17.2.20

#1394

Hoje sei que dia é. 
Não é como amanhã,
o véu da ignorância a adejar
a equação sem resultado. 

16.2.20

#1393

A quarentena instalada,
autoexílio sinónimo:
franquia de segurança.

#1392

Com pensar.
Compensar.
Com pesar.

15.2.20

365

Compõem-se 
os termos que somos 
e da luz baça 
vertemos a manhã.

A pele guarda o húmus. 
Debaixo dela 
arranjamos a força 
cuidamos do dia 
insistimos na frágil condição 
todavia 
a fortaleza em que assentamos.

Do diâmetro das palavras que dizemos 
solicitamos o olhar 
as mãos pares
e deixamos aos corpos 
a sua própria gramática
o sangue sem medo
bandeiras que arrebatam as cores.

O amor traduz-se 
na linhagem dos amantes.

Esta é a nossa embriaguez.
O sortilégio de que temos a chave.
Um poderoso combate 
em que não demos tréguas.

Os contratempos 
são a medida exígua em que nos movemos,
o desafio de que não somos párias.

#1391

Serpenteiam
na curvatura dos socalcos
os dedos açorados de paisagem.

14.2.20

Catorze de fevereiro (mas podia ser noutro dia qualquer)

Ólafur Arnalds, “Undan Hulu”, in https://www.youtube.com/watch?v=PF60wtGB5ro

Penso
na quimera
que me deste
quando do teu amor
fui zelador.

Penso
na gesta
que sou
quando o meu amor
a ti foi destinado.

Penso
nos corpos em combustão
nas cidades que foram nossas
e naquelas que hão de vir a ser
nas ruas em que andámos de mão dada
nas palavras que dissemos em uníssono
nos olhares de que fomos capitães
nos contratempos que foram cimento
no cofre que transborda do amor amealhado.

E penso
nos pianos que serão nossos ouvidos
nas montanhas que serão derruídas
nas manhãs de que seremos aval
nas intempéries de que seremos domadores
na imaterialidade do amor rútilo 
nos arco-íris que depõem a nosso favor
nas ruas escondidas onde deixaremos vestígio
nos corpos deixados ao desejo
nos mares vindouros onde escritos serão
os nossos versos tumulares.

Guardo
o teu eu
imorredoira memória de mim
o sagrado viés
que se agiganta num amor.

Guardo
o teu rosto sereno
a prece sem reparo
a página desarmadilhada num gesto simples
o tribunal sem regras
onde somos juízes e réus
sob a protetora lava do amor.

Guardo
no peito dado a ti
em marés sem marco
o amor que sabemos ser
e num amplexo dos tempos
retenho
as imagens que somos
a moldura das imagens que fomos
e o pressentimento das imagens que seremos.
Em todas as ruas 
que hão levar os nossos nomes.

#1390

[O exegeta da mediocridade]

Vou dar 
o meu pior.

#1389

Uma prega da janela
soprando
o leitoso retrato do inverno.

13.2.20

Aritmética da impossibilidade

É impossível.
É impossível o impossível.
O impossível é impossível.
É impossível dizer
que o impossível é impossível.
É impossível o impossível
e dizê-lo é impossível.
O impossível do impossível
é impossível.
É impossível
que o impossível do impossível
possa ser dito.
A impossibilidade do impossível
é impossível.
É impossível dizer
a impossibilidade do impossível.
A impossibilidade da impossibilidade 
do impossível é uma impossibilidade.
Defender 
a impossibilidade da impossibilidade 
do impossível
é uma impossibilidade.
A impossibilidade
da impossibilidade do possível
é uma impossibilidade.
A impossibilidade é impossível.
É impossível a impossibilidade.
E todas as possibilidades
são impossíveis.
E todas as impossibilidades
passam a ser possíveis.
Termos em que é impossível 
que as possibilidades sejam impossíveis.
Decretada a impossibilidade
da possibilidade das impossibilidades
sobra a possibilidade das possibilidades
e as possibilidades da possibilidade.
Que terminam
numa infinita impossibilidade.

#1388

Um rasgo que se rasga
o prejuízo da procrastinação
centauro sempre possível.

12.2.20

#1387

[Reprise do #1386]

Segredou-me:
ninguém é insularidade.
E eu soube ser
um mero número no cardume.

Meta-soneto

Não tem textura de rima
o poema que se preze
que ele não perde estima
se no rimar não realize.

