28.3.20

#1450

[Crónicas do vírus, XVII]

Nunca 
uma tão grande marcha-atrás 
nas liberdades.

27.3.20

Cortina de fumo

Bandeiras sem rosto
sem hino
os rostos eles mesmos
indiferentes
sulcam os mares sem paradeiro
e nas catenárias do século
assinam opúsculos sem raiva
e improfícuas sementeiras
na crina do dia.

Às vezes
as sombras falam:
conjugam verbos imprevistos
antes que a noite as deponha
com a espada crua.

Aos argonautas empossados
não interessam
as mesquinhas constelações dos medíocres
em fila de espera no périplo da estultícia.

Então:
costuram-se as orações neófitas
sob protesto dos apalavrados da inércia
e em nuvens sucessivas,
entre a vidraça baça
e a promessa de redenção,
ajuramenta-se o palco novo
as gentes novas
e o basáltico redesenho das formas.

As cores não foram extintas
as bandeiras é que se untaram
com a prestigiante moldura do porvir
este odor a tempos novos
todavia sem cabimento nas formas.

#1449

[Crónicas do vírus, XVI]

Purificação,
nunca como dantes
(sempre doravante). 

26.3.20

Istanbul

As noites
um cárcere de canícula
sem tortura nas imediações
sem os poros poderem sossegar
do suor que banha o corpo inteiro.
Dos zimbórios
o canto misterioso
importuna o ceticismo infrequentável
são ondas sonoras
que coagem o serpear do Bósforo.
Os rostos marcados dos velhos
narram estórias escondidas
e os gatos que mandam nas ruas
inventariam os lugares decentes;
são o melhor guia dos turistas.
Ao jardim 
assomam as senhoras da alta sociedade
cuidando do chá frio
que aplaca o agosto em seu pináculo.
Dizem-me
que a tudo se sobrepõe
uma coreografia de odores
e nem é preciso hibernar no bazar egípcio
para colher esta maresia.
Na mesquita azul
as mulheres escondem o cabelo
e ficamos a saber 
que o cabelo é a montra dos pecados.
O Bósforo não está longe
e apetece tirar um naco da Ásia
e logo a seguir 
devolvê-lo à Europa.
Istanbul
é a cidade que nunca mais acaba.

#1448

[Crónicas do vírus, XV]

A rua
enfim
morada da solidão.

#1447

[Crónicas do vírus, XIV]

A rua
e silêncio
por companhia.

25.3.20

Guitarras e oráculos

Eram as guitarras corrosivas
um afago na nuca
enquanto perdia o repto
e os anciãos desfaziam-se em esgares
contra os oráculos do passado.
As guitarras
ainda corrosivas
desmentiam os oráculos,
dos que tiram as fronteiras do futuro
a régua e esquadro
e daqueloutros que ajuramentam
o passado perdido
nos passos rombos da memória.
Os anciãos
riam-se com as desdentaduras à mostra
impecavelmente rejuvenescidos
apessoados
como se fossem eles
os fiéis partidários da meninice revivida.
Eles sabiam
de fonte segura
da precedência 
da desmelodia das guitarras corrosivas
em vez dos aperaltados soberanos
de oráculos vários.
A lição derradeira dos anciãos
(cuidadosamente empunhando guitarras
à espera da desmelodia corrosiva)
é que não havia séquito
dos desemoinhados que se encanivatam
com o menor dos desagravos.
Era a única lembrança 
que herdaram 
do futuro dos outros.

#1446

[Crónicas do vírus, XIII]

Nunca tantos
odiaram tanto
a matemática.

#1445

O medo
é a fala do tempo.

24.3.20

#1444

[Crónicas do vírus, XII]

Uma guerra para travar.
Para travar.
Música para os (meus) ouvidos.

#1443

[Crónicas do vírus, XI]

Já se ouve,
em lamento:
este ano
metemo-lo 
num grande parêntesis.

