9.9.19

Os miseráveis (criação)

Trivial
a lamentação expedita
dos fracos, incorrigíveis ascetas
por dentro da arrumação enquistada
o solilóquio arrastado,
pesaroso,
um rosário de fragilidades a comiserar,
e a convocar comiseração 
elevada a uma qualquer potência. 
Os prantos são chamamento
achas incandescentes dentro da carne crua,
peritos na sua própria crucificação. 
Os contos 
são pedras incrustadas
nos rostos desfigurados por rugas de dor
e qualquer palavra é arrancada a ferros
um santuário de angústias em maré alta
antes que ao cais amarre um ombro condoído
para amparar o corpo combalido. 
São desamores
intrigas em que são presas
deslealdades
tresleituras de personalidade
(ou não fosse suficiente 
o caldo pestilento de que patronos)
farsas por dentro de farsas
sentimentos órfãos
a impagável ausência de insónias
a mentira persecutória,
as almas mais perdidas. 
Não esconjuram fantasmas:
os fantasmas alimentam a apoplexia 
– e o que seria dos lamentos sem fantasmas?
Descreem de si mesmos,
cúpula das misérias do mundo 
que desaguam numa só pessoa. 
Não há meio
de colorirem o rosto com um nome válido 
de ungirem as cores do dia 
com um verbo radiante
de destroçarem as fatalidades sem remédio,
e, com remédio,
em meneio de inversão total,
serem seus próprios remédios
e recolherem do céu todo o plúmbeo suor
que se verte em forma de rugas. 
Não sabem
fugir de si mesmos,
montras especiosas de farsas sem título
e dão-se de comer
os pútridos, amedrontados umbrais
que são os corpos em que se hasteiam.

#1180

A fermentação ávida
saliva à boca da noite.  

8.9.19

#1179

Ah! 
Soubesse de ermos lugares
como manobra de reanimação.

#1178

[Domingo]

Uma colherada de ócio
para desmentir a rotina.

6.9.19

Itinerário

Amanheço
num itinerário sem gramática
o motim que não se intimida
com ordens falsamente benignas.
No itinerário
esboço as palavras e os silêncios
reinvento a gramática
depois de a esvaziar.
Tirei o dia para a sublevação
e até o meu sangue protesta
de tanto tumulto,
mesmo sabendo que não é presa;
mesmo sabendo
que é a compensação contra 
os miradouros disfarçados de espionagem.
No dia findo
revejo o itinerário
e selo a marca registada
de uma gramática singular,
fundação que estiliza um devir.

#1177

Compêndio do anarquista:
contraiu o poder
e celebrou, duas vezes. 

(Contraiu, como aquisição
e contraiu, como contração.)

5.9.19

Salvo conduto

Falamos em palavras descarnadas
como se as janelas não tivessem vidros
e a fúria e a bondade de tudo
se medissem numa névoa indistinta
entre os filhos de árvores fecundas
e a tinta vertida em páginas sem fundo. 

Sabemos do paradeiro do que somos
se parecem férteis as dúvidas sobre a linhagem
a controversa assinatura armada
em notários sem rosto
e em doces gestos repetimos os reptos
de onde sorvemos o retilíneo oxigénio. 

Damo-nos ao mundo
em troca da sua generosidade;
não devemos as mortalhas despojadas
e nem em memórias tornamos viável
o resgate que muitos habilitam. 

Do lancinante esbracejar das hesitações
colhemos uma habitação,
porém temporária. 

São as janelas descarnadas
os olhos agigantados no sopé do miradouro
os sísmicos dançares, desajeitados,
as muralhas por fazer e as que passaram 
a inúteis
o fogo que teima em ser imorredoiro
todas as canções indolentes
as fadas que se confundem com sereias
circuncisadas de matéria visível
e os penhores inteiros,
aos que não transigem com o alimento provável,
em dação dos corpos nunca exangues
por serem promitentes estafetas de esculturas
o mirífico lugar que ainda está por descobrir. 

O lugar
onde não há conhecimento da palavra “mau”
nem se corre por cima dos outros
na vergonha contumaz da desconfiança. 

Lá,
o lugar sem ermo
armado na consagração dos nomes inteiros
furiosamente bondosos
inteiros,
inteiros.

#1176

Que faço eu aqui
à espera da tresloucura?

4.9.19

#1175

Concebo 
a maresia sem espinhos
os braços langorosos em espera.

Pontos cardeais

Chego de olhar segado
que medram impostores 
– mas o que sei de fingimento?

