19.2.20

#1397

[Variação do #1396]

Contra as expectativas
ainda não chegámos
à modernidade.

#1396

Os bárbaros 
não foram extintos
pela modernidade.

18.2.20

Sem barreiras

O que temos
na véspera da noite
sem o medo tumular que alimenta vultos
e o musgo que se pega à boca?

Avançamos 
na medida dos passos certos
arrumando as curvas apertadas
ultrapassando as dobras do mapa
justapondo os fragmentos da paisagem
no dorso da memória,
em capitalização sucessiva. 
Não se diga não à escusa temporária
à hibernação que transfigura o fingimento:
as éclogas determinantes
adulteram a gramática
adulteram os sentidos
e ao palco sobe um certo aroma a caos
em oitavas ditas na lentidão das sílabas
para nenhuma palavra ficar de fora. 

Os muros não são apenas impressões. 
Rimam com os sobressaltos
quando 
os sobressaltos se agigantam
e superam até as mais elevadas ondas
quando a maré se acidula, 
tempestuosa. 

Não cobrimos o embaraço com vergonha. 
O seminal porfiar
arroteia a urze inóspita
e é entre ela,
nas coutadas escondidas,
que dizemos o tanto que há a dizer
em nosso abono. 

Admitimos o dia
às mãos frias
e dele fazemos
os juros recolhidos 
na haste da esperança. 

#1395

Não sobra espólio
ao espoliado.
Não é amputação 
que o transtorne.

17.2.20

Não à memória

“Era no tempo...”

(Fim de emissão.
O tempo havido
não merece tempo de antena.
Alguém diz
“era no tempo”
e apetece 
saltar por cima do tempo havido
resgatar da saudade
o vindouro sem inventário.
Era 
é o verbo de uma era 
sem lugar na malha dos sentidos.
“Era no tempo...”
é o estigma dos arrependidos
o vendável estado dos medrosos.
O emolumento
dos astronautas sem céu.
Fim de emissão:
à espera da emissão que conta
a que não devolve às mãos
o tempo que é uma miragem.)

#1394

Hoje sei que dia é. 
Não é como amanhã,
o véu da ignorância a adejar
a equação sem resultado. 

16.2.20

#1393

A quarentena instalada,
autoexílio sinónimo:
franquia de segurança.

#1392

Com pensar.
Compensar.
Com pesar.

15.2.20

365

Compõem-se 
os termos que somos 
e da luz baça 
vertemos a manhã.

A pele guarda o húmus. 
Debaixo dela 
arranjamos a força 
cuidamos do dia 
insistimos na frágil condição 
todavia 
a fortaleza em que assentamos.

Do diâmetro das palavras que dizemos 
solicitamos o olhar 
as mãos pares
e deixamos aos corpos 
a sua própria gramática
o sangue sem medo
bandeiras que arrebatam as cores.

O amor traduz-se 
na linhagem dos amantes.

Esta é a nossa embriaguez.
O sortilégio de que temos a chave.
Um poderoso combate 
em que não demos tréguas.

Os contratempos 
são a medida exígua em que nos movemos,
o desafio de que não somos párias.

#1391

Serpenteiam
na curvatura dos socalcos
os dedos açorados de paisagem.

14.2.20

Catorze de fevereiro (mas podia ser noutro dia qualquer)

Ólafur Arnalds, “Undan Hulu”, in https://www.youtube.com/watch?v=PF60wtGB5ro

Penso
na quimera
que me deste
quando do teu amor
fui zelador.

Penso
na gesta
que sou
quando o meu amor
a ti foi destinado.

Penso
nos corpos em combustão
nas cidades que foram nossas
e naquelas que hão de vir a ser
nas ruas em que andámos de mão dada
nas palavras que dissemos em uníssono
nos olhares de que fomos capitães
nos contratempos que foram cimento
no cofre que transborda do amor amealhado.