Reino

De um punhado de areia
a janela ampla sobre a varanda
e à maré fui roubar a ternura das mãos
levedura do peito cheio onde repousas.
Dei-te a chave
o rosto frio à espera da boca
os lábios que eram sôfregos mastins do desejo.
O meu corpo
a página interminável em que te demoravas.

Dizias:

“não precisamos 
de conjugar o verbo no passado.”

E eu concordava,
concordava
que haveríamos de inventar um tempo verbal
na semântica que fosse rima nossa
e à janela voltaríamos
só para pesar as ondas do mar
e contarmos os gramas de sal 
de que era feita a maré
e à lua tardia 
encomendarmos a gramática sem critério
o estuário onde andaríamos de mão dada
ocupando o leito todo
sem espaço para o demais.

A varanda
vertida sobre a janela ampla
cobra o preço da areia a rodos 

– e já empregamos o verbo no presente –

e sabemos
com a inteireza do sangue convincente
que de nós procedem as orquídeas avençadas
o poema salvífico
o nutriente incalculável
o salvo-conduto do instinto sem freio
maresia em sonhos petrificados.
Pressentindo a aurora
o altar da consagração dos amantes.

#1442

[Crónicas do vírus, X]

As milícias do punho forte 
e da moral à prova de tudo
precedendo
o bastão da polícia de choque.

23.3.20

#1441

[Crónicas do vírus, IX]

O medo
emprestou-se ao medo
em sucessivos novelos
de medo.

Equações dispersas

A meação
de um pé-de-meia
não chega a uma quarta parte
de uma poupança.

A menção
a uma monção
não chega a dois quintos
de uma tempestade.

A mostra
de um corpo à mostra
não perfaz sequer um oitavo
de uma nudez.

A maldição
da má dicção
não representa três sétimas partes
de uma perturbação da fala.

A madurez
de um má rês
não sinaliza se não cinco sextos
de um mau feitio.

#1440

[Crónicas do vírus, VIII]

Os dados deitados ao porvir
por medo do presente.

#1439

[Crónicas do vírus, VII]

Amanhã
enquanto houver outro amanhã
para sair do sequestro do hoje malsão.

22.3.20

#1438

[Crónicas do vírus, VI]

Reinvenção,
fala-se de reinvenção.
Ou de distopia.

Desconvocatória

Amarrei o mandato
ao lingote das dunas
a musa não processada 
no estio das vinhas.

A fúria sem remissão
arrancou os verbos
e no armário gasto
amanheci em maré pródiga.

Dizia o mealheiro
que o devir não compensa
antes que seja cumprida
a enciclopédia do possível.

Não concordei com o propósito
com os sacerdotes da desimaginação
e em imaterial demanda
supliquei do sangue a ambição.

Na varanda da comiseração
desfilavam os miseráveis
desdentados e tudo
e eu sabia-os empenhados à mofina.

Da acusação de ilegitimidade
padeci durante um lustro
e não me importunei
pois os acusadores seriam suas vítimas.

Em vez do mandato
escolho as uvas doces
gatos rebeldes
e o murmúrio amado no torpor da manhã.

#1437

[Crónicas do vírus, V]

Quarentena
Quarenta, ena.

21.3.20

Boca

Na boca impossível
fragmentos da liberdade
coabitam na coreografia mundana.
Mundanos
não somos todos
nós?
Neste campo trivial
não se alojam profecias
o úbere cansado de adivinhos sem rosto.
Quem são os oráculos, então?
Na sala em forma de labirinto
rareiam as ajudas
uma espécie de oxigénio rarefeito
em altitude,
a mesma altitude que é a estatura abissal.
Os escafandros estão de lado
e o mar pode esperar.
Na boca improvável
toda uma fala por dizer.
Toda a noite por andar
nas ramificações dos sonhos
que se desmembram em sonhos outros
um ponto-e-vírgula perplexo
sem sincopadas avenidas por perto
sem druidas escondidos no avesso das mãos.
Na boca visível
a saliva métrica
o suor molecular
e os poros abertos
sedentos
entoando a aventura corpórea.

