25.2.20

Reparação

Colo ao peito este magma.
Em terra sem vulcões
sou eu que amanheço vulcão
e do corpo tumultuoso
sei da lava que não espera
a crisálida que espreita sem cessar
no apronto do dia sem fronteira.
Oxalá fossem assim as palavras:
uma radiosa constelação embebida
na aventura do dia
o desembaraço das ideias 
que sulcam o pensamento.
E dos braços enfeitados de ternura
um beijo se abeirasse
em forma de dádiva sem mesura.

#1404

Desta latitude, a concessão
que dou de concessão ao futuro.
E esta é a minha conceção.

24.2.20

Língua de cão

Se as lamentações
fossem feridas
lambidas pela língua de um cão
não chegariam a cicatrizes

(pois
que da língua do cão
se diz ser milagrenta).

Se as cicatrizes,
em sua agónica e irremediável presença,
fossem mapas lúdicos da angústia
seriam necessárias
muitas brigadas de geógrafos
para deitar cal 
e disfarçar as cicatrizes

(pois
dos fingimentos se diz serem 
o teatro natural da existência).

Se a pele e a carne 
fossem resistentes à dor
não haveria lugar no vocabulário
para 
lamentação e cicatriz
e os mapas seriam todos
onomatopeias das línguas caninas

     (pois
de sermos à prova da pureza
sobra a militante fragilidade).

#1403

Desfaz-se a manhã na boca
e eu sonho
pelo resto do dia.

23.2.20

#1402

Ditam as regras
para o imenso mar
onde dissolvidas restam.

22.2.20

Transmissão

Escolho a brevidade
um lampejo de ousadia
a métrica fundida no gasto pródigo
úbere onde se dessedentam os astutos.
A água escorre pelas escadas
serve o caudal armado na planície
as casas todas à mercê
aprovando a fragilidade dos habitantes.
Mas
ninguém se distingue
no leito de onde não há alvorada.
Quem falou em luta de classes?

#1401

Dizer 
uma judiaria é uma maldade
é antissemitismo?

21.2.20

Fumigação

Marca de água
metáfora incindível
o administrativo esvaziar dos pesares
proverbial
sortilégio. 

Não chamem ministros
loja sem remorso
a animosidade fervilhando na gramática
lamentáveis
meãos. 

Ode aos anónimos 
tutores de flores e pão
em pródiga distribuição sem regra
espontânea
heurística. 

Selo de coleção
raridade sem valor admitido
à mercê de corsários recalcados
impostores
parasitas.

#1400

Começar do fim. 
Enredo sem tabuleiro.
Desarmadilhados 
os prévios conceitos.

20.2.20

#1399

[Variante do #1398]

Aconselhou
a deixar cair o b.
e, por inerência, o primeiro f.

[Desconstrução de um acrónimo 
– e de uma ideia]

Vulnerável

Não havia mentores. 

Não havia razão.

Não havia cortinas.

Só a nudez sem vergonha.

O jogo era um labirinto
sem regras
sem favoritos,
possivelmente 
sem vencedores. 

O horário conspirava 
contra as maçãs do rosto
emaciadas
frias
despojadas de todo o verbo. 

Ao contrário do estabelecido
subi ao castelo
sem medo dos poderosos relâmpagos
sem juntar à angústia
uma vírgula
só com os olhos desfeitos na maresia. 

Não resumo os achados
em meia dúzia de linhas. 

Não ressoei os ecos de antanho
resgatando da fogueira
as mãos abertas às flores. 

No fim do viaduto
os planos coexistiam
e as incertezas 
continuavam a ser a fronteira
a arma 
contra todos os medos.

#1398

Não sendo 
conhecedor do idioma adolescente,
soube o significado de bff. 
Aconselhou
a deixar cair o último f.

19.2.20

O selim sem estrada

Sob sequestro
aprisionado no sótão onde vultos habitam
a beligerante convulsão desamordaçada
do póstumo insurgente que não teve 
apeadeiro. 
Sob os vestígios de um dominó farsante 
componho as costuras do desdizer
que mais vale desdizer
do que com dizeres embainhar inverdades,
possivelmente fecundas 
– um porém não desprezável 
para os insinceros. 
A retina podia estar fora do lugar
congeminando o fingimento em pé de palco,
mas a retina está na residência anatómica,
como mandam os manuais. 
Podem vir líricos trovadores
a sua prolixa verve com instrução de valores
podem empunhar as bandeiras da verdade
que nunca saberemos o que é a verdade,
nunca saberemos
se a podemos levar pelo diâmetro do absoluto. 
O mais provável
é ser uma impossível demanda. 
Quem mandou ao homem ingénuo
cobiçar a deificação?

#1397

[Variação do #1396]

Contra as expectativas
ainda não chegámos
à modernidade.

#1396

Os bárbaros 
não foram extintos
pela modernidade.

18.2.20

Sem barreiras

O que temos
na véspera da noite
sem o medo tumular que alimenta vultos
e o musgo que se pega à boca?

Avançamos 
na medida dos passos certos
arrumando as curvas apertadas
ultrapassando as dobras do mapa
justapondo os fragmentos da paisagem
no dorso da memória,
em capitalização sucessiva. 
Não se diga não à escusa temporária
à hibernação que transfigura o fingimento:
as éclogas determinantes
adulteram a gramática
adulteram os sentidos
e ao palco sobe um certo aroma a caos
em oitavas ditas na lentidão das sílabas
para nenhuma palavra ficar de fora. 

Os muros não são apenas impressões. 
Rimam com os sobressaltos
quando 
os sobressaltos se agigantam
e superam até as mais elevadas ondas
quando a maré se acidula, 
tempestuosa. 

