“Thives like us”,
disseste
e eu traduzi:
a afeição que os ladrões
têm por nós.
“Thives like us”,
reiteraste;
e eu percebi
o que dizias:
nós somos
como ladrões.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
“Thives like us”,
disseste
e eu traduzi:
a afeição que os ladrões
têm por nós.
“Thives like us”,
reiteraste;
e eu percebi
o que dizias:
nós somos
como ladrões.
Esta é a roda dentada
o pastel na paleta de intenções
o fogo imperturbável
a centrifugação que desaloja impurezas
o acostumado torpor na anestesia da matilha
o carvão alisado na folha de almaço
a inspiração que se perde na boca de água
o modo que não se convence da moda
uma escada íngreme sem cuidados
o mosto que amputa o intemporal
a beleza encerrada nos curros
(fugitiva dos Homens)
o manual de conversação
o impecável instrumento do consentimento
o barril à espera de manteúdo
os dedos trémulos na forca do medo
o penhor de toda a lucidez
o manuscrito sem titulação
(passado a tinta da China)
a tenaz que apara o desassossego.
Esta
é a palavra dita
à revelia de conjeturas.
Pesa o sinédrio arcaico
no dorsal esmaecido
vitrina também gasta
do coloquial projeto de dia
na vez da indigência dos feitores
que ofende as balsas onde fermentam
as palavras imprudentes
o préstimo dos arbustos sem dono
a partitura onde se desenham versos
o avião longínquo
acertando no céu sem reticências.
Convoquem-se os ardinas
para que à luz nova tragam notícias.
Não interessa que notícias são;
se um dia quadrar com ausência de notícias
podemos interrogar a hibernação
ou o dia em capitulação?
Dolosos
os destroços armadilhados
nos templos inacessíveis
onde se tornam forasteiros
os contumazes devedores da alma
na contrafação dos espíritos.
Os ossos falam mais baixo
sussurram
o vencimento do dia
à medida
que as pessoas desenham seus vestígios
e sem mossa
se recolhem aos aposentos.
É fim de semana,
exclama o operariado,
exausto.
Amanhã
será trunfo outra rotina;
um sábado escaninho
a desautorização das horas
um estribo para o avesso da alma
um lampejo de outra fadiga.
Os destroços
são sempre armadilhados
– sempre dolosos
(e,
não por acaso,
dolo
é anagrama
de lodo).
A boca sem fogo
eterniza o frio da pele.
Enche-se de ar,
a boca,
para emudecer.
Ao tirocínio das coisas
falta a pedra angular
um farol de perseverança
a metade do caminho por alisar;
o silêncio quimérico
de uma boca emudecida
pelo frio glacial
que a paralisa,
falta.
Aperaltado
o janota fumiga
fantasmas avulsos
conversa com botões
desaparafusa consumições.
Não há nada
como ser apessoado
– alvitrou
com a ufania em alta,
sintonizado
com um espelho magnânimo
mas judiciosamente falaz.
O aperaltado janota
até no pijama esmerava
fazendas das melhores circunscrições
não olhando ao estipêndio exigível:
assim como assim
os sonhos
(asseverava,
de si para si mesmo,
com uma solenidade,
vá lá,
parlamentar)
merecem uma cama a preceito
e era nele que os sonhos se desabotoavam;
o apessoado deitar
era a tença a preceito,
a convocatória dos sonhos.
Quanto ao demais
nunca chegou a saber
se sob o verniz pimpão
o pano de fundo
quadrava com a janotice.
Não seja
por contraste
a fecunda estafeta de um nome;
não seja
por diletante tomado
o estroina sem apeadeiro;
não seja
por mitomania almejado
o suserano que está na moda;
não seja
por inveja
a árvore existencial destronada
por excluídos da colheita;
não seja
em abandono deixada
a menina perene
enquanto órfã amanhece a bandeira;
não seja
tristonha a maré
enquanto da maresia sobram os seixos;
não seja
estimada a loucura
por sucedânea da morte.
[Crónicas do vírus, CCCI]
Não é
uma corrida contra o tempo;
levará a palma
aquele
que menos mentir a si mesmo.
A vida é uma.
A vida é una.
À vida
uma vénia.
A vida
é um vitral.
A vida
não é venal.
A vida
é viável.
A vida
é visível.
A vida
não quebra
à ameaça huna.
A vida
bebe no húmus.
A vida
é a vida.
Há vida.
Um ávido viva
à vida.