#1436

[Crónicas do vírus, IV]

Aos exacerbados espíritos:
evitem o penhor
dos retalhos em que vos é servido
o medo.

20.3.20

#1435

[Crónicas do vírus, III]

Até a primavera se lamenta
num pranto que é a chuva.

Troca-se fio da navalha por corda bamba

Da empreitada se diz:
o fio da navalha
em não madraços novelos do tempo
os olhos esbranquiçados 
no tabuleiro sem vidas a mais
em caução do desacerto.

Povoam-se medos
nos modos sepulcrais
anátema dos fracos
vultos sem linhagem
em fortes meadas de um fumo escolástico
os pirómanos sem sossego.

Atribuem-se comendas,
os estultos da moda,
e deixam-nos,
aos peões sem paradeiro,
a vaidade da lhaneza.

Se é isto o fio da navalha
prefiro saber
como é a corda bamba.

#1434

[Crónicas do vírus, II]

As casas,
metamorfose
de prisões voluntárias
(um oximoro das circunstâncias).

#1433

[Crónicas do vírus, I]

A desumanidade em maré alta
as pessoas
fugindo das suas imediações,
uma certa escatologia em levitação.

19.3.20

Caso perdido

Não segui a partitura:
por modéstia de pensamento
e irrisórios defeitos interiores
não pude acolher 
o magnânimo batistério
onde se agilizam trincheiras,
o inescapável timoneiro de lança certeira.
De tentativas esforçadas
não posso dizer que passei à ilharga:
há um lado obstinado em mim

(pagava a minha fortuna inteira
só para dele ter paradeiro)

que parece contra mim conspirar
uma certa levedura bolorenta,
talvez,
a irremediável muleta da contumácia
uma rebeldia só por ser, 
sem causa que não seja
a rebeldia só por ser,
um mosto fora de prazo
que de mim faz personagem atávica. 
E, pior ainda,
não consigo ficar refém de insónias
nem as masmorras da má consciência
me aprisionam numa excruciante aflição,
nem passo o tempo afogueado numa angústia,
a angústia de estar numa valsa a destempo
e ser de mim o meu próprio par
afinado pela ímpar coreografia
inempenhável criatura 
à margem de conversão.

Já estive mais longe 
de me convencer
que era um caso perdido.
E nem assim
terço a mínima comiseração 
como almofada do arrependimento, 
impassível perante ventos tão heurísticos
e a paleta de cores impecável
que se embebe na perfeição do palco.

Oxalá fosse vendilhão
e soubesse como se arqueia o sal do ser
às mordomias e às sinecuras 
sem prazo de validade.
Estou ciente dos meus limites:
sou um caso perdido.
Daqueles casos perdidos que, 
em abono do cúmulo da insolência,
não clamam por piedade
e se arrebatam
com o palácio da decadência
a que estão destinados.

#1432

Renuncia ao epicentro,
que a dança da loucura
não perde a véspera.

18.3.20

O mimo sem mimo

Um mimo:
declaro aberto o circo sem feras
o estendal das viúvas
e de suas línguas encenadamente viperinas
veneno em que foi vítima
o mimo.

O mimo
não está pelos ajustes.
Esperneia
vocifera os impropérios
que superam o património conhecido:
sua já não é a função
e todos os aprendizes
e os bastardos do humor
deixaram-no sem chão.

Os demais
que circunvaleiam em pesadelos maiores
por causa de mimos desta lavra
agradecem o mimo da tardia reforma 
do mimo despenhado na desgraça.

(Em que 
desgraça
é a doença dos que perderam,
ou nunca encontraram paradeiro,
da graça.)

#1431

Habita 
no avesso da manhã
o beijo diuturno.