3.4.21

Do avesso da noite

Ou o chão pedregoso

incansável

deitando os reis ao chão

e corando as arestas 

que sobram da margem contrária. 

Não se obedeça aos imperativos:

a madrugada estiolada 

confrange os espíritos avisados

e basta uma pergunta bem costurada

para virar o jogo do avesso. 

 

É o colóquio que se estima

no inventário das almas que contam. 

 

A chama não flácida

a palavra em riste

como espada que mistura 

os ingredientes da iguaria esperada. 

A manhã acostuma-se,

desarma os mastins que,

descarnados,

são pouco mais do que matéria inorgânica. 

 

Lá fora,

o jardineiro confere novos limites à relva. 

 

Ninguém falou de chapéus

ou de uma lua para além da nascente

onde se promete um rio tumultuoso.

#1965

[Crónicas do vírus, DXXXVII]

 

Nunca foi

tão diferente

os corpos

tão proibidos.

2.4.21

Dos cândidos

Dar a cara

é um mito

uma extravagância

que não quadra com o sensível.

Se a cara 

é o espelho visível do que somos

quem

no seu apurado juízo

a entrega gratuitamente?

Sem esquecer

que a dádiva da personalidade

é o suicídio dos direitos básicos

e será

decerto

prática banida pelos tratados internacionais.

Nem os mais generosos

os mais desprendidos

aqueles que não encontram motivos

para serem quem são

se encontram nas furnas onde,

dementes,

os cândidos dão a cara.

E mesmo que a dessem,

davam com que propósito?

#1964

[Crónicas do vírus, DXXXVI]

 

Juram

que a aurora

irá depor

sobre o nosso resgate.

1.4.21

Endoscopia do poema

Ao esófago do poema

uma endoscopia:

exige-se hermenêutica apurada

ou o leitor 

ensarilha-se num logro.

Se ao menos

a poesia tivesse metalurgia

e uma formatura de equações

estivesse em equação

a matemática

com a sua exatidão irrefragável

cuidaria de colonizar a poesia.

Ainda bem

que as letras

são o povoado da diferença

lídimas notárias

da inexaustiva arte da interpretação. 

#1963

[Crónicas do vírus, DXXXV]

 

A peste

não é uma mentira 

– e dizê-lo não viola

o código do dia das mentiras.

31.3.21

Biografia

Pedes sol

dou-te estrofes.

 

Pedes verbos

dou-te a planície.

 

Pedes hoje

dou-te árvores.

 

Pedes sede

dou-te lugares.

 

Pedes mar

dou-te o meu corpo.

 

Pedes luar

dou-te páginas.

 

Pedes um panteão

dou-te os nós

que desatámos.

#1962

[Crónicas do vírus, DXXXIV]

 

Repatriamos altivez

em vez das encomendas

de fragilidade.

30.3.21

Oriental

Não se compram

os pseudónimos vilões.

Maldita estratosfera

que conspira com o vinho

e nenhum dos pseudónimos escapa.

Não se perdoam

os piratas sem bandeira.

Oxalá houvesse mar

e um sextante profissional

rodasse as marés a preceito. 

#1961

[Crónicas do vírus, DXXXIII]

 

Na vizinhança do pesadelo

gastando trunfos

até ficar gasta a manga. 

29.3.21

Vacina (contra o excesso de sapiência)

Do tumulto

em forma de lápis

sobra uma montra,

o edificado de palavras

que se sublevam

no tirocínio dos cientistas.

Não se contêm,

as vírgulas e os adjetivos,

no mote da sobre-palavrosa lápide

onde costumam ter poiso

os grandes eruditos.

 

[Instrução de leitura: 

prolongar o som da primeira sílaba

na palavra “grandes”.]

#1960

[Crónicas do vírus, DXXXII]

 

Apenas silhuetas

ou mortalhas

sem nada por dentro.

28.3.21

Extinção da espécie

Repito-me.

Não tenho mais nada

para dizer.

