[Crónicas do vírus, DXXXVIII]
À revelia do medo
a multidão que se anuncia
ao mar.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Ou o chão pedregoso
incansável
deitando os reis ao chão
e corando as arestas
que sobram da margem contrária.
Não se obedeça aos imperativos:
a madrugada estiolada
confrange os espíritos avisados
e basta uma pergunta bem costurada
para virar o jogo do avesso.
É o colóquio que se estima
no inventário das almas que contam.
A chama não flácida
a palavra em riste
como espada que mistura
os ingredientes da iguaria esperada.
A manhã acostuma-se,
desarma os mastins que,
descarnados,
são pouco mais do que matéria inorgânica.
Lá fora,
o jardineiro confere novos limites à relva.
Ninguém falou de chapéus
ou de uma lua para além da nascente
onde se promete um rio tumultuoso.
Dar a cara
é um mito
uma extravagância
que não quadra com o sensível.
Se a cara
é o espelho visível do que somos
quem
no seu apurado juízo
a entrega gratuitamente?
Sem esquecer
que a dádiva da personalidade
é o suicídio dos direitos básicos
e será
decerto
prática banida pelos tratados internacionais.
Nem os mais generosos
os mais desprendidos
aqueles que não encontram motivos
para serem quem são
se encontram nas furnas onde,
dementes,
os cândidos dão a cara.
E mesmo que a dessem,
davam com que propósito?
Ao esófago do poema
uma endoscopia:
exige-se hermenêutica apurada
ou o leitor
ensarilha-se num logro.
Se ao menos
a poesia tivesse metalurgia
e uma formatura de equações
estivesse em equação
a matemática
com a sua exatidão irrefragável
cuidaria de colonizar a poesia.
Ainda bem
que as letras
são o povoado da diferença
lídimas notárias
da inexaustiva arte da interpretação.
[Crónicas do vírus, DXXXV]
A peste
não é uma mentira
– e dizê-lo não viola
o código do dia das mentiras.
Pedes sol
dou-te estrofes.
Pedes verbos
dou-te a planície.
Pedes hoje
dou-te árvores.
Pedes sede
dou-te lugares.
Pedes mar
dou-te o meu corpo.
Pedes luar
dou-te páginas.
Pedes um panteão
dou-te os nós
que desatámos.
Não se compram
os pseudónimos vilões.
Maldita estratosfera
que conspira com o vinho
e nenhum dos pseudónimos escapa.
Não se perdoam
os piratas sem bandeira.
Oxalá houvesse mar
e um sextante profissional
rodasse as marés a preceito.
[Crónicas do vírus, DXXXIII]
Na vizinhança do pesadelo
gastando trunfos
até ficar gasta a manga.
Do tumulto
em forma de lápis
sobra uma montra,
o edificado de palavras
que se sublevam
no tirocínio dos cientistas.
Não se contêm,
as vírgulas e os adjetivos,
no mote da sobre-palavrosa lápide
onde costumam ter poiso
os grandes eruditos.
[Instrução de leitura:
prolongar o som da primeira sílaba
na palavra “grandes”.]
Repito-me.
Não tenho mais nada
para dizer.
O ferro solto
espera pelo selo abraseado
enquanto a fogueira se excita
e o amordaçado ferve de medo
(disfarçado de brio).
Não se estilhaçam
os verbos exauridos:
os carrosséis amadores
não se agigantam
no avesso das dores
e as palavras repetidas
podem não ser matéria gasta.
Repito-me.
Talvez
por não ter nada mais
para dizer;
ou talvez
porque essas palavras
resumem o medo do amordaçado
antes de ser marcado
com o brasão dos estultos.
Repito-me:
o brasão lacrado na pele
é a pior das tatuagens perenes.
[Crónicas do vírus, DXXXI]
O hálito descarnado transpira
na caverna onde a peste
gravou a devastação.
[Crónicas do vírus, DXXX]
Uma espada
perpendicular,
sem saber se abate
sobre as inocentes cabeças.
Ao canto da mesa
escondem-se vultos
disfarçados de anjos,
imberbes.
Falam.
Sobre eles
adejam caixas de diálogo
com as legendas do que dizem.
Nota-se a profusão de onomatopeias.
Ninguém apurou
se os querubins falavam
por interposta metáfora
ou se eram literais
– termos em que
seriam disfarces de anjos
ou os anjos neófitos
ganharam autorização
(superior)
para o vernáculo.
Falta o apuramento dos factos
sem o qual
o sono não deixa de produzir efeitos
e os demais
não são destinados ao desamparo de causa.
[Crónicas do vírus, DXXIX]
Exortação:
não percamos de vista
o juízo
(na forma do siso, que nem sempre há).
Como se adolescentes
fôssemos todos.
[Crónicas do vírus, DXXVIII]
(Variante do #1955)
Somos contramestres
da originalidade
quando menos dela
precisamos.
Estou zangado com as palavras
e atiro a matar
contra as claras que se acastelam
no hipotálamo da cisão.
