18.12.19

Agente à paisana

Era como ir a uma loja de guloseimas
e nós
tomados pela passividade dos desinteressados
indiferentes à mercadoria.

Era como temperar com fogo
a combustão implacável do vulcão
deitando-se sobre as nossas peles
e nós
hipotecados pelo inverno alinhavado
embebidos na fuligem das cinzas
mordendo os corpos em ebulição.

Era como lacrimejar no apogeu da angústia
e nós
consumidos pela melancolia sem razão
fugíssemos do cais impreciso
onde reluziam os néones refulgentes.

Era como beber um vinho encorpado
dando as bocas ao desejo insondável
o desejo como lava subindo pelas paredes
e nós
tementes apenas da convocatória dos prazeres
suseranos das coisas entronizadas.

Era como saber não fingir
E nós
Atores à paisana, 
sem palco
senhores das nossas palavras
fortalezas sem acesso ao fora de nós
cinzelássemos as fronteiras sem limites.

Era como povoar um lugar mudo
e nós
penhores de todos os silêncios
disséssemos as palavras altas
sem recusar os proventos da ternura.

#1309

Sem medo da usura do medo
os olhos cravados no luar do devir.

17.12.19

Um fresco sobrevoando o tempo hodierno

Sei-o bem
é da ordem do mítico
o santuário
onde sereias e dragões
concebem criaturas hediondas
híbridos
em que o pior das partes
é um sincrético califado,
o eixo pútrido de todas as coisas. 
Investem os medos contra os inocentes
e em vagas cimentadas a ira
os lençóis descidos sobre a frágil condição 
os Homens assim despojados
à mercê
dos punhais impiedosos
da descendência de sereias e dragões. 

Vejo este pesadelo em horário diurno
em pleno gozo de faculdades cognitivas
em desfiles hediondos
cúpula do prazer dos plumitivos
enquanto os atores a preceito
se saciam na inofensiva bulimia
dos que são 
crentes
sem saberem como.

#1308

O céu púrpura
de meus olhos centelha
à espera da noite espartana.

16.12.19

À hora certa

De repente
os pássaros calaram-se
e ficou o navio,
galante,
visto desde a proa,
sem se adivinhar o destino 
– sem marinheiros à vista.

As comodidades da vida
são um disfarce
as pessoas sem tirocínio
para as empreitadas encavalitadas 
– um logro que devia ser julgado.

Os pássaros calaram-se
(não sei se já foi dito).
E só se ouvia
o estalido da noite
noite fora
percutindo na tela da memória
como se a memória fosse a mnemónica 
– de um oráculo sem nome.

Diziam, 
as viúvas,
que em tudo há um escárnio lazarento.
Mas isso eram elas,
as pobres viúvas,
que teriam muito a aprender
com os pássaros que emudecem 
– à hora certa.

#1307

Jogo com a sorte 
– e o que é a sorte
se não um pretexto para o azar.

15.12.19

A maré que fazemos com as mãos

Descemos ao chão
juntamos as mãos ao ouro esparso
não queremos adivinhar a colheita à espera
somos, 
antes, 
coreografia avulsa
ordem sublime 
retirada ao penhor do dia. 

Dizes:
beija o céu
traz o céu 
para a embocadura da tua boca
deixa o céu sentir a cartografia da tua boca
a geografia do desejo
singular.
Amanhece no meu oráculo
e diz-me
de preferência em palavras suadas
que quimeras me reservas
no mais impuro santuário
que cingimos 
com os corpos trémulos. 

Digo:
que dizemos as palavras proféticas
os vasos esbanjando fertilidade
e sabemos ser tão fina
a fronteira entre o chão e o céu
e por isso 
não capitulamos
não transigimos 
na levitação das árvores frondosas
o traço grosso 
com que desenhas no meu corpo
o teu nome próprio
e o que de minha safra 
deixo
em moldura perene
o veio forte onde nos agarramos
como corrimão de platina
ou do material mais pétreo que houver
em nossos limítrofes ligares. 

Concebemos um palco ímpar
as tábuas arrancadas às cicatrizes dos lugares
com um lampejo do sol tardio
e agarramos a luz porém modesta,
chega-nos esse módico,
que do demais somos lídimos fautores
a imperturbável ciência da cumplicidade
os corpos necessariamente chegados
o deslocamento do resto
até que sejamos nós
a dobrar de tudo o resto. 

