2.11.20

#1784

[Crónicas do vírus, CCCLVI]

 

Dia

de todos 

os tolos. 

1.11.20

#1783

[Crónicas do vírus, CCCLV]

 

Enfim

deixaram os mortos

em paz.

31.10.20

Ponto de cruz

Não é da fazenda puída

que contam os dedos válidos

nem da cruz alvoraçada

que se terçam mentiras.

Que se emalhem os pertences 

 

(não há equívoco,

caro leitor:

o verbo é 

emalhar)

 

no episódico insurgir da maré,

não por acaso chamada

maré-viva,

que o ponto de cruz

emoldura

para memória futura

os estragos da viva maré.

 

E depois

não há quem inquira

por que sortilégio do idioma

 

            (ou distração dos peritos)

 

a uma maré destas

assim devastadora

se chama

maré-viva,

se tantas vezes o que espalha

é morte.

#1782

[Crónicas do vírus, CCCLIV]

 

Doámo-nos as culpas

no maior remorso

dos tempos.

30.10.20

Consoante muda

Muda

a consoante,

antes que a consoante

fique muda.

Contra a mudez

em remoinho

os novelos da fala

pouco podem terçar.

 

Mas se a consoante emudece

não perde ela serventia:

experimente-se outra extração

a consoante tornada invisível

e digam

se não faz falta

a consoante muda.

 

Fica provado:

um silêncio

é 

(por vezes)

fala não tumular.

#1781

[Crónicas do vírus, CCCLIII]

 

São os deuses que dormem

ou não têm arcaboiço

para a peste?

29.10.20

Faz-tudo

Faz tudo

ou 

o faz-tudo

deseremita destemido

versátil sem par

despachante de mistérios

operário sobredotado

avençado das empreitadas improváveis.

E

no fim de contas

perito de nada.

#1780

[Crónicas do vírus, CCCLII]

 

A metonímia credível:

o cão

azamboado

sempre a andar à roda

atrás da cauda.

28.10.20

Validade

Regressado da ausência

reponho a hierarquia.

 

Anoto 

as pessoas que passam

os rostos que vertem

uma quota de parecença

a paridade não desdenhada.

 

Anoto

o módico esvoaçar do dia

que esbraceja contra 

a entediante peregrinação do mesmo

e colhe

abertamente lúcido

a flor válida que se oferece

à janela já não mitigada.

#1779

[Crónicas do vírus, CCCLI]

 

Como sonâmbulos,

num palco

sem arnês. 

27.10.20

Diz-me

Diz-me 

se a fala 

é desta boca

ou apenas de um síndico

que papagueia as sílabas disformes

de uma fala sem passaporte.

 

Diz-me

se os morangos estão doces

e na fruteira se exibem os frutos

à espera da madurez.

 

Diz-me

que tenho ouro nas mãos

e que sabes ser santuário

com a procuração do meu corpo.

 

Diz-me

que não somos mudos ao outono

e que somos a fogueira que apaga o frio

enquanto a noite se demora na sua escassez.

 

Diz-me

que os dias são todos diferentes

e que o teu peito como ancoradouro

é a justa recompensa para o lugar porfiado.

 

E diz-me

antes que emudeça a noite

que atravessamos os carris desalinhados

subimos aos promontórios inacessíveis

desenhamos os mapas contingentes

fazemos rimas com o amparo das gargalhadas

e anoitecemos entrelaçados

como alimento recíproco

as almas desapoquentadas que se incensam

na luz não pálida apalavrada 

pelas nossas bocas distintas.

 

Diz-me

que somos o étimo da singularidade

e dos dedos uníssonos 

estilhaçamos os contratempos

e compomos as estrofes algorítmicas

que povoam o nosso espaço vital.

 

Diz-me

acima de tudo

o tudo que sobe à boca

sem que sobre nada por dizer.

 

Diz-me

em perene derrota 

do silêncio castrador.

#1778

[Crónicas do vírus, CCCL]

 

As pessoas

já sentem falta

de ver bocas.

#1777

[Crónicas do vírus, CCCXLIX]

 

O jogo

é diferente

e das regras sabe-se

um desconhecido conhecido.

26.10.20

Opcional

Este é o chumbo que tinge o tempo

uma mortalha irremissível

o protesto encorpado no vinco do rosto

sem estar à espera de nada

sem arrumar as esperas 

para o relógio diuturno que arregaça o dia

sem arruinar os anéis vertidos em ternura.

Não são as mesas gastas

o palco adiantado ao crepúsculo;

não são as mãos suadas

que aquecem o arrefecimento noturno;

não são os jacarandás floridos fora do tempo

o atestado de salubridade do pensamento:

não há certidão lavrada no mosto da melancolia

e de vulcões ideados é colhida a sementeira

os juros a pagar no vindouro

entre a fala amuralhada e o vinho delituoso.

Não são os trovões medonhos

que acordam da hibernação plúmbea

nem o ocaso feérico se transfigura

em alvorada a destempo.

Esta é a boca ávida

o transiente esfacelar da fala anciã

a nova gramática 

que desponta no viés das parras acobreadas

o autor sem nome nem paradeiro

um outono macilento 

que desaprova a gente que o desaprova.

Este é o túmulo sem inquilino

a turfa tremeluzente que bebe toda a chuva

o mirífico legado do porvir jurado

em estandartes magníficos

na solene indumentária

da nudez.

#1776

[Crónicas do vírus, CCCXLVIII]

 

Falta inventar

a linguagem

para ler o medo.

25.10.20

#1775

[Crónicas do vírus, CCCXLVII]

 

Uma extração de déspotas

no descaminho da peste.

Trave mestra

A meação das intenções

no refúgio uterino

onde são patronos

os trovadores hesternos.

