12.11.19

Estabelecimento

Estou 
tradutor das promessas largadas em banda
em bandeiras hirsutas
um prolegómeno desabitual.
Estou
tutor das ondas vadias
das marés sem tempero
dos fundos que vão ao fundo do mar
os vasos capilares
sensíveis
medula
a vertical insinuação do medo
açambarcado nas arcas hercúleas
onde se sopesam as arestas do mundo.
Estou
pensativo
entre a miríade de cores
os braços arqueados sobre as lágrimas
as condensadas partículas do saber
entre páginas e páginas
que parecem vazias,
devolvidas ao nada;
ou uma maldição
ou a maresia antolhada nas árvores belas
cabelos que passam entre os dedos
no perfumado estilo do tempo escorreito.
Estou
adiante do pesar
pressentimento sem fachada
escala sem partitura
o poema altivo
combinado com a estatura da manhã fresca
e aos lençóis deixo em legado 
sonhos sem paradeiro
e das facas sem inventário
faço castelos sobrepostos à paisagem.
Estou
na estrada sem árvores
na possuída esteira onde se desenha o sangue
entre sucessivas camadas de névoa
e uma parede inacessível.
Estou
disposto nesse desenho das mãos
o compreensível palco das mães sem nome
ou os nomes a quem ficou gente de sobra.
Estou
quase
na estadia de mim mesmo
por dentro e por fora
ao mesmo tempo
síndico de meus lamentos
juiz dos arrependimentos
incensado no fogo alto
que devora as florestas longínquas
em lagos sedentos de fogo.

#1259

Mão não morta
sossega o rosto abraseado
adia sem prazo o cadáver.

11.11.19

Desculpas

Travessia
vela a quarenta graus
um cálice de licor de laranja
as traves-mestras fora do sítio
de férias em Carcavelos
o mar plácido no fundo da palha
e um comboio
lentamente percutindo os carris
enquanto o velho desfolha o Diário
e o punho encardido manifesta opções.

Travessia
não será à Trafaria
que os silos inestéticos roubam a calma
e os olhos não merecem tamanha punção.

Ponho os olhos
no ruído venal da ponte
das pessoas que se cruzam
sem chocarem de frente
e dos destinos aziagos
que não se correspondem.

Oxalá o licor de laranja
fosse de melhor colheita.
Os artesãos não mereciam
tanta insídia
dos frutos falsamente inofensivos.

#1258

Os olhos
sem prazo de validade,
esses, 
imorredoiros.

10.11.19

#1257

Insistentemente
o ocaso arranhava umas palavras,
ininteligíveis.

#1256

De há uns tempos a esta parte
quando estou num urinol público
pergunto-me
se não devo ser um homem de esquerda.

9.11.19

#1255

[A uns abencerragens, no trigésimo aniversário da queda do muro de Berlim]

Impugna a História
e definha, acantonado,
no teu exíguo quarto.

#1254

Consequência.
Com sequência.
Co-sequência.
Consegue & cia.

8.11.19

Outono


Este é o teu rosto, 
outono. 
As folhas 
não caducam. 
Desenham o chão. 
Compõem o seu leito, 
ocre. 
No outono, 
pressente-se 
o reinventar. 

#1253

O beijo do vento
a destempo
o juro pago da vida inteira.

7.11.19

Do verbo da paciência

Houve métrica paciente
o deslumbrante eco dos druidas
penhor de vesúvios sem medo
ou lava gutural que arrepia as mãos. 
O vencimento de causas
não é engodo que distraia
na véspera dos segredos guardados
em privadas fazendas. 
Se não fosse paciente
a métrica seria 
apenas
um caos ancião
coberto de xailes anafados
com o provecto fado a tisnar a audição. 
Não era paciente
a métrica
e na reorganização da gramática
foi deposta a desistência do modo. 
Sobrava a lava
um inesperado campo fértil
(ou campo inesperadamente fértil,
ou ambos).

#1252

Não é dor
é o choque térmico
do palco tangível.

