6.5.20

#1548

[Crónicas do vírus, CXIV]

Agora 
que o exílio interior 
começa a contar os dias para a finitude
é o fim da autodeterminação?

5.5.20

Tratados

Tratados os tratados
ficaram em pé
as notas de rodapé.
Um copo de vinho
pois 
as gargantas ficaram secas
de tanto escreverem.
Os tratados
tratam de tresmalhar
os trastes
e vingam a aporia
a ingente suficiência que locupleta
almas prevenidas.
Do sopeso das cláusulas
soabriu o peso pluma das vírgulas
todas 
metodicamente
no sítio
sobre a tenência da substância,
esquecida para outras núpcias.
Os tratados
diligentemente assinados a tinta-da-china
trataram de ficar à guarda
dos imorredoiros halteres
força báscula
sobre a teimosia dos recalcitrantes. 
Os tratados
peticionavam contra as enxovias
os despudorados ultrajantes da palavra dita
os boçais que não sabem dos lugares.
Em novelos amiúdes,
os tratados
devidamente tratados pelos tratadores,
inundavam o chão granítico
com a heteronímia dos vultos penhores.
Não havia fortuna maior.

#1547

[Crónicas do vírus, CXIII]

Não há aviões
a desenhar o céu
para perguntarmos
aonde nos levariam.

#1546

[Crónicas do vírus, CXII]

Em câmara lenta,
no levantamento da cerca
na ressaca do auge.

#1545

[Crónicas do vírus, CXI]

“Não sabemos como vai ser o futuro”
(concede o anónimo na televisão).
Dantes
já não sabíamos.

4.5.20

Ressonância magnética

Na cortesia com cor de chumbo
corteja-se a franquia da alma
em reverberadas disputas interiores
hemisférios dados a pleitos intermináveis
e a fauna a agigantar-se
contra os muros intempestivos do tumulto.

Cortejam-se
os telhados virados ao sol
sem consagrar mistificações dos deuses
sem escutar pregões arrebatados 
de lenhadores amestrados
sem o contágio
das plumas de pavões imorredoiros
a humildade metodicamente alinhavada.

A planície levanta-se 
sobre as sombras da tarde.
Os dedos 
é como se levitassem
nas teclas de um piano
e o chão espasmódico,
imprevidência à escuta,
não tergiversa sob o piano incolor.

Ao planalto 
que afere o horizonte
as notas levam um murmúrio.
E eu
deste lado
à espera do eco.

#1544

[Crónicas do vírus, CX]

“Confinamento pôs mais gente a praticar actividade física.” (Publico)

Uma quarentena,
para dobrar o braço 
ao sedentário espécime.

#1543

[Crónicas do vírus, CIX]

Repovoamento
descarnado
descarado.

3.5.20

Alerta

Parla
vento
não amornes o espólio
não te tornes
barlavento. 

Serve 
eu teu cálice
o melífluo pesar
antídoto
contra sobrancelhas
oníricas. 

Remata
com o vulcão aceso
uma fortificação
sem pântanos à ilharga. 

Espera
no arco-íris sem demora
que o rosto seja teu
a taluda maior
em teu inventário.

#1542

[Crónicas do vírus, CVIII]

As palavras
que deixámos
de dizer.

#1541

[Crónicas do vírus, CVII]

Vinte e sete graus.
E o governo não proibiu
vinte-e-sete-graus?

2.5.20

#1540

[Crónicas do vírus, CVI]

Maus vão os tempos
para vícios e dissoluções
e bons estão
para estetas da moralidade.

Profusão


This Mortal Coil, “Carolyn’s Song”, in https://www.youtube.com/watch?v=p8eHP9NjeVM

Que nome te dou?
            Maresia,
para saberes que a boca
não é fingimento
e do sal hasteado
se funde a matéria do desejo.

Que nome te dou?
            Clepsidra,
para a mim chegar
o pulsar do teu sangue
e dele tomar medida 
sem ser a destempo.

Que nome me dás?
            Luar,
por saberes que a luz diáfana
cumpre o lugar
na pele que deixo à mostra.

Que nome me dás?
            Farol,
para em ti pousar
o vento da minha boca
e no teatro em que de mão juntas vamos
não ser nunca tarde 
o amanhã que constar.

#1539

[Crónicas do vírus, CV]

Afetos em maré baixa,
a caminho de sermos
nórdicos?