E penso
nos pianos que serão nossos ouvidos
nas montanhas que serão derruídas
nas manhãs de que seremos aval
nas intempéries de que seremos domadores
na imaterialidade do amor rútilo 
nos arco-íris que depõem a nosso favor
nas ruas escondidas onde deixaremos vestígio
nos corpos deixados ao desejo
nos mares vindouros onde escritos serão
os nossos versos tumulares.

Guardo
o teu eu
imorredoira memória de mim
o sagrado viés
que se agiganta num amor.

Guardo
o teu rosto sereno
a prece sem reparo
a página desarmadilhada num gesto simples
o tribunal sem regras
onde somos juízes e réus
sob a protetora lava do amor.

Guardo
no peito dado a ti
em marés sem marco
o amor que sabemos ser
e num amplexo dos tempos
retenho
as imagens que somos
a moldura das imagens que fomos
e o pressentimento das imagens que seremos.
Em todas as ruas 
que hão levar os nossos nomes.

#1390

[O exegeta da mediocridade]

Vou dar 
o meu pior.

#1389

Uma prega da janela
soprando
o leitoso retrato do inverno.

13.2.20

Aritmética da impossibilidade

É impossível.
É impossível o impossível.
O impossível é impossível.
É impossível dizer
que o impossível é impossível.
É impossível o impossível
e dizê-lo é impossível.
O impossível do impossível
é impossível.
É impossível
que o impossível do impossível
possa ser dito.
A impossibilidade do impossível
é impossível.
É impossível dizer
a impossibilidade do impossível.
A impossibilidade da impossibilidade 
do impossível é uma impossibilidade.
Defender 
a impossibilidade da impossibilidade 
do impossível
é uma impossibilidade.
A impossibilidade
da impossibilidade do possível
é uma impossibilidade.
A impossibilidade é impossível.
É impossível a impossibilidade.
E todas as possibilidades
são impossíveis.
E todas as impossibilidades
passam a ser possíveis.
Termos em que é impossível 
que as possibilidades sejam impossíveis.
Decretada a impossibilidade
da possibilidade das impossibilidades
sobra a possibilidade das possibilidades
e as possibilidades da possibilidade.
Que terminam
numa infinita impossibilidade.

#1388

Um rasgo que se rasga
o prejuízo da procrastinação
centauro sempre possível.

12.2.20

#1387

[Reprise do #1386]

Segredou-me:
ninguém é insularidade.
E eu soube ser
um mero número no cardume.

Meta-soneto

Não tem textura de rima
o poema que se preze
que ele não perde estima
se no rimar não realize.

Amador não é o poema
sem a diligente métrica
e mais se recusa o anátema
de tão límpida poética.

Se o degredo impuserem
à poesia sem espartilho
e na abjuração insistirem

protestem vosso estribilho
em estrofes que se admirem
sem regras que são atilho.

#1386

Como um cardume
as pessoas todas
e eu
na outra margem,
residual.

11.2.20

Conferência com o avesso das mãos

Dizia:
o lingote é o meu estuário
enquanto
arrefecia o gelo que subia à boca.

Eram suas as braçadas
o sulco que rasgava o rio
a voz sem contorno na embocadura da manhã.

Pelas contas que fazia
as flores estavam para nascer
e sabia que o mosaico de cores
se emprestava ao luar eflúvio.

Depois da manhã
vinte respirações depois
tinha nas mãos os despojos 
um remo quebrado emaciado no musgo
as notícias desalinhadas no estirador
a carne afogada no estertor
um leve aroma a caos.

Tinha medo.
Medo da decadência
e encomendava o barco
contra as alvíssaras do tempo.

Metodicamente recusava dizer:
depois de amanhã.
Ficava-se por sucessivos
depois da manhã.

Era o que fazia a diferença.
E a centelha
ainda acesa.

#1385

[Ectoplasma CES]

A cruzada dos cruzados
foi o cruzamento com nativas.

10.2.20

#1384

Breathe the breed
as the bride 
shreds the thread.