E dizemos:
damos os rostos à chuva copiosa
sentimo-la entranhar-se nos poros abertos
cuidamos 
de alisar os lugares da nossa gramática
cuidamos
de aplacar a ira do mar
com os versos retumbantes que falamos.
Desaprendemos 
o que for de desaprender
só com a ânsia de aprender 
como se um zero fosse o reinício. 
Na discreta comunhão do tempo
em páginas e páginas esgrimidas a quatro mãos
o lisérgico saber que nos acomoda
em montanhas e montanhas que desfilam
desafiantes
no cais de onde retiramos 
o olhar insondável. 

A vida não vai depressa
ela é que tem de esperar por nós
soberanos dela,
artesãos desenfreados das suas fronteiras
cada vez mais lassas,
cada vez mais incindíveis
no mapa desamparado sob nossos corpos
e nós
imperturbáveis
imaginamos o tudo que quisermos por imaginado
autores da nossa autoria
desenhando 
o desenho que encerra a rosa-dos-ventos
e no silêncio da noite
sussurramos os nossos nomes
como se fosse necessário
eles serem
a jura recíproca.

#1306

Obnóxios 
os que em usura se fanfarreiam:
“não há pai para mim”!

(Se para cada alma
um pai é pressuposto).

#1305

Pedra angular.
Mecenato
do ângulo morto.

14.12.19

#1304

A cicatriz
selada
no bojo do oblívio.

13.12.19

Previsão

Desta quarentena
a solidão sem mestre
no poço esventrado em seu fundo
rascunho da maresia esquecida
úbere inteiro 
sem as algemas pueris. 

Deste a quarentena 
aos seus algozes
em retribuição
do âmago de uma generosidade sem estima
entre os modos diplomáticos dos covardes
e a boçalidade hipnotizada 
do corpo diplomático. 

Desde a quarentena
um levantamento avulso
as mãos viradas do avesso
réplica da escotilha retesada
por meãos intérpretes da crueza. 

De fora da quarentena
a máscara estilhaçada
e a espuma que se alvitra
no sopé de um corpo empenhado.

#1303

Resistir.
Reexistir.

#1302

O verbo deslaçado
contra a adulteração do fojo.
Uma aresta por dizer.

12.12.19

Manifesto contra as apoteoses

Apoteose:
apetece ser o ocaso
pois só no ocaso
se abrem as apoteoses,
o braço do rio
onde se depositam
as proezas.
Mas perguntas:
não podem ter lugar
apoteoses
a meio do caminho,
ou até no começo da demanda?
Somos dependentes
de apoteoses
esvaziamos o tempo
fora das apoteoses,
do tempo delido
numa penumbra intemporal.
E a sede de apoteoses
é a sede da angústia,
o seu lugar centrípeto,
por mais apoteoses 
que não são anotadas.
Tanta a sede de apoteoses
que se apagam
na opacidade de que são feitas.
Sobra a palavra
ininteligível,
como o travo da apoteose.

#1301

[“You use to speak the truth
but now you’re cleaver.”
Happy Mondays, “Wrote for Luck”]

Ensaio de realismo.
Ou palimpsesto de fingimentos.

#1300

As teimas tiram-se
no tabuleiro raso
em que iguais se jogam 
as peças. 

11.12.19

#1299

A voz de que sou capaz
mar com sílabas por contar
acústica do meu tonitruar.

Fortaleza

O chapéu
a aba torcida
gasta pelo frio
desdiz os elementos:
em seu interior
conserva a lucidez,
assim se espera,
que se arremessa contra
o atavismo.

O chapéu
apregoa o estilo
mas do estilo não sobeja
contemplação se não frívola
sem cabimento
na cal negra que são as abas
do chapéu.

Mas o chapéu
pode ser esconderijo
ou fortaleza devidamente ameada
onde se resguarda o pensamento.
Não vá o pensamento
ser vítima
de contrafação.

É para isso que serve
o chapéu.
Transmissor de uma baça cortina
opositor da transparência
por a transparência poder ser aval
da imitação sem escrúpulos.

#1298

O sangue sem voz
em uníssono ciciar,
uma gramática recriada.

