23.9.20

Lost in translation in between untidy words

“Thives like us”,

disseste

e eu traduzi:

a afeição que os ladrões 

têm por nós.

 

“Thives like us”,

reiteraste;

e eu percebi 

o que dizias:

nós somos 

como ladrões.

#1739

[Crónicas do vírus, CCCXI]

 

Repetição

ou enredo 

reinterpretado?

22.9.20

Envelope desfardado

Esta é a roda dentada

o pastel na paleta de intenções

o fogo imperturbável

a centrifugação que desaloja impurezas

o acostumado torpor na anestesia da matilha

o carvão alisado na folha de almaço

a inspiração que se perde na boca de água

o modo que não se convence da moda

uma escada íngreme sem cuidados

o mosto que amputa o intemporal

a beleza encerrada nos curros

(fugitiva dos Homens)

o manual de conversação 

o impecável instrumento do consentimento

o barril à espera de manteúdo

os dedos trémulos na forca do medo

o penhor de toda a lucidez

o manuscrito sem titulação

(passado a tinta da China)

a tenaz que apara o desassossego.

Esta

é a palavra dita

à revelia de conjeturas.

#1738

[Crónicas do vírus, CCCX]

 

Bordejamos o naufrágio

e vamos

pela corda do hábito.

21.9.20

#1737

[Crónicas do vírus, CCCIX]

 

Sedição aos costumes

ou

sedução pela alteridade.

Mosteiro

Pesa o sinédrio arcaico

no dorsal esmaecido

vitrina também gasta

do coloquial projeto de dia

na vez da indigência dos feitores

que ofende as balsas onde fermentam

as palavras imprudentes

o préstimo dos arbustos sem dono

a partitura onde se desenham versos

o avião longínquo

acertando no céu sem reticências.

Convoquem-se os ardinas

para que à luz nova tragam notícias.

Não interessa que notícias são;

se um dia quadrar com ausência de notícias

podemos interrogar a hibernação

ou o dia em capitulação?

#1736

[Crónicas do vírus, CCCVIII]

 

Não há meta

a preencher

o firmamento.

20.9.20

#1735

[Crónicas do vírus, CCCVII]

 

Amanhã

a casa

foi o exílio.     

19.9.20

#1734

[Crónicas do vírus, CCCVI]

 

Do frio 

a faca funda

que funde o futuro.     

18.9.20

Sobre o significado de dolo

Dolosos

os destroços armadilhados

nos templos inacessíveis

onde se tornam forasteiros

os contumazes devedores da alma

na contrafação dos espíritos.

Os ossos falam mais baixo

sussurram 

o vencimento do dia

à medida 

que as pessoas desenham seus vestígios

e sem mossa 

se recolhem aos aposentos.

É fim de semana,

exclama o operariado,

exausto.

Amanhã 

será trunfo outra rotina;

um sábado escaninho

a desautorização das horas

um estribo para o avesso da alma

um lampejo de outra fadiga.

Os destroços

são sempre armadilhados 

– sempre dolosos

(e, 

não por acaso,

dolo 

é anagrama

de lodo).

#1733

[Crónicas do vírus, CCCV]

 

Agora,

a valsa 

dos biombos.        

17.9.20

Lição do silêncio

A boca sem fogo

eterniza o frio da pele.

Enche-se de ar,

a boca,

para emudecer.

Ao tirocínio das coisas

falta a pedra angular

um farol de perseverança

a metade do caminho por alisar;

o silêncio quimérico

de uma boca emudecida

pelo frio glacial

que a paralisa,

falta. 

#1732

[Crónicas do vírus, CCCIV]

 

Participo do passado

a contar

com o futuro.

16.9.20

O janota sem penhor

Aperaltado

o janota fumiga

fantasmas avulsos

conversa com botões

desaparafusa consumições.

 

Não há nada

como ser apessoado 

– alvitrou

com a ufania em alta,

sintonizado

com um espelho magnânimo

mas judiciosamente falaz.

 

O aperaltado janota

até no pijama esmerava

fazendas das melhores circunscrições

não olhando ao estipêndio exigível:

assim como assim

os sonhos

            (asseverava,

de si para si mesmo,

com uma solenidade, 

vá lá, 

parlamentar)

 

merecem uma cama a preceito

e era nele que os sonhos se desabotoavam;

o apessoado deitar

era a tença a preceito,

a convocatória dos sonhos.

 

Quanto ao demais

nunca chegou a saber

se sob o verniz pimpão

o pano de fundo 

quadrava com a janotice.

#1731

[Crónicas do vírus, CCCIII]

 

Em lugar da acalmia,

sal derramado

na cicatriz por fechar.

15.9.20

#1730

[Crónicas do vírus, CCCII]

 

O filho das promessas

é o avô das desilusões.

Levantamento

Não seja 

por contraste

a fecunda estafeta de um nome;

não seja

por diletante tomado

o estroina sem apeadeiro;

não seja

por mitomania almejado

o suserano que está na moda;

não seja

por inveja 

a árvore existencial destronada

por excluídos da colheita;

não seja

em abandono deixada

a menina perene

enquanto órfã amanhece a bandeira;

não seja

tristonha a maré

enquanto da maresia sobram os seixos;

não seja 

estimada a loucura

por sucedânea da morte. 

#1729

[Crónicas do vírus, CCCI]

 

Não é 

uma corrida contra o tempo;

levará a palma

aquele

que menos mentir a si mesmo.