Primavera-me,
disseste.
Como na polinização
as abelhas
intuem uma entrega,
primavera-me.
Eu
obediente
como sabes
ser minha linhagem
fiz de ti
rainha mestra
não sem antes
te primaverar.
A boca rasga
as palavras.
Tende-as
no sol ganancioso
a fala consuetudinária
em surdina.
A boca rasga-se
nas palavras.
Fabrica um lago mirifico
onde assentam intenções
vagos delírios sem aviso
o efeito de estufa
em forma de abismo.
O que seria de nós,
sem boca
e palavras?
A formidável orquestração da alma
no irrisório lustro do oblívio
onde tudo foram nuvens
e o cimento cobriu o mapa,
tirando a raiz às paisagens.
Ouviam-se os gemidos sem rosto
e não havia reses por perto
nem o sumo de limões azedos
se vertia por cima das feridas abertas;
por junto
o horizonte desimpedido
as linhas simétricas
onde assentam as exclamações
de tanta beleza reunida nas intenções
a prolixa invenção do desmedo
que sangra em vez do suor,
o lado lunar
a renovação.
Houvesse a coragem para a tribuna
em vez do esconderijo timorato
e os corpos seriam imperadores
em sua desinibição
recusadas as arcaicas cancelas
que os esbulham de autenticidade.
Os verbos plúmbeos
atirados contra a pele desembaciada
deixaram de ser injúrias sibilinas:
esses mesmos verbos
operam-se na antítese
ao valerem mais do que são.
Visitam-se as catedrais esquecidas
no bolso da memória.
Envidraçados
os seus salões
perfumam os corpos
extraindo à força
a sua repulsiva contrafação.
[Crónicas do vírus, CCXCVIII]
Em exageros contínuos,
entre
a apoplexia do pré-apocalipse
e a negação.
A gana não é real,
que de realezas arcaicas
esta não é terra prendada.
Nem a gana é africano lugar,
para desilusão da geografia.
Nem a África diz a gana respeito,
se a literalidade semântica
fosse o aval.
Nem menos se confunda
com esgana
não só
por não ser correspondente
o termo
mas pela violência ínsita.
Gana como vontade,
que indomável deve ser
e nem dos costumes é devedora.
Assim sendo,
em que por temperado critério se diga,
que real é a gana
(no sentido hierárquico de real,
sem decair no acolhimento
da realeza).
Sentia o restolhar do granito
as botas
impiedosas
esmigalhavam o granito
à mercê de forasteiros.
A aspereza da paisagem
cortava a garganta,
ou seria da canícula
o sol extático a pino
vertendo a sua tórrida irradiação
sobre o corpo exsudado,
açoitado pelo sol.
As montanhas retalhavam a paisagem:
estava à mercê dos humores das montanhas
que a desenhavam
sem régua nem esquadro
apenas com a virtude do acaso.
Procurei as cumeadas:
queria apreciar os montes e vales
em sua sucessão interminável,
como se o infinito tivesse ali moradia,
os rios quase escondidos, em segredo
a voragem dos desfiladeiros
que, aqui e ali,
escarpavam a paisagem
como feitoria de um abismo.
Rareava,
a vegetação:
uns cardos de vez em quando
o tojo que só aparece nos altos territórios
a urze que definhava,
fora da estação
– a tertúlia para os prazeres
e o indeferimento da anamnese.
A cada miradouro
o corpo transbordava;
o ar com densidade
tornava a respiração um ónus
todavia aliviado pela tela
que compunha do olhar.
Às vezes,
uma ermida,
um cruzamento que desviaria das cumeadas
uma árvore tresmalhada
vestígios da fauna em sua escatológica prova
uma tímida nuvem arranhando o céu,
insuficiente para domar o sol irradiante.
Aproveitei para combinar juras
decerto desapalavradas à primeira oportunidade;
a fragilidade é um atributo
e as juras deviam ter recusa metódica
em vez de serem barco alistado.
Das cumeadas trouxe um dia ganho:
da osmose com a crueza dos elementos
fermentava a redescoberta.
Mergulha-se
na fragosidade dos elementos
no seu indomável perímetro
e é como se o corpo se banhasse neles
límpido e achado e desembaraçado
à espera das demandas em espera.
[Crónicas do vírus, CCXCVI]
Uma mordaça perene:
a devolução
a uma liberdade amputada.
(Ou: o sonho húmido
de muitos mandantes
e não apenas.)