10.12.19

Velocidade

Desenho as vozes
no altímetro onde entoam as harpas
e de música tão terna 
açambarco
o sumo escorreito no cais dos abetos.
Trago no espírito livre dos dias por haver
os despojos dos preconceitos baços
a literalidade das palavras
no avesso das metáforas incensadas
e de tanto teimar
aconchego nos braços 
parágrafos inteiros
um livro que desmente a sabedoria
as onomatopeias costuradas a tinta-da-china.
Desenho as vozes.
Meãs e audíveis
projetando-se no céu desembaraçado de nuvens
contra os insultuosos contrabandos do tempo
contra a puída corrosão da fraqueza
contra contrariedades emulsionadas no tabuleiro
desenho-as,
luminosas e prestáveis.
Pela cor do vento
sei 
que as compungidas dilacerações das almas
não tardam.
Pela cor do vento
e pelas vozes que se desenham
em estiradores não amuralhados
desconfio que está para chegar 
a colheita invejável
a invetiva contra os pederastas do medo
o auto perfeito 
contra os miasmas da usança.
Oxalá 
tenha em mim as forças que houver
e não deixe nenhuma em saldo esbanjado
no inventário dos poros enxutos
no inventário das palavras destrunfadas.
Das vozes sobrepostas
retenho palavras avulsas
palavras que não compõem o inteligível
palavras rasas no miradouro perdido
e delas hausto a medula 
desmentindo profecias terríficas
vésperas de dias feitos de noite
as miragens que não saem do laboratório
e figuras de estilo sem lugar na gramática
em vez
dos milímetros em precisa medida da voz
e das palavras 
sopesadas em balanças de fina flor de sal
no traço certo 
que subtrai o caiado da folha. 

#1297

A pálida, murcha magnólia. 
Uma promessa de devir.

9.12.19

Contrato

Apostava tudo
na moeda pagã. 
Não tinha 
se não uma leve ideia
das flores havidas em instâncias anteriores
e das lentes ilegíveis
sobrava a presunção do dia esperado. 
As vozes voavam mais rápidas
do que as marés exibidas. 
Era o tabuleiro
de demónios sagrados
e números ao acaso
infundamentados
sem qualquer mnemónica
ou o travesseiro 
onde se agigantavam
os sonhos. 
Demónios sagrados, dizia. 
Não sabia o que queria dizer
aquela combinação de termos
e dizia-o
com a mesma perseverança
com que abjurava os dias pretéritos. 
Julgava-se 
um colóquio de si mesmo
o abastardado impropério 
que era a deserção interior,
involúvel. 
Ouviu falar nos deuses pagãos. 
Podia ser um farol 
onde podia proceder 
ao levantamento
da nova versão do eu. 
Mas os medos intemporais
levavam a melhor
num braço de ferro
em que seu era o braço molestado
e de ferro o braço dos medos. 
O que podia perder
se apostasse na moeda pagã?
Nunca se sentira bem
na floresta da incerteza. 
Não se intimidou. 
Os medos 
podiam hipotecar o tempo
mas era vez
de ser a sua vez 
de torcer o braço
ao código do porvir.

#1296

Lágrimas vencidas,
o lamento gorado.

8.12.19

#1295

Tirocínio. 
Tiro o sino. 
Tiro ao siso.

#1294

A escumadeira ocasional 
quando é preciso
coar as impurezas.

7.12.19

Vacina contra os mastins

Sob a asa de uma estrela
nado nas águas frias
do rio sem rédea. 

Sob os auspícios de uma candeia
falo no entardecer 
às crianças cansadas. 

Sob o remédio da vida farta
colho a boémia que me condiz
com os atores da minha escolha. 

Sob a jura da noite tépida
conduzo pelas estradas sem nome
à espera da toponímia certa. 

Sob o patrocínio de uma ideia
fujo das pedras arregimentadas
em elegante golpe de asa.

#1293

Gera a dor.
Refrigera a dor.
Refrigerador.

6.12.19

#1292

Um grito mudo,
que a coragem
ficou para segundas núpcias.

Hábito

De árvores refúgio
antes dos quandos que interrogam,
ou a clareira
as árvores sem lugar
ou as árvores surdas,
e das bagas recolhidas do chão
o sumo que se bebe,
no inverso da sede.
Das árvores desenhadas
nos contornos das nuvens
sobram páginas mudas:
alturas há
em que o silêncio 
se acastela nas fundações da fala
e fala mais alto
do que páginas mudas.
Deixam-se as palavras
para as árvores alinhadas
no dorso do rio.
Amanhã
uma distância depois
apanham-se as palavras
infladas, 
adubadas pelo rio vagaroso,
antes que o rio se perca no mar.

#1291

As preces e os prantos,
eles são tantos.