[Crónicas do vírus, CCCXLII]
Do oráculo
dos profetas da catástrofe:
doravante
seremos apenas
fotocópias do que fomos.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CCCXLII]
Do oráculo
dos profetas da catástrofe:
doravante
seremos apenas
fotocópias do que fomos.
Por que se confunde
castigo com punição
se os dois se entaramelam
numa nebulosa aflição?
Por que se aviva
o raio no limite do sol
se a trovoada se esconde
na cortina de obstruídas nuvens?
Por que se fala de tudo
na praça onde alta se nota a vozearia
se os alarves peritos se fundem
no impreciso palavreado?
Por que adormecem no estio
as bestas desemparelhadas
se os campinos estouvados
pedem meças na estultícia?
Por que se cultivam
os abraços e os corpos entrelaçados
se é no sexo
que eles se agigantam?
Por que assobiam estrofes
os desamantes sem espelho
se é no fojo sem batismo
que açambarcam os enteados da lógica?
Por que fingem os foragidos
que são estetas da compulsão
se a sua contumácia
é nosso deleite?
[Crónicas do vírus, CCCXLI]
A espuma dos paradoxos,
se para uns
o tempo se funde no nada
e para outros
teima em demorar-se.
Era todos os dias:
o animal exótico
fora do habitat
exposto aos olhares
em vez de sujeito
objeto com moldura de aberração.
Boquiabertos humanos
tratando-o como troféu
selado no bilhete do recinto.
E o animal
contristado e sem remédio
só não indiferente
porque odiando
profundamente
os humanos.
[Crónicas do vírus, CCCXXXVIII]
Efeitos primários:
a exposição demorada à pandemia
causa
baratas tontas na política.
Visita guiada
ao parapeito onde se deita
o dia fruído:
ninguém deseja a sua Bastilha
nem um copo de leite azedo
ou o larvar bocejo que afiança
desinteresse.
Ninguém se manifesta
a favor das contrariedades
nem se propõe como Sísifo
que do vale sobe
ao mais alto miradouro.
Destas visitas guiadas
tomamos conhecimento
como mnemónica do seu antídoto.
Sento-me no vão do silêncio
onde o vulcão se ri das fronteiras
e nenhum passaporte tem validade.
Sento-me à porta da falcoaria
onde as facas estão líquidas
e o vinho se desimpede
na fermentação ávida do jogo
com desregras.
Sinto o medo a ecoar na boca
as suas sílabas arrastam-se
como portões enferrujados
que se desenjaulam da maratona do fogo.
Sinto que cavalgo no silêncio
e dá-me preço para ser testemunha
de um outro silêncio desautorizado
o modesto encargo
do silêncio
que atraiçoa o silêncio estrutural.
[Crónicas do vírus, CCCXXXVI]
Quantas mortes,
as havidas e as que pendem,
são precisas
para castrar as liberdades?
Fixo
os dentes
no povoado
onde esquálidas
prosseguem as virgens.
Determino
os verbos
na gramática
onde esquecidas
erram as metáforas.
Provoco
a maresia
no mar grosso
onde esperançosas
se soerguem musas.
[Crónicas do vírus, CCCXXXIV]
Empenhados
no estalão da sorte
(ou do seu antónimo)
meros peões
de um jogo de acasos.
Por onde me escondo
na atalaia dos desacertos
em conjuração com as armas embestadas
que alisam as páginas altivas.
Angariem-se cicerones avalizados
para a meã partilha do moderno
esconjurando as balizas arcaicas
devolvendo ao mosto pútrido
os anciãos que fogem da báscula do tempo
penhores da imodéstia dos Homens
no seu refúgio apalavrado
em versos sem curadoria.
Pois se mecenas somos
é no dorso audível das caravanas
onde se desmata o pretérito
que perdeu o paradeiro.
Sem a custódia dos ogres
que a mão sensível
não tem mesura.
O corrimão heráldico
tem o seu avesso:
finas
as filigranas
em corpos beócios.
Nunca houve juramento
dos jumentos encartados
que se disfarçaram
de pergaminhos distintos
– e não era carnaval.
[Crónicas do vírus, CCCXXXI]
Como numa estrada de montanha:
à descida até ao vale
segue-se tortuosa subida.
[Crónicas do vírus, CCCXXX]
Diz-se
que da transfiguração
somos devedores,
mas as vidas continuam
visíveis.
Estes são os emolumentos:
a fazenda sem remendos
um copo pronto
o beijo mareado a tempo
a glória do tempo por haver
a matéria-prima dos piratas sem pejo
a versátil varanda
de onde se agasalha o dia restante
o corpo hasteado.
Um bom negócio
por estes modestos
emolumentos.
[Crónicas do vírus, CCCXXIX]
Passamos
a falar
por onomatopeias.
(Devo terminar
com um ponto de interrogação?)
Minha faço a ilusão
do arrojo no gesto desalinhado
na improvável feição do dia órfão.
Que nenhum tributo seja devido
aos anciãos que chegam a destempo
aprisionados em suas gólgotas
apenas à espera do golpe final.
Ouso pronunciar
a ancianidade procrastinada
uma dádiva como espórtula
ao incalculável sopesar do viver.
Viver
em militante contrário de marés
tal como o polegar
sempre em contramão
da mão a que pertence.
Desfaço o corpo
em nuvens circenses
o tópico de uma coreografia
sem costuras
gutural
a umbria que se acotovela
na indiferença
à procura de equinócio
à procura
do santuário onde se sublimam
os prazeres.
Desfaço-me do corpo
e sinto ficar
apenas
com o despensamento.
[Crónicas do vírus, CCCXXVII]
Foi feitiço
de loucas Tágides
ou vingança
dos deuses enlouquecidos?
Uma bola atirada aos impropérios
(bola negra)
juízo sem juízo
ou
simples artefacto à procura de artesão
a meio da selva tonitruante
onde os relâmpagos se apagam
na boca cheia de fogo
dos déspotas.
Impurificam-se as avarezas
(bola negra)
e o cinzel adestra as formas
no torneado deslumbramento
que enxameia a matilha dos ufanos:
sem o ardil do espelho industriado
não são famosas
as formas manifestadas
(bola branca!).
O resto
Fica para a diáspora
E para os seus diletos fautores
(bola negra, bola negra!).
[Crónicas do vírus, CCCXXVI]
Ecos da desumanidade
agora que somos
e em incremento
bonecos de plasticina.