(A não ser
os não dolosos fingimentos
em que se finge não ver
quem não se quer falar.)

Habilito com cortesia
quem desenha confiança 
– mas o que sei de fingimento?

(A não ser
os lucros disfarçados de dano
ou os danos transfigurados em lucro,
ou os dois por junto.)

Prometo juros certos
aos demandantes de contendas 
– mas o que sei de bélicas desaventuras?

(A não ser
as desabridas arengas
em epistolares provocações
com irritantes figurantes.)

Projeto uma casa santuário
aos que se recolhem em meu exílio 
– mas o que sei de arquitetura?

(A não ser
o rendilhado das palavras
a dedo escolhidas em estirador
de luminosa colheita.) 

Dou coutada aos sonhos,
que vejo utópicos e idealistas em barda 
– mas o que sei de miragens?

(A não ser
as miragens dos desertos
que nunca demandei
por antinomia de geografia.)

3.9.19

Almanaque

Sou o avesso das medidas
sentinela dos pesares sem nome
aríete das danças sem coreografia
um zénite.
Arrumo a areia sem dono
a mortificada alusão ao progresso
os dentes desalinhados
sem próteses a rimar.
Anoiteço no coro inadvertido
sobre a varanda quimera
devolvo as lágrimas aos seus curadores
e explico aos improcedentes
o mistério que não quis alunar
no dorso da meditação. 
Sou o inventário da inquietação
implacável com o dorsal acomodado
estreante da fala insólita
na justaposição de alcateias e colmeias. 
Não adivinho adivinhas
nem telefono a oráculos
não obedeço a mandantes
e riposto contra a desordem sem vestígio. 
Acompanho os mares
sem seguir marés. 
E anteponho o olhar insaciável
sobre a cortina da comiseração
a pungente serenidade dos que capitulam
por ser intangível o sangue que me ferve
na balaustrada solene em que me faço palco. 
Este é o palco
em que sou mais do que matéria
o combustível imarcescível no golfo das sílabas
e terço as armas contra a solidão dos verbos
que outros desprezam. 
Entre o dia e noite
sem medidas cautelares
sem avisos com antecedência,
só o espelho radiante que dimana do meu peito.

#1174

O deslembrar 
no ermo desmatado
evoca a memória sem paradeiro.

2.9.19

#1173

Não é por ser vindima
que se corta tudo a eito.

Testemunho

Guardo o sal de mim
na tarde sentida
mercado sideral na marca do tempo
libertação na casa sem morada.

Soa o poema altivo
na luminosa coalescência da memória
sem o estorvo da palavra doída
enquanto nas ruas apanho os logros caídos
em cachos sem fruto.

Soo ao genuíno que habita em mim
promessa por prometer
prosa atapetada no lume diurno
a palavra docemente diuturna.
Coabito na cidade sem nome
arrematando os versos de estio
fecundos, solares,
o maravilhoso estado de insubmissão nunca tardia
contra o contratempo basilar.

Não é a noite do tempo
que congemina o abcesso da ideia
nem capitulo na fortaleza das palavras sem inventário:
dissolvo as certezas
na solução preparada com perícia
pelos tutores involuntários da incerteza 
que se constrói no parapeito da grandeza.

Não quero dos cientistas fogosos saber
não quero ter em mão
os gongóricos penhores de cátedras
avulsas ou não
que em meu peito guardo
o não distinto
a profunda curiosidade pelo indeterminado
e às janelas deixo ondear o verbo corrigido
a mealha aveludada que arroteia saber
o renascer embebido em cada dia nascente.
Não me escondo
se não das certezas afiveladas
e dos seus infalíveis tutores.
Vocifero o catastrófico assentar de obra
(que nunca seja tida como definitiva).
E combino com o porvir
descer aos confins da consciência
(se preciso for)
para cuidar das impurezas que se orquestram
entre as palavras milimétricas 
dos puerilmente eruditos.

Respiro esta incerteza heurística
oxigénio cabal onde me multiplico
na tentacular rede que aspira
ao grandioso estatuto dos que tudo interrogam.

1.9.19

#1172

É setembro.
Fim dos serviços mínimos.

#1171

O princípio ativo do apocalipse
esgota-se
no desembaraço da vontade.

31.8.19

#1170

Descobres uma mortalha,
que te cobre.
Vacilas.
Ficas sem saber 
se a transparência se imolou.

30.8.19

#1169

Estas são as avenidas
horóscopo sem fado
miradouro à procura de paisagem.

