25.8.19

Carambola

Espreitar
o que não se olha para trás,
uma zona na franca que desmata o medo.
O espelho lapidado
o vidro denodado no firmamento das causas
o amarelecido sorriso dos druidas
os contrafortes onde se jogam
os contrabandeados azimutes da desalma.
Desertor e tudo,
mas não da sua silhueta,
que as sombras não eram inomináveis 
assombrações
e o proejo que vinha às mãos
aromatizava o relento,
adiava o silêncio.
Mercava-se quase tudo,
menos as mãos suadas
no santuário dos exílios sem causa.

24.8.19

Heráldica

Dito de outro modo:
era a heráldica dos modos
uma profecia sem tempo
a esplêndida dentadura por que o mundo
sorria
a rejeição da imundície
o atavismo das ruas
a despretensiosa despertença das pessoas
a fenda verbal que subjugava o sujeito
a dança escondida dos olhares
no perene vagar da vergonha do olhar vítreo. 

A heráldica.

Uma fusão de sílabas atamancadas
uma figueira sem limites
no astrolábio que roubava do tempo
o seu modo e o seu lugar.

Nunca maus houve brasões
os mais conspurcados remédios da humanidade.

23.8.19

#1163

Crónica de férias (5)

O autor descobre o pai depois de morto;
ou chega a uma interpretação do pai,
o que pode não ser sinónimo
de quem foi seu pai.

[Manuel Vilas, “Em tudo havia beleza [Ordesa]”]

Não tenho idade

Não tenho idade
no teatro que me testemunha.
Não sei das cores acabrunhadas
o sargaço do medo
as altas epístolas que deitam elegância
nas palavras.
Não tenho idade
e, todavia, não significa
que tenha encontrado o segredo da imortalidade.
Desejo os relógios sem portas
o mar escancarado
os frutíferos olhares em contramão
e sei dizendo-o
em estrofes sem vagar
no mais puro desmentido de mim.
Não tenho idade
porque me esqueci do tempo
a sua vacatura sem paradeiro
o esfoliante que desafia as coisas corpóreas
e de onde se resgata um sentido
(um qualquer, 
impossível de desenhar)
de subsistência.
Não tenho idade
no degrau do palco
que se demora,
à minha espera.

22.8.19

#1162

Crónica de férias (4)

No bar perguntam-me de onde sou.
Digo: “do mundo”.
(Não aprecio bandeiras).

#1161

Crónica de férias (3)

A falta de graça que grassa
torna os humoristas salvo conduto.

21.8.19

Dilema

Principesco ou trivial
canibal ou livresco
arabesco ou sacrificial
demencial ou canhestro.

Farsante ou plumitivo
descritivo ou bem-falante
tratante ou lenitivo
destrutivo ou turbante.

Elogioso ou desconfiado
indeterminado ou esperançoso
estiloso ou contrariado
desesperado ou teimoso.

Governo ou anarquia
oligarquia ou hodierno
hesterno ou hagiografia
fotografia ou eterno.

#1160

Crónica de férias (2)

Estes idiomas que não se entendem.

20.8.19

#1159

Crónica de férias (1)

Esqueci-me 
do que tinha esquecido.

19.8.19

Síndico

Um jogo ganha-se
na lotaria do modo
e ganho o estipêndio,
anúncio cautelar,
em memória futura.
No jogo 
há um jogo por dentro
as regras sem eito
amuralhadas na misericórdia inglória;
tratam-se as angústias na distração
o lúdico disfarce dos atores.
E compõem-se as loas
o trivial desembarque dos vitoriosos
que um ganho jogo
não merece silêncio.

#1158

Na fala sem medo
não sobram verbos contumazes.

18.8.19

#1157

Conserto com estuque
as frágeis paredes com fendas
à espera que sejam à prova de sismos.

17.8.19

#1156

Descobriu 
a reconciliação com o passado.
Não percebeu que não era 
a sua absolvição.

16.8.19

#1155

Não quero que me olhem
que me derruo
em vergonha.

Estado de sítio

No arame cardado
extingue-se a fala
na boca ensanguentada.
Às vezes
é invisível a venda na boca 
e a liberdade vendável,
porosa,
inclina-se sobre a terra seca.
O eufemismo adultera os sentidos
e a fala ressacada
distingue-se pelo silêncio involuntário.
E ninguém percebe
o estado de sítio.

15.8.19

#1154

Acossar
(o medo).
A coçar
(a preguiça).

#1153

Trabalho involuntário.
Alvoroço num descampado.

14.8.19

Névoa

Alguma é a névoa
esparsa
levemente agiganta-se
açambarca os corpos.
Custa respirar:
as gotículas
punhais estreitos
nos confins da lucidez
desembainhadas sobre a dor.
Alguma é a névoa
agora cenário completo
como lágrimas perdidas
ungidas pelos refratários da mudez.
Estes arquitetos
vastamente incógnitos
doenças hasteadas em muitos
podiam perder-se nos interstícios
da névoa.
(Que nada se perdia.)

#1152

Quando estou num hotel
podia pensar:
quantas (e quais) celebridades
vão dormir na cama em que estou.