Não cobrimos o embaraço com vergonha. 
O seminal porfiar
arroteia a urze inóspita
e é entre ela,
nas coutadas escondidas,
que dizemos o tanto que há a dizer
em nosso abono. 

Admitimos o dia
às mãos frias
e dele fazemos
os juros recolhidos 
na haste da esperança. 

#1395

Não sobra espólio
ao espoliado.
Não é amputação 
que o transtorne.

17.2.20

Não à memória

“Era no tempo...”

(Fim de emissão.
O tempo havido
não merece tempo de antena.
Alguém diz
“era no tempo”
e apetece 
saltar por cima do tempo havido
resgatar da saudade
o vindouro sem inventário.
Era 
é o verbo de uma era 
sem lugar na malha dos sentidos.
“Era no tempo...”
é o estigma dos arrependidos
o vendável estado dos medrosos.
O emolumento
dos astronautas sem céu.
Fim de emissão:
à espera da emissão que conta
a que não devolve às mãos
o tempo que é uma miragem.)

#1394

Hoje sei que dia é. 
Não é como amanhã,
o véu da ignorância a adejar
a equação sem resultado. 

16.2.20

#1393

A quarentena instalada,
autoexílio sinónimo:
franquia de segurança.

#1392

Com pensar.
Compensar.
Com pesar.

15.2.20

365

Compõem-se 
os termos que somos 
e da luz baça 
vertemos a manhã.

A pele guarda o húmus. 
Debaixo dela 
arranjamos a força 
cuidamos do dia 
insistimos na frágil condição 
todavia 
a fortaleza em que assentamos.

Do diâmetro das palavras que dizemos 
solicitamos o olhar 
as mãos pares
e deixamos aos corpos 
a sua própria gramática
o sangue sem medo
bandeiras que arrebatam as cores.

O amor traduz-se 
na linhagem dos amantes.

Esta é a nossa embriaguez.
O sortilégio de que temos a chave.
Um poderoso combate 
em que não demos tréguas.

Os contratempos 
são a medida exígua em que nos movemos,
o desafio de que não somos párias.

#1391

Serpenteiam
na curvatura dos socalcos
os dedos açorados de paisagem.

14.2.20

Catorze de fevereiro (mas podia ser noutro dia qualquer)

Ólafur Arnalds, “Undan Hulu”, in https://www.youtube.com/watch?v=PF60wtGB5ro

Penso
na quimera
que me deste
quando do teu amor
fui zelador.

Penso
na gesta
que sou
quando o meu amor
a ti foi destinado.

Penso
nos corpos em combustão
nas cidades que foram nossas
e naquelas que hão de vir a ser
nas ruas em que andámos de mão dada
nas palavras que dissemos em uníssono
nos olhares de que fomos capitães
nos contratempos que foram cimento
no cofre que transborda do amor amealhado.

E penso
nos pianos que serão nossos ouvidos
nas montanhas que serão derruídas
nas manhãs de que seremos aval
nas intempéries de que seremos domadores
na imaterialidade do amor rútilo 
nos arco-íris que depõem a nosso favor
nas ruas escondidas onde deixaremos vestígio
nos corpos deixados ao desejo
nos mares vindouros onde escritos serão
os nossos versos tumulares.

Guardo
o teu eu
imorredoira memória de mim
o sagrado viés
que se agiganta num amor.

Guardo
o teu rosto sereno
a prece sem reparo
a página desarmadilhada num gesto simples
o tribunal sem regras
onde somos juízes e réus
sob a protetora lava do amor.

Guardo
no peito dado a ti
em marés sem marco
o amor que sabemos ser
e num amplexo dos tempos
retenho
as imagens que somos
a moldura das imagens que fomos
e o pressentimento das imagens que seremos.
Em todas as ruas 
que hão levar os nossos nomes.

#1390

[O exegeta da mediocridade]

Vou dar 
o meu pior.

#1389

Uma prega da janela
soprando
o leitoso retrato do inverno.

13.2.20

Aritmética da impossibilidade

É impossível.
É impossível o impossível.
O impossível é impossível.
É impossível dizer
que o impossível é impossível.
É impossível o impossível
e dizê-lo é impossível.
O impossível do impossível
é impossível.
É impossível
que o impossível do impossível
possa ser dito.
A impossibilidade do impossível
é impossível.
É impossível dizer
a impossibilidade do impossível.
A impossibilidade da impossibilidade 
do impossível é uma impossibilidade.
Defender 
a impossibilidade da impossibilidade 
do impossível
é uma impossibilidade.
A impossibilidade
da impossibilidade do possível
é uma impossibilidade.
A impossibilidade é impossível.
É impossível a impossibilidade.
E todas as possibilidades
são impossíveis.
E todas as impossibilidades
passam a ser possíveis.
Termos em que é impossível 
que as possibilidades sejam impossíveis.
Decretada a impossibilidade
da possibilidade das impossibilidades
sobra a possibilidade das possibilidades
e as possibilidades da possibilidade.
Que terminam
numa infinita impossibilidade.

#1388

Um rasgo que se rasga
o prejuízo da procrastinação
centauro sempre possível.

12.2.20

#1387

[Reprise do #1386]

Segredou-me:
ninguém é insularidade.
E eu soube ser
um mero número no cardume.

Meta-soneto

Não tem textura de rima
o poema que se preze
que ele não perde estima
se no rimar não realize.

Amador não é o poema
sem a diligente métrica
e mais se recusa o anátema
de tão límpida poética.

Se o degredo impuserem
à poesia sem espartilho
e na abjuração insistirem

protestem vosso estribilho
em estrofes que se admirem
sem regras que são atilho.