O ferro solto

espera pelo selo abraseado

enquanto a fogueira se excita

e o amordaçado ferve de medo

(disfarçado de brio).

Não se estilhaçam 

os verbos exauridos:

os carrosséis amadores

não se agigantam 

no avesso das dores

e as palavras repetidas

podem não ser matéria gasta.

Repito-me.

Talvez

por não ter nada mais

para dizer;

ou talvez

porque essas palavras

resumem o medo do amordaçado

antes de ser marcado

com o brasão dos estultos. 

Repito-me:

o brasão lacrado na pele

é a pior das tatuagens perenes.

#1959

[Crónicas do vírus, DXXXI]

 

O hálito descarnado transpira

na caverna onde a peste

gravou a devastação.

27.3.21

#1958

[Crónicas do vírus, DXXX]

 

Uma espada

perpendicular,

sem saber se abate

sobre as inocentes cabeças. 

26.3.21

Metáforas disfarçadas de anjos

Ao canto da mesa

escondem-se vultos

disfarçados de anjos, 

imberbes.

 

Falam.

 

Sobre eles

adejam caixas de diálogo

com as legendas do que dizem.

 

Nota-se a profusão de onomatopeias.

 

Ninguém apurou

se os querubins falavam

por interposta metáfora

ou se eram literais 

– termos em que

seriam disfarces de anjos

ou os anjos neófitos 

ganharam autorização

(superior)

para o vernáculo.

 

Falta o apuramento dos factos

sem o qual

o sono não deixa de produzir efeitos

e os demais

não são destinados ao desamparo de causa.

#1957

[Crónicas do vírus, DXXIX]

 

Exortação:

não percamos de vista

o juízo 

(na forma do siso, que nem sempre há).

Como se adolescentes 

fôssemos todos.

25.3.21

#1956

[Crónicas do vírus, DXXVIII]

 

(Variante do #1955)

 

Somos contramestres

da originalidade

quando menos dela

precisamos.

Diurese semântica

Estou zangado com as palavras

e atiro a matar

contra as claras que se acastelam

no hipotálamo da cisão.

Não sei se as rasuro,

às palavras dissidentes,

pelo topete de se agigantarem contra mim

e quererem colonizar o meu sangue.

É desigual

o terçar de armas:

as palavras nem sabem 

que com elas me zango

e não darão devida conta

do meu rasurar impenitente.

Mas essas palavras insubmissas

que torpedeiam o meu apenas estar

 

(não poderia dizer que é bem-estar)

 

colhem o lilás das bandeiras

e enfeitam as janelas com cadáveres de flores

povoando os lugares 

com pútrida

poluição.

Não viro a cara ao terçar de armas

com as palavras com que me zanguei,

por mais que elas esbarrem

fragorosamente

no conceito do meu rosto 

que parece

a carne para canhão

 

(como é na linguagem castrense).

#1955

[Crónicas do vírus, DXXVII]

 

Nos outros

um passo atrás

para dois à frente

e nós

um passo à frente

para dois atrás?

24.3.21

Papel por gastar

As recordações do futuro 

– dizias, 

mastigando os despojos de um dia

que parecia o disfarce do tempo.

A boca murmurava os hábitos

e as páginas precisavam de aval

para serem levadas a sério.

 

Não tenho um oráculo 

– dizia,

olhando para a escotilha

que vigiava o mar errático.

Os gatos apreciam a noite

e as sentinelas não se apagam

no crepúsculo kamikaze.

 

Acredito no futuro flamífero 

– dizias,

enquanto atiravas fósforos

contra as montanhas que se levantavam

perto do posto de vigia

mesmo na embocadura do nevoeiro.

 

Não sei dos fogos vindouros 

– dizia,

desde o palácio dos frutos prometidos

dando água aos poetas

que não capitulavam aos barbantes 

das almas aprisionadas por dentro de si.

#1954

[Crónicas do vírus, DXXVI]

 

No puzzle dos acasos

somos peões, 

na espera da lotaria.