Amador não é o poema
sem a diligente métrica
e mais se recusa o anátema
de tão límpida poética.

Se o degredo impuserem
à poesia sem espartilho
e na abjuração insistirem

protestem vosso estribilho
em estrofes que se admirem
sem regras que são atilho.

#1386

Como um cardume
as pessoas todas
e eu
na outra margem,
residual.

11.2.20

Conferência com o avesso das mãos

Dizia:
o lingote é o meu estuário
enquanto
arrefecia o gelo que subia à boca.

Eram suas as braçadas
o sulco que rasgava o rio
a voz sem contorno na embocadura da manhã.

Pelas contas que fazia
as flores estavam para nascer
e sabia que o mosaico de cores
se emprestava ao luar eflúvio.

Depois da manhã
vinte respirações depois
tinha nas mãos os despojos 
um remo quebrado emaciado no musgo
as notícias desalinhadas no estirador
a carne afogada no estertor
um leve aroma a caos.

Tinha medo.
Medo da decadência
e encomendava o barco
contra as alvíssaras do tempo.

Metodicamente recusava dizer:
depois de amanhã.
Ficava-se por sucessivos
depois da manhã.

Era o que fazia a diferença.
E a centelha
ainda acesa.

#1385

[Ectoplasma CES]

A cruzada dos cruzados
foi o cruzamento com nativas.

10.2.20

#1384

Breathe the breed
as the bride 
shreds the thread.

O bailado dos meãos

Deu-se o novelo ao socalco das ideias
e da ferrugem de antanho não havia vestígio. 
A contrapartida da indulgência
(avisavam os clérigos disfarçados)
era o penhor onde se esvaziam as almas
de nada servindo
a escultura onde se compaginava a comiseração
nem o palco 
onde tinha tradição o arrependimento. 

Num fulgurante vicejar da voz
um sobressalto compôs-se na frontaria do dia
e os duendes
já não martirizados pelo desdém
puderam cantar 
interminavelmente. 

Os tanques já não tinham lavadeiras
mas o parque ainda tinha o seu batismo. 
Acontece 
com a usura do idioma transfigurado
cunhar epítetos sem correspondência
e a maldita tradição
(o argumentário da inércia,
ou o poço onde se disfarça o medo da diferença)
persevera,
indiferente à dissonância.

Este podia ser 
um breviário sobre a História dos mundos:
a servidão escolástica 
que subtrai a vontade dos Homens
o máximo penhor todavia não reconhecido
a mais sublime das anestesias
o sufrágio não validado 
que reduz o Homem
à caricatura de si mesmo.

#1383

Na fala bastarda 
a polpa forjada
em anéis de trovoada.

9.2.20

#1382

Atiro os dados
e salto o azar vencido.

Charrua destravada

Afasto o medo nesta rebelião
e em vez de falar da abundância
(da mordaz, cínica abundância)
atiro o mosto arrancado do chão.
Sinto a chuva a dançar nos poros.
Sinto as palavras a emudecerem
e contra as hipóteses apalavradas
resgato-as para serem poemas
em forma de grito.
Pode ser o mote
para as vagas que esperam à porta
e eu
juiz supremo
sou domador das coisas indomáveis
desenhador dos sentidos sem nome
poeta 
até das palavras mudas.

8.2.20

Árvore matricial

Sou o veredicto de mim mesmo
frase solta
medalha combalida
espada amestrada
o sal colhido dos mares
trovador sem causa
miradouro escolhido
vulcão promitente
caudal em transfiguração
meação avinagrada
transmontano genético
conceito inacabado
um olhar incisivo
experiência inconclusiva.

#1381

O pedestal com ferrugem,
puído,
mas pedestal.

7.2.20

#1380

A cura
Loucura.
Que dura.
Ternura.

Levedura

Um fortuito acertar
a roda viva do acaso
e as lentes embaciadas 
que exigem aura
um visível beijo nos azulejos arcaicos
e um verso puído,
singelo. 
A maré não se encontra na mão. 
Os líquenes extinguiram-se
deixando o lago só com água. 

Se ao menos soubesse da boca rasa
dos lábios que mordem o isco
e serpenteiam nos corredores do desejo. 

Se
ao menos
habitasse os sonhos meus
e não fosse
forasteiro deles;
se meus fossem os azimutes da vontade
o manual de intenções
o campo arroteado onde fermentam
as horas que são minhas:
seria anfitrião de mim mesmo
vedando a casa ao feiticeiro que substitui 
a ideia que tenho de mim. 