6.11.19

Código secreto

Chave. 
Uma porta que não vem no mapa
a tristeza que se liquefaz
no avesso das lágrimas contidas
o segredo audível
uma sombra vetusta
os ossos contrafeitos na armadura de flores
e um grito incolor 
na boca azeda dos escafandros. 
E persisto:
uma chave
fecunda
a chave insólita
à procura de porta
quase a publicar anúncio na imprensa
à procura 
quase loucamente
de porta. 
Mas sem mapa
a porta não se desenha no vazio
a gramática emudece com a trovoada tardia
tropeça nos cotovelos vadios
e a voz assusta-se
empalidece. 
Se a porta nasceu sem mapa
a chave tem o anonimato como altar,
vem com a decadência 
antes de ter serventia. 
E se a chave não descobre a porta
o código secreto não chega 
a ser código.

#1251

Até à casa devoluta,
fugitivo
ou o exílio disfarçado.

5.11.19

Porto de honra

O mar
em leilão
rosa dos ventos
armadilhada
o convés
vazio
fantasma sem vela
ou bandeira sem escudo.

Marinheiros
em retirada
espelho baço
intransigente
o cais 
cansado
vulto sem ornamento
ou pesadelo sem inventário.

#1250

Amorno a exaltação
antes que a embriaguez tudo turve
e do rasto não sobre memória.

4.11.19

#1249

Tenho a impressão
que as pessoas abrem os braços 
quando estão num promontório
para receberem o atlas inteiro.

Não contes

Não contes
a bússola do obscurecimento
a mortalha da melancolia
a lei vazia dos déspotas
a morte sem conta aberta. 

Não contes
em tua lídima matemática
o suor frio do medo
os móveis de antanho 
os corrimões velozes que fogem do tempo
o sumptuoso ardil 
dos que se ufanam
do vazio que tomam por grandeza. 

Não contes
os artesãos da boca farta
os ascetas sem mantimento
os degraus até ao Olimpo
as paráfrases desenhadas no friso da noite
os emblemáticos desdizeres dos mendazes
a música surdamente fastidiosa
as casas alinhadas na paisagem estreita
as lágrimas suadas em arestas arrumadas
o namoro dos ímpios ascetas
a gramática (diz-se) com linhagem
a etnia dos que perderam o altar dos escolhidos. 

Não contes
em notas avulsas
uma riqueza indigente
o verbo inerte de anciãos silenciados
os cemitérios sem ordem válida
os pesadelos destravados por diabos sem rosto
a comiseração assassina
os vetustos faróis de ideias atávicas
o veludo dos gatos assanhados
o espartilho das noites sem vista para o cais
o totem de um rei sem constituintes
o sereno rosto de uma sereia em aquário
o diadema que escolhe a luz pura. 

Não contes
que sejam as contas uma fachada
o vidro gasto pela espessura da noite
nem contes 
que sejas tu a contar
na diatribe fecunda 
que remexe os fundos do mundo.

3.11.19

Oslo

Sobre o crepúsculo a destempo
tinge-se uma luz baça
sobre a baía. 
O casario moderno,
com linhas de arrojo,
recebe os esparsos feixes de luz
subtraídos ao espelho das nuvens dominantes,
filtrando-os através das vidraças 
espalhadas entre paredes e tetos. 
Uma claridade timorata
desfaz-se em generosa luminosidade
que se deita sobre a cidade,
amaciando o frio pré-invernal. 
E até a miríade de estátuas
(na coleção de estatuária
que parece ser mais numerosa
do que ia habitantes da cidade)
parece ganhar vida 
o bronze refulgindo 
com o módico dispensar da luz rara.

Só os turistas têm frio. 

Os habitantes
desfilam menos indumentária
sem esgares de desconforto 
com o frio pré-invernal. 
As folhas das árvores
caducas, 
enrugadas,
acobreadas,
denotam o outono 
que estende a mão ao inverno:
o chão é o seu leito;
dir-se-ia:
o chão é o caudal
onde se despojam as folhas 
destronadas pelo outono. 
Fica à mostra
o pressentimento do inverno
e as pessoas protegem-se com bebidas quentes
indiferença pelo frio pré-invernal
e resignação pelos dias imperativamente magros. 

E aprende-se:
o inverno não é uma fatalidade
nem o nó górdio que investe contra as pessoas
e subtrai um sorriso confortável. 
Até as estátuas
o sabem:
um dia destes
a neve vai caiar a paisagem,
deitando-se sobre os corpos inanimados
das estátuas,
que, estoicas,
ensinam o deslumbramento do inverno. 

Os braços do mar,
aplacados pela sumptuosidade dia fiordes,
abraçam a cidade
(a menos que um olhar do avesso
pressinta que a cidade é que congraça
os braços do mar).