23.3.21

Dos sobreiros de que se avistam (courela)

Vulgo

o carcereiro da sorte

contra o cão que mija no desdém

sob a vista atenta

do Morfeu (que estava) atrasado

deixando em pulgas

a esgrimista adónica.

 

Vulgo

a mortalha caída na linha do metro

enquanto o cego balbuciava

uma cançoneta dos National

e as colegiais ignoravam,

exiladas no casulo dos auscultadores.

 

Vulgo

o peão anónimo

em andanças contra a vida

enquanto a vida conspirava

(na maneira de ver do peão anónimo)

na borda de um pão seco

esfarelado por um velho na ilharga do lago

enquanto o farsante

bem disfarçado

(ou não fosse o farsante)

se escondia dentro da gabardina XXL.

 

Vulgo

um teatro sem agenda

corrompe o povaréu indiferente

com mulheres nuas

desmúsica popularucha

e couratos banhados em unto 

– só para ver

se a populaça comparece

 

(e para tirar as conclusões a preceito).

#1953

[Crónicas do vírus, DXXV]

 

Da desinfeção dos apóstatas,

ou o tumultuoso 

amanhecer contínuo.

22.3.21

Memória

Jurava que o contexto

era a parte do verbete

que menos interessava. 

Os dias movem-se

pelos dados atirados ao jogo

e ninguém tinha uma teoria

sobre o comportamento dos dados

(e a correspondência dos feitos).

Podia ser da marcha-atrás 

que às vezes é o penhor em falta

ou apenas 

a indizível farsa

desenhada na silhueta das palavras. 

E elas, 

as palavras,

reunidas na boca do vulcão,

acertadas no limiar do medo,

entoavam uma prece 

murmurada no estreito muro das sílabas

enquanto à volta a chuva entrava no cais

e as palavras impetravam

a luz sibilina que juntava as bocas ávidas. 

As sílabas abraçavam-se

num tentava

não vã

de compor os lados visíveis dos sonhos. 

Numa estimativa aproximada

as pessoas alinhadas no sopé do vulcão

esperavam pelo sinal das palavras

como se elas fossem 

o rastilho sem embaraço

o caudal que se oferecia ao navio

ainda em doca seca,

a contrafação dos boçais. 

Já ninguém esperava

pelos engenheiros das almas. 

O palco está cheio de partidas. 

Por cada tempestade

antecipam-se manhãs puídas

os olhos macilentos 

esconjuram as marés vivas

deixando a água a remoer-se 

no tamanho do dia. 

Não sabiam do que estavam à espera

as palavras pacientes na embocadura do vulcão

e as pessoas que as testemunhavam tão pouco,

como se as palavras 

pudessem ser ateadas pela lava

que ninguém esperava. 

O palco estava armadilhado,

alguém sussurrou. 

Logo se saberia

quando o fermento transbordasse do estuário

e a matéria-primasse se cindisse

nas estrelas avulsas que tutelam as juras. 

#1952

[Crónicas do vírus, DXXIV]

 

O efeito

mostarda de Dijon

quando as zaragatoas

forem invasoras dos narizes.

21.3.21

Areia molhada

Quando era criança

não sabia dos poetas. 

Quando 

o tempo chegou

deixei de saber

como é ser criança.

Casa

“They turn houses into homes (...)”.

Eistürzende Neubauten, “Youme & Meyou”

 

Não é apenas o cimento

os móveis que obedecem

ao manual de estilo

os cortinados

que reservam o interior

o número de assoalhadas

o crédito hipotecário

e o condomínio

a paisagem fruída à janela

o código postal

as fundações que ficaram escondidas:

é a casa com nome próprio

o mundo reservado

que não cabe 

na vaga do mundo inteiro

as paredes que respiram

as almas residentes

sob o pseudónimo de poetas

servidos à refeição. 

#1951

[Crónicas do vírus, DXXIII]

 

A ferro e fogo

o nome do insurgente

no esqueleto de um submarino.

20.3.21

#1950

[Crónicas do vírus, DXXII]

 

Um lápis vermelho

constantemente

a rasurar o futuro.