O bailado dos meãos

Deu-se o novelo ao socalco das ideias
e da ferrugem de antanho não havia vestígio. 
A contrapartida da indulgência
(avisavam os clérigos disfarçados)
era o penhor onde se esvaziam as almas
de nada servindo
a escultura onde se compaginava a comiseração
nem o palco 
onde tinha tradição o arrependimento. 

Num fulgurante vicejar da voz
um sobressalto compôs-se na frontaria do dia
e os duendes
já não martirizados pelo desdém
puderam cantar 
interminavelmente. 

Os tanques já não tinham lavadeiras
mas o parque ainda tinha o seu batismo. 
Acontece 
com a usura do idioma transfigurado
cunhar epítetos sem correspondência
e a maldita tradição
(o argumentário da inércia,
ou o poço onde se disfarça o medo da diferença)
persevera,
indiferente à dissonância.

Este podia ser 
um breviário sobre a História dos mundos:
a servidão escolástica 
que subtrai a vontade dos Homens
o máximo penhor todavia não reconhecido
a mais sublime das anestesias
o sufrágio não validado 
que reduz o Homem
à caricatura de si mesmo.

#1383

Na fala bastarda 
a polpa forjada
em anéis de trovoada.

9.2.20

#1382

Atiro os dados
e salto o azar vencido.

Charrua destravada

Afasto o medo nesta rebelião
e em vez de falar da abundância
(da mordaz, cínica abundância)
atiro o mosto arrancado do chão.
Sinto a chuva a dançar nos poros.
Sinto as palavras a emudecerem
e contra as hipóteses apalavradas
resgato-as para serem poemas
em forma de grito.
Pode ser o mote
para as vagas que esperam à porta
e eu
juiz supremo
sou domador das coisas indomáveis
desenhador dos sentidos sem nome
poeta 
até das palavras mudas.

8.2.20

Árvore matricial

Sou o veredicto de mim mesmo
frase solta
medalha combalida
espada amestrada
o sal colhido dos mares
trovador sem causa
miradouro escolhido
vulcão promitente
caudal em transfiguração
meação avinagrada
transmontano genético
conceito inacabado
um olhar incisivo
experiência inconclusiva.

#1381

O pedestal com ferrugem,
puído,
mas pedestal.

7.2.20

#1380

A cura
Loucura.
Que dura.
Ternura.

Levedura

Um fortuito acertar
a roda viva do acaso
e as lentes embaciadas 
que exigem aura
um visível beijo nos azulejos arcaicos
e um verso puído,
singelo. 
A maré não se encontra na mão. 
Os líquenes extinguiram-se
deixando o lago só com água. 

Se ao menos soubesse da boca rasa
dos lábios que mordem o isco
e serpenteiam nos corredores do desejo. 

Se
ao menos
habitasse os sonhos meus
e não fosse
forasteiro deles;
se meus fossem os azimutes da vontade
o manual de intenções
o campo arroteado onde fermentam
as horas que são minhas:
seria anfitrião de mim mesmo
vedando a casa ao feiticeiro que substitui 
a ideia que tenho de mim. 

Teria de me ver do exterior de mim. 
Teria
de interrogar todas as frases
as palavras, 
uma a uma,
para excluir as que são madraças
e as infetadas pela mentira contumaz. 
Às vezes
não sei sentir o palco que vem a meus pés
não sei
dos inverosímeis chamamentos
das luras que se acham entre os arbustos
o que significam
no mosaico indigente onde sobram mendigos. 

Não ouso 
estatura maior do que a que tenho;
não sou capaz de saber 
que estatura é essa
não confio nos espelhos
não confio 
na lucidez que transporto. 

Combino com o amanhã
o exílio das consumições. 
Assim como assim
pior podia ser o estatuto da inquietação. 
Pior podia ser 
o véu a cair sobre o olhar
na dobra do calendário apressado
como se nadasse no Mar Morto,
como se mortas fossem decretadas
as angústias militantes.

#1379

A caravela perdeu âncora
e não tem cais por paradeiro.