As mãos escuras do pastor

As mãos escuras do pastor
embaciam o céu,
locupletando-o.
Por um momento
o mapa do céu representa 
as rugas que ciciam desde as suas mãos.
E tudo se suspende
enquanto as mãos escuras do pastor
desenha a sua história
à custa do céu baço.

29.8.19

#1168

Não é o lamento
que dá cor ao dia.

28.8.19

#1167

Não é a janela que fala
mas os olhos que por ela veem.

27.8.19

#1166

Crónica de férias (8)

Um ancião concidadão 
protesta no avião,
que ele não sabe do idioma inglês
e a hospedeira devia ter aprendido português.

(Não, Vasco Pulido Valente,
estamos longe de sermos letrados.)

26.8.19

Flanco

O condimento do dia
efervesce na latitude pária
a combustão do gelo noturno.

Sem recusa
o peito grita sua dança
no risível jogo dos verbos arcanos
em remedeio da insanável fragilidade.
Se ao menos 
a lua comparecesse
e os bardos se intimidassem,
os pássaros voariam à noite
contra as regras
e a monossilábica defenestração dos males.
Mas não havia a candeia necessária
e os almanaques não anunciavam lua;
em pé,
sobrava o sonho insubmisso
e os bandos cercavam as muralhas
como se fossem seus tutores.

Agora sabemos
que nidificamos numa gramática inverosímil
o espectro da nossa originalidade,
autenticidade sem preço.
Sob as ruínas conservadas
florescem lírios selvagens
e uma ninhada de gatos furtivos:
nesse caso,
alguém dizia,
pernoitamos sob a maré sem nome
e ajuizamos o nada em que se deita a noite.

Oxalá 
fôssemos à margem da lei
e o riso iridescente apagasse as trevas
no penhor da fala sem gramática.

Somos
os medos que deixámos de ser.

25.8.19

#1165

Crónica de férias (7)

O desfile dos corpos.
Os belos.
E os outros.

#1164

Crónica de férias (6)

Feudo do macho lusitano
em qualquer geografia:
pose militar,
meio metro entre as pernas.

Carambola

Espreitar
o que não se olha para trás,
uma zona na franca que desmata o medo.
O espelho lapidado
o vidro denodado no firmamento das causas
o amarelecido sorriso dos druidas
os contrafortes onde se jogam
os contrabandeados azimutes da desalma.
Desertor e tudo,
mas não da sua silhueta,
que as sombras não eram inomináveis 
assombrações
e o proejo que vinha às mãos
aromatizava o relento,
adiava o silêncio.
Mercava-se quase tudo,
menos as mãos suadas
no santuário dos exílios sem causa.

24.8.19

Heráldica

Dito de outro modo:
era a heráldica dos modos
uma profecia sem tempo
a esplêndida dentadura por que o mundo
sorria
a rejeição da imundície
o atavismo das ruas
a despretensiosa despertença das pessoas
a fenda verbal que subjugava o sujeito
a dança escondida dos olhares
no perene vagar da vergonha do olhar vítreo. 

A heráldica.

Uma fusão de sílabas atamancadas
uma figueira sem limites
no astrolábio que roubava do tempo
o seu modo e o seu lugar.

Nunca maus houve brasões
os mais conspurcados remédios da humanidade.

23.8.19

#1163

Crónica de férias (5)

O autor descobre o pai depois de morto;
ou chega a uma interpretação do pai,
o que pode não ser sinónimo
de quem foi seu pai.

[Manuel Vilas, “Em tudo havia beleza [Ordesa]”]

Não tenho idade

Não tenho idade
no teatro que me testemunha.
Não sei das cores acabrunhadas
o sargaço do medo
as altas epístolas que deitam elegância
nas palavras.
Não tenho idade
e, todavia, não significa
que tenha encontrado o segredo da imortalidade.
Desejo os relógios sem portas
o mar escancarado
os frutíferos olhares em contramão
e sei dizendo-o
em estrofes sem vagar
no mais puro desmentido de mim.
Não tenho idade
porque me esqueci do tempo
a sua vacatura sem paradeiro
o esfoliante que desafia as coisas corpóreas
e de onde se resgata um sentido
(um qualquer, 
impossível de desenhar)
de subsistência.
Não tenho idade
no degrau do palco
que se demora,
à minha espera.

22.8.19

#1162

Crónica de férias (4)

No bar perguntam-me de onde sou.
Digo: “do mundo”.
(Não aprecio bandeiras).