Os mapas são o crepúsculo das marés.

Na maré alta dos corpos

uma crisálida abre-se ao dia

exponencial

e dita as sílabas do poema mandatário.

Um diadema entroniza o dono do dia.

Amanhã não será dele.

Justas ou não,

as agonias somadas já não esperam em vão:

o esquecimento fez-se cimento

e as vigas de aço

emprestaram-se esteios ao frágil estertor.

24.10.20

#1774

[Crónicas do vírus, CCCXLVI]

 

A era

em que os recordes

deixaram de pertencer

às modalidades olímpicas.

23.10.20

O computador sobredotado

O meu computador

é mais inteligente

do que eu. 

Todos os dias,

sem que lhe tivesse pedido,

atira para a pasta do lixo

as mensagens daquele sujeito

insuportável. 

Sem que lhe tivesse pedido. 

O meu computador. 

Mais inteligente. 

Do que eu. 

Pudera:

o meu computador

alinha na equipa

da inteligência artificial.

Ele terá de mim 

melhor conhecimento

ou então

sou eu,

o da apenas inteligência espontânea,

que estou em défice de conhecimento

de mim próprio. 

Mas

ao menos

o meu computador

não têm dívidas existências

e dúvidas ao banco

nem trava conhecimento

com lugares descobertos

nem se extasia com um livro

uma peça de teatro

um concerto de música

nem se enamora da mulher amada

nem testemunha a filha 

a deixar de ser criança. 

O meu computador

limita-se 

a ostentar sobre mim

a superior inteligência

poupando-me 

à conversão de incómodos

quando a sobredita personagem

bolça um qualquer asnear

na prolixa atividade de enviar

mensagens. 

E eu

não invejo

o computador por ser 

mais inteligente

do que eu:

a inteligência que me coube

(a tal, espontânea e humilde)

já não cabe em si

de tão tumultuosa. 

#1773

[Crónicas do vírus, CCCXLV]

 

Às vezes penso

que tomámos todos 

barbitúricos

e acordámos no meio

de um pesadelo.

22.10.20

L. contra os coros

O L. não gosta 

que as músicas tenham 

coros. 

 

Perguntei porquê. 

 

O L. foi evasivo

(e desconversou).

 

Gostava de saber as razões do L.

 

Não que queira por elas

medir as minhas:

é mau arrazoado

 

(diria o filósofo

cujo nome 

o momentâneo esquecimento

tornou baço)

 

que a couraça das nossas ideias

seja assestada pelo fiel

das ideias dos outros. 

 

O L. permanece enigmático. 

 

Não tem importância. 

 

O L. gosta de cães

e eu nunca perguntei 

porquê. 

#1772

[Crónicas do vírus, CCCXLIV]

 

“Dentro do possível” 

– e ninguém ousa interrogar

fora do possível?

21.10.20

Defraudário

Nevrálgico,

o penso rápido

panaceia com caramelo

e refrigério em tocata breve.

 

Todo o homem 

comporta a sua besta

e não há barragem alistada

que faça as vezes da romã

no eixo perpendicular do outono.

 

Há palavras que arrotam

um suicidário apessoado, breviário

letra de forma de impecável estética

e o soez gravitar no emparedado arguir.

 

Contam as contas

na pia batismal 

onde se servem os ébrios 

que um sábio sabe-o de dedutível fonte

mesmo com entorses à gramática.

 

O sorriso verseja

joga-se contra as lombadas

e os livros agredidos enxugam lágrimas

as que não são tartamudeadas

pelos meãos tenentes que a tudo dizem sim.

 

Ninguém venha ao engano

que no defraudário não se limam arestas

nem se encantam arrependimentos

(a menos que seja pecadora

a recompensa promitente).

#1771

[Crónicas do vírus, CCCXLIII]

 

(Variante do #1770)

 

Quase sempre

sermos fotocópias

é o mais próximo do possível.

#1770

[Crónicas do vírus, CCCXLII]

 

Do oráculo

dos profetas da catástrofe:

doravante 

seremos apenas

fotocópias do que fomos.

20.10.20

Contentor: destino incógnito

Por que se confunde

castigo com punição

se os dois se entaramelam

numa nebulosa aflição?

 

Por que se aviva

o raio no limite do sol

se a trovoada se esconde

na cortina de obstruídas nuvens?

 

Por que se fala de tudo

na praça onde alta se nota a vozearia

se os alarves peritos se fundem

no impreciso palavreado?

 

Por que adormecem no estio

as bestas desemparelhadas

se os campinos estouvados

pedem meças na estultícia?

 

Por que se cultivam

os abraços e os corpos entrelaçados

se é no sexo

que eles se agigantam?

 

Por que assobiam estrofes

os desamantes sem espelho

se é no fojo sem batismo

que açambarcam os enteados da lógica?

 

Por que fingem os foragidos

que são estetas da compulsão

se a sua contumácia

é nosso deleite?

#1769

[Crónicas do vírus, CCCXLI]

 

A espuma dos paradoxos,

se para uns 

o tempo se funde no nada

e para outros 

teima em demorar-se.

19.10.20

Jardim zoológico

Era todos os dias:

o animal exótico

fora do habitat

exposto aos olhares 

em vez de sujeito

objeto com moldura de aberração.

Boquiabertos humanos

tratando-o como troféu

selado no bilhete do recinto.

E o animal

contristado e sem remédio

só não indiferente

porque odiando

profundamente

os humanos.

#1768

[Crónicas do vírus, CCCXL]

 

O que fazemos?

O que sempre aprendemos:

a sobreviver.

18.10.20

#1767

[Crónicas do vírus, CCCXXXIX]

 

As memórias felizes.

Antes que a nostalgia

seja desterrada.