O mar ficará 
imorredoiro
para se enamorar com a cidade das estátuas
caiada pela neve sem freio. 

#1248

Ruas
desertas
domingo piedoso. 

2.11.19

Sem preço

De ciência certa:
não desbotou
a aurora boreal
e de meu passo
e em meu regaço
se fez o sherpa de ti. 

Alpinistas,
que paredes alcantiladas
já nos foram propostas
e todo o frio do mundo
impossível embaraço 
contra a força sem medo
o viveiro das palavras-argumentos
a esteira onde são archotes
os olhos nossos de atalaia
na insuspeita fala de que fazemos
versos
no oráculo de nossos corpos
a neve que fundem
no sortilégio de sua combustão. 

Sherpas
em recíproco legado
a ternura amuralhada 
contra os estados de sítio
que apenas sitiam 
orfandades 
miseráveis de todas as condições
usurários da bondade
falsários sem dentes mercê da mentira. 

Sherpas
com o colo preenchido
pelo sermos a mais alta bandeira
que sabemos hasteado em nós. 

#1247

Desliguei os adjetivos
e as palavras ganharam 
gramática e leveza. 

1.11.19

#1246

The infamous grouse
hitherto
implausible booze. 

Descarnaval

Uma fatia maior,
ou o bolo quase todo,
autópsia de um ser sem cadáver
em miragens desfeito
para gáudio dos mastins que o mastigam
de boca mal-educadamente aberta. 
Os astros não dizem nada
(contrariando o outro,
o eternamente prometido cadáver político)
e a safra generosa contenta os artesãos. 
Há dias assim:
um sorriso não tímido
um abraço afetuoso
lauto jantar na mesa da boa companhia
a boa companhia
e um punhado de versos antes do deitar,
como fermento dos sonhos a contento.

31.10.19

In a manner of speaking

Podia dizer:
tumulto
– e ficar à espera da maré menor
nos despojos da tua fala.

Podia dizer:
embaraço
– e exultar com os braços desimpedidos
no fojo sem lobo à ilharga.

Podia dizer:
nome próprio 
– e arrumar o leito quente
no parapeito do sexo.

Podia dizer:
resgate
– e abraçar por perto
os corpos desatados da opressão.

Podia dizer:
deleite
– e nos olhos ávidos
fecundar a argúcia do desejo.

Podia dizer:
completude
– e do alto de mim
obliterar os precipícios medonhos.

Podia dizer:
sonho
– e no avesso dos sentidos
destravar a lava em frémito. 

#1245

Concurso de ideias,
sem rédea no tumulto das palavras
a embriaguez afoita. 

30.10.19

Fonte farta

Se ao sarcófago subtraíssemos
os gramas correspondentes à poeira
teríamos uma
punch line

(que soa sempre bem,
neste capítulo da modernidade,
debitar a erudição do idioma-franco).

Seríamos como os clássicos
gente absolutamente desempoeirada
mergulhada na contemplação
penhora 
das interrogações depois das interrogações

     (contra os boletins de previsões
     dos pastores que apascentam 
a modernidade que se pôs 
com a cumplicidade de um amanhecer 
poltrão).

Não dizemos “amanhã”
nem fazemos figas ao depois
que a estrutura interna da linguagem
é rigorosa
de um rigor absolutamente anárquico.

      (usurpando a matriz à gramática
      contra o estertor dos mendazes,
      os argonautas que guardam
      com o peso de sete chaves
      o penhor da linguagem em sua pureza 
 – ah, a pureza!) 

Também não dizemos
“se eu morrer”
por manifesta improbabilidade da hipótese.

#1244

Devolvo 
o verbo descarnado
ao patíbulo onde conspiram
os desdeuses.

29.10.19

Tomada de posse

Sob a contraluz
vejo o desenho da minha silhueta
um vulto disforme que se arrasta na parede.
Se soubesse de uma cortina
escondia-me atrás de outra
para não me ser revelado 
o negativo de silhueta:
parece que ensaia uma coreografia
disforme
sitiada pelas finas fronteiras do vulto
que se aloja na contraluz da minha silhueta.
Sinto algum pudor.
Já há muito
perdi a inocência das ilusões.
Não danço
para não ser credor da indulgência de outrem
e convenci-me que o melhor remédio
é disfarçar-me
com a silhueta desenhada 
sob o estirador da contraluz.

#1243

Sem medo da falésia
aprovo a matéria fecunda
e espero.