vez da organização do caos
do sangue em perene ebulição
em vez da mansidão capitular
do apetite pelo amanhã
em vez do ab-rogante empenhar no outrora.
Precisamos
de um módico de latinidade
em vez destas nem-meias-tintas
em que de latinos 
puxamos o gatilho sem o sermos
e nem nórdicos nos assumimos
(por divergência geográfica).
Precisamos de Ferrari
na vez de D. Sebastião.

#1071

“Colateral”, murmurava o soldado
no raso raciocínio 
da metralhadora exuberante.

#1070

A erosão açambarca a enseada
no lento vagar das rochas
ao império do mar.

4.6.19

Estrelas & vulcões

As estrelas existem
para serem implodidas. 
As estrelas precisam
de sua implosão. 
Nascem
com o mesmo fado dos vulcões?
Os vulcões
adormecidos uns
outros num frémito agitado
esperam a data não preanunciada
da sua explosão. 
E todavia
estrelas e vulcões
não são antinomia:
em sua implosão
as estrelas constituem-se
matéria-prima de vulcões
e os vulcões eructam
milhares de constelações de estrelas
devolvendo-as ao seu mapa ancestral.

#1069

Estava para dizer
panóplia ou miríade,
mas tanta fecundidade povoou
a indeterminação.

3.6.19

Compêndio abreviado da boémia

Sabendo dos preparativos para a boémia
encomendou-se à prosápia do hedonismo
e se lhe dissessem que era amanhã o apocalipse
o sono não seria menos confortável. 
Aprendeu a fazer continência ao hoje
que nunca se sabe dos humores do devir
nem dos contratempos sem lugar na agenda. 
Este era o portfólio que o precedia
e ele não tirava pestanas ao sono
para sequer supor
a fama que lhe sucedia
nas lágrimas férteis vertidas 
no equinócio do futuro. 
Do pouco que dizia saber
atestava a volubilidade das camadas do tempo,
a sua própria imaterialidade. 
Se assim era
que utilidade tinha tentar ser tutor
de uma qualquer dimensão do tempo
se o tempo,
translúcido,
foge entre os dedos firmes de todas as mãos?

#1068

Esbracejo nos escombros
e sei que tenho por meu
o mapa desembaraçado de convulsões.

2.6.19

#1067

Nos olhos da baleia em cativeiro
a fundura do agradecimento
de não ter sido extinta.

1.6.19

#1066

Qual é a medida certa
se ficámos sem instrumentos de medição?

30.5.19

Perfunctório

Um obséquio de intermezzo
no espaço de dois dedos oculares
na fala das velhas verrinosas
só pelo prazer de ver agonizar a agonia
atrás das cortinas ainda subidas
sem atores ouvindo o palco.
Nada se desdenha. 
Nada é compreensível além da alvorada
o notário que avaliza as trevas não medonhas
contra as patranhas dos miseráveis
e as sinuosas curvas dos mitómanos. 
Agita-se o mar cheio
no cais salgado pelas palavras avulsas
e os rapazes erráticos dão-se a saber
no promontório da sua belicosa boémia. 
Não deixariam minguem dormir,
os rapazes da belicosa boémia,
não fossem as janelas duplas
e os medicamentos que afiançam o sono. 
Pela manhã
é a vez da vingança não intencional
dos mangas-arregaçadas
os incorrigíveis senhores solenes
que são eles e a jornada laboral 
e a jornada laboral e eles. 
No fundo do lago
esperam os nenúfares decadentes:
só não se sabe
quem vem colher pela mão
a decadência que assim jaz. 
A advertência não é frívola. 
Às ateneias emagrecidas
são devolvidas as estrofes do silêncio
a incomensurável sede das flores nutridas
os prefácios tirados à pressão
o marasmo disfarçado de açoteia
o glóbulo vermelho em falta. 
Ah!
se ao menos soubesse assobiar
era tenor da sinfonia agraciada
e de comenda estaria em lista de espera. 
Salva-me
a modéstia do assobio.

#1065

O velho andrajoso 
responde ao empregado do balcão
que tem tempo para morrer. 
Nunca vi o assunto por este ângulo.

#1064

Que santuário amanheceu
no busto que é o nosso
berço?

29.5.19

Circunstância

Esta é a circunstância
o jogo sem regras tangentes
o misterioso leque das donzelas
o miado arrastado do gato sonolento
as sílabas dedilhadas com a voz embaraçada. 

No pódio dos iconoclastas
passeiam-se espelhos estilhaçados
a verve penteada pela facúndia
dos donos do melhor ensimesmar
vultos perenes da grandiosidade de si mesmos. 

Os bustos ufanos
emprestam-se à pose
quase a serem acabados em estátuas
o selo imorredoiro da sua imortalidade
sem se darem conta
que bustos sem a parte restante dos corpos
não chegam para meio homem. 

Embelezam-se os coldres
em destemperados sonos sem noite
no rodapé de vidas sem palavras
alisando a loucura estulta
dos homens reféns de si mesmos. 

Não se cobram promessas
nem recentes 
nem antigas já esquecidas
em reviravoltas dos verbos
gananciosamente recrutados na geografia dos coagidos. 

E na noite tentacular
quando se congemina o palco dos sonhos
sufragam-se pesadelos acorrentados
as miragens que embaciam o olhar
e desadulteram a gramática da existência.

#1063

A cientista tranquiliza-nos:
o plástico em si não faz mal a ninguém. 
Faltou explicar
se o plástico sem dó é indolor.