Teria de me ver do exterior de mim. 
Teria
de interrogar todas as frases
as palavras, 
uma a uma,
para excluir as que são madraças
e as infetadas pela mentira contumaz. 
Às vezes
não sei sentir o palco que vem a meus pés
não sei
dos inverosímeis chamamentos
das luras que se acham entre os arbustos
o que significam
no mosaico indigente onde sobram mendigos. 

Não ouso 
estatura maior do que a que tenho;
não sou capaz de saber 
que estatura é essa
não confio nos espelhos
não confio 
na lucidez que transporto. 

Combino com o amanhã
o exílio das consumições. 
Assim como assim
pior podia ser o estatuto da inquietação. 
Pior podia ser 
o véu a cair sobre o olhar
na dobra do calendário apressado
como se nadasse no Mar Morto,
como se mortas fossem decretadas
as angústias militantes.

#1379

A caravela perdeu âncora
e não tem cais por paradeiro.

6.2.20

Lento, baixo e fraco (ou a antinomia de citius, altius, fortius)

Desarmado
o infinito
restou pequeno.
Uma insignificância
do tamanho do mundo. 
Houve carestia de brio
nos pederastas de superlativos
à míngua de léguas
o estalão das proezas
distintivas. 
Houve ainda
quem aplacasse as dores
e sussurrasse
em surdina, apenas,
que as armas que interessa terçar
não conhecem
superlativos e infinitas coisas. 
Foi em vão. 
Havia sempre uma competição
um troféu por levantar
a vaidade de casta
as medições concorrentes
e toda a estultícia como adorno. 
A estes desaconselhados
jamais 
será dado entender
que raras são às vezes
em que chegar mais longe
ou mais depressa
ou ser maior num palco qualquer
ou ufanar outra qualquer façanha
é prova de vida. 

#1378

Como estar no lugar do outro
se esse é um lugar
pessoal e intransmissível?

5.2.20

Batismo

À boca do cão
molhada
o dorso sem medo
o estuário destronado.

Treze versos sem rima
o mar inteiro
a escotilha sem parapeito
a erupção em vez do sono.

Os dedos amordaçados
a carestia dos marinheiros
em novelos sem contagem
despenhando os cabelos desarrumados.

À volta do mundo
os capitães enrugados
capitalizam a sabedoria
e o navio segue seguro.

Amanhã não será trono
nem norte haverá de falar
tingido pelo nevoeiro opaco 
a maresia como única bússola.

Amanhã serei o húmus de mim
sem esperar miragens
sem esperar relâmpagos rasgados
apenas um módico de mim à mão levado.

A previsão escondida
o baço oráculo
irrisório
e a bênção gargalhada no vazio.

Tomador das angústias sem paradeiro
passo-as pelo coador meticuloso
e sei que sobra
o vazio que é integridade.

Não alcançam os dedos os aviões foragidos
na vetusta lembrança do futuro
contra as opressões do tempo ausente
contra os apoderados da viagem sem rumo.

Escondo-me dos dias tementes
como o cão foge dos mastins em forma de homem
e sei de fonte segura
o esconderijo não tem mapa.

Deixo à água a boca apalavrada
deixo-a embebida pelo meu corpo
sem contar que haja proveito 
no contrabando vencível dos fracos.

Aos escombros devolvo as vítimas
e as mãos suadas são seu escaninho
as mãos oxalá lavadas das ruínas
anelando as preces inacabadas.

Sou legado em forma imaterial
as cinzas minhas sem inventário
nem lugar determinado
elas que tomam o lugar do acaso. 

#1377

Dendroclasta,
porque ao contrário das árvores
não morre de pé. 

4.2.20

Lucidez

Sinto os despojos a atravessar a lua
no olhar devolvido ao húmus gracioso
entre as paredes húmidas
e o jardim
onde se juntam as lágrimas sem paradeiro.
De vez em quando
os matriciais amparos das almas
decretam-se órfãos
cansadamente órfãos
como se mais nada lhes importasse
e parece que fica tudo deserto
um silêncio imorredoiro
até as palavras se extinguirem por desuso.
Diga-se
é contrafação este exercício
uma qualquer conspiração adestrada
por vultos profícuos no esbatimento das cores
por agentes instruídos para produzirem ruínas.
Enquanto houver lucidez
e as conspirações forem denunciadas como tal
não vem grande dano à existência.
Enquanto houver lucidez.