14.9.20

#1728

[Crónicas do vírus, CCC]

 

Desconfinar 

rima com

desconfiar.

Loa

A vida é uma.

A vida é una.

À vida

uma vénia.

A vida

é um vitral.

A vida 

não é venal.

A vida

é viável.

A vida 

é visível.

A vida

não quebra

à ameaça huna.

A vida

bebe no húmus.

A vida

é a vida.

Há vida.

Um ávido viva

à vida.

#1727

[Crónicas do vírus, CCXCIX]

 

Uma nuvem

densa

como num pesadelo

sem paradeiro.

13.9.20

Primaverações

Primavera-me,

disseste.

Como na polinização

as abelhas

intuem uma entrega,

primavera-me.

Eu

obediente 

como sabes

ser minha linhagem

fiz de ti 

rainha mestra

não sem antes

te primaverar.

12.9.20

Efeito de estufa

A boca rasga

as palavras.

 

Tende-as 

no sol ganancioso

a fala consuetudinária

em surdina.

 

A boca rasga-se

nas palavras.

 

Fabrica um lago mirifico

onde assentam intenções

vagos delírios sem aviso

o efeito de estufa

em forma de abismo.

 

O que seria de nós,

sem boca

e palavras?

11.9.20

Adiantamento

A formidável orquestração da alma

no irrisório lustro do oblívio

onde tudo foram nuvens

e o cimento cobriu o mapa,

tirando a raiz às paisagens.

Ouviam-se os gemidos sem rosto

e não havia reses por perto

nem o sumo de limões azedos

se vertia por cima das feridas abertas;

por junto

o horizonte desimpedido

as linhas simétricas 

onde assentam as exclamações

de tanta beleza reunida nas intenções

a prolixa invenção do desmedo

que sangra em vez do suor,

o lado lunar

a renovação.

Houvesse a coragem para a tribuna

em vez do esconderijo timorato

e os corpos seriam imperadores

em sua desinibição

recusadas as arcaicas cancelas

que os esbulham de autenticidade.

Os verbos plúmbeos

atirados contra a pele desembaciada

deixaram de ser injúrias sibilinas:

esses mesmos verbos

operam-se na antítese 

ao valerem mais do que são.

Visitam-se as catedrais esquecidas

no bolso da memória.

Envidraçados

os seus salões

perfumam os corpos

extraindo à força

a sua repulsiva contrafação.

#1726

[Crónicas do vírus, CCXCVIII]

 

Em exageros contínuos,

entre 

a apoplexia do pré-apocalipse

e a negação.

10.9.20

O disfarce das palavras

A gana não é real,

que de realezas arcaicas

esta não é terra prendada.

Nem a gana é africano lugar,

para desilusão da geografia.

Nem a África diz a gana respeito,

se a literalidade semântica

fosse o aval.

Nem menos se confunda

com esgana

não só 

por não ser correspondente

o termo

mas pela violência ínsita.

Gana como vontade,

que indomável deve ser

e nem dos costumes é devedora.

Assim sendo,

em que por temperado critério se diga,

que real é a gana

 

(no sentido hierárquico de real,

sem decair no acolhimento

da realeza).

#1725

[Crónicas do vírus, CCXCVII]

 

O sonho

outra vez,

ou o sonho embaciado

pelo remoçar dos fantasmas.

9.9.20

Transumância

Sentia o restolhar do granito

as botas 

impiedosas

esmigalhavam o granito

à mercê de forasteiros.

A aspereza da paisagem

cortava a garganta,

ou seria da canícula 

o sol extático a pino

vertendo a sua tórrida irradiação

sobre o corpo exsudado,

açoitado pelo sol.

As montanhas retalhavam a paisagem:

estava à mercê dos humores das montanhas

que a desenhavam 

sem régua nem esquadro

apenas com a virtude do acaso.

Procurei as cumeadas:

queria apreciar os montes e vales

em sua sucessão interminável,

como se o infinito tivesse ali moradia,

os rios quase escondidos, em segredo

a voragem dos desfiladeiros

que, aqui e ali,

escarpavam a paisagem

como feitoria de um abismo.

Rareava, 

a vegetação:

uns cardos de vez em quando

o tojo que só aparece nos altos territórios

a urze que definhava,

fora da estação 

– a tertúlia para os prazeres

e o indeferimento da anamnese.

A cada miradouro

o corpo transbordava;

o ar com densidade

tornava a respiração um ónus

todavia aliviado pela tela 

que compunha do olhar.

Às vezes,

uma ermida,

um cruzamento que desviaria das cumeadas

uma árvore tresmalhada

vestígios da fauna em sua escatológica prova

uma tímida nuvem arranhando o céu,

insuficiente para domar o sol irradiante.

Aproveitei para combinar juras

decerto desapalavradas à primeira oportunidade;

a fragilidade é um atributo

e as juras deviam ter recusa metódica

em vez de serem barco alistado.

Das cumeadas trouxe um dia ganho:

da osmose com a crueza dos elementos

fermentava a redescoberta.

Mergulha-se

na fragosidade dos elementos

no seu indomável perímetro

e é como se o corpo se banhasse neles

límpido e achado e desembaraçado

à espera das demandas em espera.

#1724

[Crónicas do vírus, CCXCVI]

 

Uma mordaça perene:

a devolução 

a uma liberdade amputada.

(Ou: o sonho húmido

de muitos mandantes

e não apenas.)

#1723

[Crónicas do vírus, CCXCV]

 

O dia

arrancado à boca,

uma mordaça 

perene?