Não sei se as rasuro,
às palavras dissidentes,
pelo topete de se agigantarem contra mim
e quererem colonizar o meu sangue.
É desigual
o terçar de armas:
as palavras nem sabem
que com elas me zango
e não darão devida conta
do meu rasurar impenitente.
Mas essas palavras insubmissas
que torpedeiam o meu apenas estar
(não poderia dizer que é bem-estar)
colhem o lilás das bandeiras
e enfeitam as janelas com cadáveres de flores
povoando os lugares
com pútrida
poluição.
Não viro a cara ao terçar de armas
com as palavras com que me zanguei,
por mais que elas esbarrem
fragorosamente
no conceito do meu rosto
que parece
a carne para canhão
(como é na linguagem castrense).
[Crónicas do vírus, DXXVII]
Nos outros
um passo atrás
para dois à frente
e nós
um passo à frente
para dois atrás?
As recordações do futuro
– dizias,
mastigando os despojos de um dia
que parecia o disfarce do tempo.
A boca murmurava os hábitos
e as páginas precisavam de aval
para serem levadas a sério.
Não tenho um oráculo
– dizia,
olhando para a escotilha
que vigiava o mar errático.
Os gatos apreciam a noite
e as sentinelas não se apagam
no crepúsculo kamikaze.
Acredito no futuro flamífero
– dizias,
enquanto atiravas fósforos
contra as montanhas que se levantavam
perto do posto de vigia
mesmo na embocadura do nevoeiro.
Não sei dos fogos vindouros
– dizia,
desde o palácio dos frutos prometidos
dando água aos poetas
que não capitulavam aos barbantes
das almas aprisionadas por dentro de si.
Vulgo
o carcereiro da sorte
contra o cão que mija no desdém
sob a vista atenta
do Morfeu (que estava) atrasado
deixando em pulgas
a esgrimista adónica.
Vulgo
a mortalha caída na linha do metro
enquanto o cego balbuciava
uma cançoneta dos National
e as colegiais ignoravam,
exiladas no casulo dos auscultadores.
Vulgo
o peão anónimo
em andanças contra a vida
enquanto a vida conspirava
(na maneira de ver do peão anónimo)
na borda de um pão seco
esfarelado por um velho na ilharga do lago
enquanto o farsante
bem disfarçado
(ou não fosse o farsante)
se escondia dentro da gabardina XXL.
Vulgo
um teatro sem agenda
corrompe o povaréu indiferente
com mulheres nuas
desmúsica popularucha
e couratos banhados em unto
– só para ver
se a populaça comparece
(e para tirar as conclusões a preceito).
Jurava que o contexto
era a parte do verbete
que menos interessava.
Os dias movem-se
pelos dados atirados ao jogo
e ninguém tinha uma teoria
sobre o comportamento dos dados
(e a correspondência dos feitos).
Podia ser da marcha-atrás
que às vezes é o penhor em falta
ou apenas
a indizível farsa
desenhada na silhueta das palavras.
E elas,
as palavras,
reunidas na boca do vulcão,
acertadas no limiar do medo,
entoavam uma prece
murmurada no estreito muro das sílabas
enquanto à volta a chuva entrava no cais
e as palavras impetravam
a luz sibilina que juntava as bocas ávidas.
As sílabas abraçavam-se
num tentava
não vã
de compor os lados visíveis dos sonhos.
Numa estimativa aproximada
as pessoas alinhadas no sopé do vulcão
esperavam pelo sinal das palavras
como se elas fossem
o rastilho sem embaraço
o caudal que se oferecia ao navio
ainda em doca seca,
a contrafação dos boçais.
Já ninguém esperava
pelos engenheiros das almas.
O palco está cheio de partidas.
Por cada tempestade
antecipam-se manhãs puídas
os olhos macilentos
esconjuram as marés vivas
deixando a água a remoer-se
no tamanho do dia.
Não sabiam do que estavam à espera
as palavras pacientes na embocadura do vulcão
e as pessoas que as testemunhavam tão pouco,
como se as palavras
pudessem ser ateadas pela lava
que ninguém esperava.
O palco estava armadilhado,
alguém sussurrou.
Logo se saberia
quando o fermento transbordasse do estuário
e a matéria-primasse se cindisse
nas estrelas avulsas que tutelam as juras.
[Crónicas do vírus, DXXIV]
O efeito
mostarda de Dijon
quando as zaragatoas
forem invasoras dos narizes.
Quando era criança
não sabia dos poetas.
Quando
o tempo chegou
deixei de saber
como é ser criança.
“They turn houses into homes (...)”.
Eistürzende Neubauten, “Youme & Meyou”
Não é apenas o cimento
os móveis que obedecem
ao manual de estilo
os cortinados
que reservam o interior
o número de assoalhadas
o crédito hipotecário
e o condomínio
a paisagem fruída à janela
o código postal
as fundações que ficaram escondidas:
é a casa com nome próprio
o mundo reservado
que não cabe
na vaga do mundo inteiro
as paredes que respiram
as almas residentes
sob o pseudónimo de poetas
servidos à refeição.