1.5.20

Desamanhecer

O lado certo
é incógnito
o abissal desembrulho
sem cordas por saber. 
As mangas da noite
é que têm razão:
(o desejo de) hibernação
um refúgio nas ombreiras do vento
o rapto do precipício
em novelos de bruma visível
convidam 
ao pesar dos alinhavos 
o forte com farol de atalaia
aos mastins que levam à boca
o pedaço da carne negligente. 
O lado errado
também é incógnito
uma manta sem idem
no rosto seráfico dos promitentes anjos
não fossem as asas cambas
em sua denúncia. 
Destinei ao improvável
a casta dos melhores (desejos)
a indumentária que me apessoa 
no contingente desenho
do leito em pródigo caudal.

#1538

[Crónicas do vírus, CIV]

As revoluções
ficaram 
adiadas.

#1537

[Crónicas do vírus, CIII]

Dos viciados na “normalidade”,
os curtos de espírito:
Ah! o “regresso à normalidade”.

30.4.20

O fingimento de infortúnio

Poupa na artilharia.
Sei-o bem:
as calças puídas
a desbocada árvore-mãe
o tresler de palavras outras
a argamassa mal cimentada
os condimentos fora de prazo
o adestrado manual de maus modos
o estribilho pueril
a macambúzia manhã sem hora
o desdizer insubmisso
um lado e o seu avesso, sem critério
a malsã confiança
as juras que se não juram
o dia com cor de noite
o fingimento em tinta de água
e um nome a tinta-da-china
perdido no dilúvio anunciado.
Eu sei.
E o que mais vier 
ao arcaboiço das lembranças.
Pior não haverá inventário por notar.
Poupa na artilharia.
Dela precisarás
para os que de ti tiverem repto. 
Pois de mim
desvalido e sem fortuna
sacrificado aos piores alvores
destinado aos intransigentes desdeuses 
que uma indulgência sobre mim atue
meã que seja
ou o bolor do esquecimento.

#1536

[Crónicas do vírus, CII]

Quarenta e cinco dias
e as mãos
sem notícias de notas.

#1535

[Crónicas do vírus, CI]

Aos sacerdotes de outros catecismos:
ó maldito relógio apressado
que retomas o lucro maldito?

#1534

[Crónicas do vírus, C]

Às pitonisas do ambiente:
apressar o relógio
obnubila uma agenda inteira?

#1533

[Crónicas do vírus, XCIX]

Dar muita corda ao relógio
e depois marcha-atrás,
outra vez?

29.4.20

#1532

[Crónicas do vírus, XCVIII]

Amanhã
ninguém sabe
se ontem é possível.

Visibilidade

Este é o pranto no coabitar do espanto
o mordaz vento que se vê capataz
da estilística sem medo da balística
no tirocínio para da bravura obter patrocínio.

Este é o desenho do sonho que empenho
a porta franqueada no que não importa
pela manhã azul sem espera do amanhã
nos dedos galgos que arriscam os medos.

Este é o filamento da fala sem paramento
a portadora do verbo cerzido na incubadora
nos perenes olhos cruzados com os líquenes
perto do lago onde me falas de acerto.

#1531

[Crónicas do vírus, XCVII]

Economia
rima com
pandemia.

#1530

[Crónicas do vírus, XCVI]

O medo
que nos deixa à mercê 
da surda repressão.

28.4.20

Pirata

Que não te sobre o eu
pirata das comendas
que não entre o distrate da alma
no sarcófago luminoso das vielas
onde a podridão
se encesta em levas de fungos
e os miríficos destinos
alvares
apessoam o suor em badana.

Que não te sobrem 
os vendáveis ressoares da alma
que fora de época
é mercancia sem bolsa onde mercar.

Sobrarás tu
pirata descaminhado
e a garrafa atirada ao sal do mar
teu testemunho,
 insubmisso.

#1529

[Crónicas do vírus, XCV]

O fermento
da saudade.

#1528

[Crónicas do vírus, XCIV]

A economia
estacionou
na garagem.

27.4.20

Avenida dos escombros à espera de desagravo

Não eram os punhais frios
que punham o sono em sobressalto.

Não eram os mudos medos
que saciavam as cicatrizes anuladas.

Não era o basalto aquecido
que furtava as lágrimas em inventário.

Não eram as angústias diletantes
que desembainhavam o corpo inteiro.

Não eram as injúrias à memória
que dispunham do tempo futuro.

Não eram os carris tartamudeados 
que inauguravam o despeito jurado.

Não eram as sibilinas noites furtadas
que devolviam o sono anestesiado.

Não eram as balas párias
que amedrontavam a feição ousada.

Não era a contumaz ofensa ao verbo
que descosia a gramática sem métrica.

Não eram os solteiros penhores da manhã
que açambarcavam a água fresca da fonte.