[Crónicas do vírus, CCXXII]
Agora
somos todos
atores
(definitivamente).
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Estes ovos
não se fazem
sem omeletes.
Podia ser um breviário do surrealismo
com quadros de vison
em baixela de fundo,
um canapé fumado com dedo mindinho,
ou um fundo sem pé
estiolando a toponímia para dar fundo
(ao critério do leitor:
sobre o atlas local
nos arrabaldes da capital cidade,
ou sobre lúbrica matéria).
Revendo a matéria dada:
estes ovos não se fazem
sem Hamlet.
O conspícuo saleiro
vertendo azotados cristais
na prebenda da culinária de fusão
– ou então,
as braçadas de um engenheiro arrependido
só para ter como rival
a excelência entre as excelências
e na piscina sem muros
encontrar seu covil.
Não admira
que os olhos lancem fisgas
sobre a portela onde se agigantam as elites:
a suave, disfarçada decadência
vertida em maneirismos burgueses
é pergaminho de uns quantos,
um punhado apenas:
besuntam-se de uma franquia regional
que destempera um ódio falaz,
um ódio que é fingimento de inveja.
Eles
são os ovos
a quem falta omelete
e conhecimento de Hamlet.
Os campos contestam
o estado derruído dos dias constantes
em sua galharda harmonia
como se terçassem uma independência viril
contra o remoço dos apavorados meãos
que de seu nome tinham artesãos.
Se ao menos
o entardecer não se diluísse
na centrifugação dos verbos hábeis
e os melhores cuidassem do inventário do dia
haveria um travesseiro idílico por passagem
o troco certo contra a incúria
e ao pedestal viriam os magos sem disfarce
a porosa alquimia em remédio falante.
Bicicletas roubadas falariam pelos despojados
uma gramática sem padrão
numa compilação de casas avençadas.
O líquido recorrente
(incógnito)
atravessa uma meada dos campos
sem os destruir.
Não havia modo de importunar
o válido dizer em sua fala muda.
Os dados ultrapassavam o tabuleiro
e alguém protestava
contra o viés das regras
como se fôssemos todos ingénuos
e soubéssemos
que os códigos
são um diletantismo de um punhado
só por si
sem serem à prova de dissidências.
Não adornava a feição desconfiada
a meio do periscópio emergente,
o incansável feitor das obras sem gasto;
ele sabia
como era povoar o silêncio
com palavras desarmadilhadas
o vício imaterial escondido
em rostos impassíveis.
E mesmo assim
desemparedava as janelas promitentes
à espera de um luar modesto,
à espera
de um frémito apalavrado
no mosto da manhã
sobrepondo-se ao farto ciciar
dos pássaros
que selam a alvorada.
Não é assombração
a casa proeminente
alçada sobre um vão,
sobranceira ao vale.
Podia,
ao abandono,
ressoar um palco de fantasmas,
lendas que fruem
no céu-da-boca das fantasias.
A casa
está apenas emparedada
de ausente paradeiro.
Exibe a glória de antanho
como os impérios idos,
averbados para memória futura.
O colossal carrossel
desmente a demarcação
por muito
que uns putativos eruditos
escrevam
desmarcação.
É no parapeito da palavra
que sucumbem
ireneus com manias de intelectuais.
[Crónicas do vírus, CCXIV]
Começou
a corrida contra
os números
(pois não falam
o que deviam falar).
Revólveres frios
fogem do fogo castrense
antes que castrados sejam
homéricos parceiros
a carne para canhão judiciosa.
Que estátuas merecem amanhã?
Não se diga
que o ontem foi pródigo
em cascatas de medo
onde a chuva se cristaliza;
não se diga
que as juras tiveram eco
salicórnia a condizer
só para enganar maleitas habituadas;
não se diga
antes do adormecer
que sultões sem espada
perdoaram boémios
e a vastidão do mar se enamorou
do ocre pintado sob a égide do ocaso.
Que estátuas perecem
no punhal dos justiceiros sem nome?
Escutem-se os livros da História
antes que seja narrada uma história
que se agiganta num palco sem veios.
Dentro do espelho
não há raízes
apenas
o olhar límpido
desmatado de falas sombrias.
Nado por dentro do mar
colho o sal no sangue álgido
e nem assim
sou elemento inato;
dantes
o mar era juramento
e um gato enrolado no sono
mestramente súbdito do areal
onde bisturis metódicos se afunilam
sabe-se lá se à procura de tesouros
ou do ouro escondido nas próprias mãos.
Tiro o estibordo com a lente baça
e as asas desembaraçam-se do vento
em boa hora,
em boa hora.