13.8.19

Selo

Arregaço os olhos
que tem uma enxurrada de mundo
a querer que o meu olhar
queira dele saber. 

Deito a pele ao vento sem freios
que o vento suplica
que minha pele se embeba
nas latitudes por ele demandadas. 

Mergulho no mapa aberto
sem medo que nele esteja maré viva
que o mapa se diz sedento
da minha insaciável sede 
por dele saber os poros máximos a haver. 

Aconchego na boca
os sabores da geografia sem fim
por dela ter sabido
que há muito mais por arrotear
e em minha saliva apalavrar. 

Entrego a alma às páginas por abrir
que delas sinto miríade de apetites
e por elas sei
que me entronizo seu sepulcro
no diadema farto que se liberta de meus dedos.

#1151

As outras vozes
fala com lentes
sem o abismo de um espelho.

12.8.19

Desembaraço

Espero na passagem de nível.
O pólen adeja sobre quem espera
numa leveza que parece feita
de flocos de neve.

Ouço um tonitruar.

Não são as carruagens
em seu metálico cavalgar.
Podia ser um trovão;
o céu intensamente azul
aconselha a não considerar a hipótese.
Podia ser alguém
impaciente pela espera, 
vociferando.
Podia ser o rumorejo de uma romaria
não distante.
Podia ser um marujo
em seu pranto de desamores.

Não tenho pressa.
Um diamante em bruto
está de atalaia em casa
e eu sei que sou feito de ouro
por saber que está no pedestal
de que sou curador.

O comboio demora-se.
Não tenho pressa
pode demorar o tempo que for.
Já soube de vésperas passadas
que a impaciência é improfícua insurgência 
o mal tenteado esboço de um nada.

Não cheguei a saber
a que sabia aquele estampido.
Não interessa:
existe um lugar
com as palavras à minha espera.

#1150

À consideração superior:
o trato cortês
que a boçalidade não combina
com tamanhos pergaminhos.

11.8.19

Inquérito à História

Quantas vezes
a História não é mais
do que o rimmeldos acontecimentos?
Os homens mentem
e com as suas mentiras
mente a História que conta.
Ficamos reféns de uma História
que não sabemos ser mitómana?
Será 
a ausência da História
critério melhor?
Será 
a História confiável
se não sabemos 
se ela vem lacrada
pelo selo de quem a traz 
em intencional papel 
de arquiteto do acontecido?
Não se diga
que devemos virar o rosto à História
que uma parte da identidade 
exige da História conhecimento.
A Filosofia sobrepõe-se 
ao enquistado dos historiadores
às imperativas verdades 
à prova de interrogação:
nada está a coberto 
das interrogações heurísticas
nem a História cimentada 
pelos dedos de artesãos 
não se sabe se mal-intencionados.

10.8.19

#1149

A chave 
desfia a farsa
sob a sentinela do vento.

9.8.19

Consternação desenfreada

Alguém disse,
em jeito de alarmada advertência: 
tiraram as pestanas ao algoritmo. 
Subiram as lágrimas 
talvez furtivas 
aos calcanhares dos bispos 
e os clérigos afocinharam os cotovelos
nas praças vazias. 
Uma equação 
bateu com o focinho no emparedado 
quando soube da avaria do algoritmo. 
Nesse dia 
fez-se constar
que os matemáticos estavam distraídos
(talvez
em conciliábulo com o clero) 
e não puderam sondar
a roda dentada onde se dissolve 
o peito sem mágoa. 
Se ao menos 
pudessem os dedos cantar; 
seria a música a figura de estilo 
dos contumazes? 
Enquanto o algoritmo
continua em paradeiro incerto 
as páginas enchem-se de especulações. 
Tomara que os matemáticos 
voltem a marcar terreno, 
assim como fazem os gatos com cio.

#1148

É deste lugar que me chama
a chama no fulgor dos olhos
e o teu nome, 
sempre aceso.

8.8.19

Conta corrente

No bolso
guardo minha sentinela
em vez do temporal em febril tumulto.
Soube de Eros
e passei a saber de mim
no estorno embuçado em estrofes viris
só para resolver pendências 
com a hermenêutica correta.
Não houve alarme a soar:
deixo a soberba para as capas mesquinhas
onde se deificam
pequenos estilísticos de auto-imaginada
grandeza.
A minha sentinela
resguardada no bolso escondido
conta-me histórias.
Não procuro incarnar as histórias
e muito menos
as personagens que a elas pertencem.
As vozes telúricas
compostas nas caves que se pressentem no chão
estão a contar com as histórias contadas.

#1147

O discípulo
nunca deixa
as fraldas.

7.8.19

Destacamento

Não é nesta roleta russa
que se despenha o corpo.
O sonho sentado
é a tela sem fundo
o fumo à procura de tomada
o tingido rosto faminto,
um paradeiro incerto.
Podia ser apenas
uma montanha
russa,
sinónimo de menor ousadia.
Mas
quem precisa de altos voos
se é no chão enraizado
que filia a segurança?
Assim como assim,
roleta russa:
às minhas mãos
nunca vieram as rugas de um revólver.