Não fossem os heróis todos mortos
e a voz perdia o gongórico véu
para se somar à pastoril montanha
que desaparece na litania do horizonte.
Mas não sou viável cruzador
neste mar temperamental
não sou marinheiro
por medo tido por penhor
das náuseas matinais.
É em terra
que sinto o cofre
e da tua boca bebo o manancial
a língua que se enrola na minha
e os versos que sobem à crueza da pele
em remoinhos desalinhados.
Espero pela razia dos miseráveis
e não os tenho por materiais convenções:
os miseráveis
que se convocam na jactância
no solipsismo desarranjado
na vítrea fonte onde a água se empareda.
Até posso ser errante
que da minha transumância sou garante
em nome de um nome só
o nome que adoço na boca
quando
a boca tua na minha tem fusão.
Para depois
antes de todas as vésperas
antes
que as janelas sejam desfronteiras
e todo o vento carregado de adjetivos
esbarre nas nossas couraças
seja eu promontório.
O alto:
para que a maré
pare a tempestade.
[Crónicas do vírus, CCXI]
Há os velhos do restelo
(vem aí a segunda vaga)
e os novos do restelo
(está tudo de feição).
Reino mau
história sem meio
terra de um rio também mau
e de profetas esquecidos no céu da boca.
Reino mau
que das boas coisas
andam os ilhéus exaustos
como se por exauridos estarem
se reformassem os vidros da catedral.
E reino mau
que meãos são os reis e as rainhas
em sua decadente pose
por cada deca dente rasurado por sucedâneos.
É mau
o reino
por ser sucedâneo de coisa nenhuma.
Não deem vivas
à república
(antes que seja tempo).
Fosse o manjerico
disfarce de foice e martelo
o S. João seria rico
sem precisar de um apelo.
Mas não é S. João
fingimento do Avante
pois categórico não
recebeu do mandante.
E até um pobre dragão
obrigado à faina
falta à celebração.
Ó desditosa taina
adiada para futura estação
à espera da luz que amaina.
O ultraje deletério
o traje ibérico
o úbere império
o unto pindérico.
O asno paroquial
o alvo providencial
o aipo notarial
o asco presidencial.
A lota desarmadilhada
a luta desafiada
a lula desconfiada
a luva destronada.
A máscara nupcial
a mistura ocidental
a maresia occipital
a mortalha temperamental.
O mosto tardio
o mastro arredio
o marco fugidio
o magma sadio.
[Crónicas do vírus, CCVIII]
Não há grande mal:
no tempo dos navegadores
também era preciso
corrigir a rota.
De cada vez que havia penumbra
o mosto do medo tornava-se
a saliva da extinção.
As cortinas eram muros ermos
ao mesmo tempo muralha e algema
insensato pedaço de verbo
nas sílabas vagarosas que arrastavam o dia.
Dizia alguém:
devias sentir o que eu sinto.
Houvesse quem recordasse
ser um logro a demanda
por imperativo do princípio
da intransferibilidade dos sentidos.
Como pode alguém convocar
uma comiseração destas
a não ser na demência da dor
que consome até os ossos?
Pode alguém conter a ideia
que as consumições se perfilham
com almas que se protestem generosas?
Os cânones são implicáveis, contudo:
a solidariedade é exigência
ainda que seja não mais
que um logro para libertar interiores dores
que mergulham
os labirínticos corredores da alma
numa castração
se não souberem peticionar
a piedade com as presas dos infortúnios.
Ao que dizem
a hipocrisia sempre foi o selo dos disfarces,
o teatro supremo
em que todas as boas almas
são alistadas.
A hipocrisia.
A cortina plúmbea que se abate sobre os rostos
uma pousada onde temos o rogo
das exonerações das más carnes
que nos consomem.
Saiba na melhor das fazendas,
a que desaproveita a densidade das interpelações,
que o logro seja meu
é que do fado inscrito no oráculo
esteja o alinhamento com o palco sem limites
onde se confecionam
o princípio geral do fingimento.
Uma sondagem
ao império da mansuetude,
eloquente,
aviva
o princípio geral do respeito,
Essa forca perene
o sândalo da casta
mitra dos figurões
a genuflexão imperativa.
Marx estava equivocado.
Não era a luta de classes
era
o princípio geral do respeito
(e a menoridade interior
pressuposta).
Espalhadas pelo chão
pétalas que são rugas
a tradução da bela decadência.
Como há quem deteste
o outono?
O chão atapetado
não mente aos comensais da estética:
um leve odor a perfume floral
sente-se em contágio
e as abelhas sabem-no
sapientes na demanda de doçura
povoando o bosque.
Como há quem tenha medo
das abelhas?