8.4.21

Livre da luta

Luta. 

Luta livre. 

Luta,

livre dos calos 

da luta. 

Luta livre,

no livreto desfolhado

da ausência de armas. 

Livre

sem a luta como nome

no lisérgico desempoeirar

à luz mediana. 

Uma livre luta. 

Livre da luta. 

Livre.

#1971

[Crónicas do vírus, DXLIII]

 

A moldura do medo

evaporada

nos dedos da inquietação.

7.4.21

Kizomba beligerante

A espada canta

os silêncios trespassados

no cofre onde se confere 

o dilúvio.

A espada não é certa,

no mosto avinagrado

onde se desfazem as palavras.

A espada

não fala.

Falam por ela

os guerreiros,

de alma em riste

empenhados à loucura.

Muitos sabem ser da espada

a palavra final.

#1970

[Crónicas do vírus, DXLII]

 

Liberdade condicional,

o tanto quanto

desejamos.

6.4.21

O rastilho não conta

O chão caiado

com as flores moribundas

da buganvília

 

(não é um ladrilho da decadência

nem a agonia

cuspida da boca de um vulcão)

 

é o mosaico da imortalidade

o tapete púrpura

que recebe o corpo marmoreado

a invetiva contra a defunção.

 

(Ou a sepultura

a que apetece doar 

o corpo desarmado.)

#1969

[Crónicas do vírus, DXLI]

 

Excessos de vontade

esbarram

na fraqueza da memória.

(Ou no esquecimento do tirocínio?) 

#1968

[Crónicas do vírus, DXL]

 

Em força para as esplanadas

como os néscios 

vão ao mar sem saberem nadar.

5.4.21

Desacerto

Quantos decibéis

tem a manhã

que fala em meu nome?

Todos 

os que se amontoam

na véspera das juras

enquanto o tempo avivado

não se cumpre.

Quantos arco-íris 

são precisos para a tela 

onde tem estampagem

o rosto sem disfarce?

Todos 

os que reúnem

as cores que as divindades orquestraram

mais as que junto ao inventário

enquanto as bocas ciciam

os segredos sem nome por perto.

#1967

[Crónicas do vírus, DXXXIX]

 

Filhos da impaciência,

endossamos a espera

para os juros de mora 

do tempo sem garantia.

4.4.21

As luzes que efervescem

Efervescem as luzes

devolvendo os porquês

que nas trevas tinham cessado.

Sem saber da simetria dos cabos

uma enseada clara apurou o sortilégio

e erradicou o inverosímil adeus.

As luzes

na sua maturidade

acusam os vultos pela insónia rebelde

e não se atemorizam com represálias.

As luzes

que efervescem

são as mesmas que irradiam 

das almas que não se rendem.

#1966

[Crónicas do vírus, DXXXVIII]

 

À revelia do medo

a multidão que se anuncia 

ao mar.

3.4.21

Do avesso da noite

Ou o chão pedregoso

incansável

deitando os reis ao chão

e corando as arestas 

que sobram da margem contrária. 

Não se obedeça aos imperativos:

a madrugada estiolada 

confrange os espíritos avisados

e basta uma pergunta bem costurada

para virar o jogo do avesso. 

 

É o colóquio que se estima

no inventário das almas que contam. 

 

A chama não flácida

a palavra em riste

como espada que mistura 

os ingredientes da iguaria esperada. 

A manhã acostuma-se,

desarma os mastins que,

descarnados,

são pouco mais do que matéria inorgânica. 

 

Lá fora,

o jardineiro confere novos limites à relva. 

 

Ninguém falou de chapéus

ou de uma lua para além da nascente

onde se promete um rio tumultuoso.

#1965

[Crónicas do vírus, DXXXVII]

 

Nunca foi

tão diferente

os corpos

tão proibidos.

2.4.21

Dos cândidos

Dar a cara

é um mito

uma extravagância

que não quadra com o sensível.

Se a cara 

é o espelho visível do que somos

quem

no seu apurado juízo

a entrega gratuitamente?

Sem esquecer

que a dádiva da personalidade

é o suicídio dos direitos básicos

e será

decerto

prática banida pelos tratados internacionais.

Nem os mais generosos

os mais desprendidos

aqueles que não encontram motivos

para serem quem são

se encontram nas furnas onde,

dementes,

os cândidos dão a cara.

E mesmo que a dessem,

davam com que propósito?

#1964

[Crónicas do vírus, DXXXVI]

 

Juram

que a aurora

irá depor

sobre o nosso resgate.

1.4.21

Endoscopia do poema

Ao esófago do poema

uma endoscopia:

exige-se hermenêutica apurada

ou o leitor 

ensarilha-se num logro.

Se ao menos

a poesia tivesse metalurgia

e uma formatura de equações

estivesse em equação

a matemática

com a sua exatidão irrefragável

cuidaria de colonizar a poesia.

Ainda bem

que as letras

são o povoado da diferença

lídimas notárias

da inexaustiva arte da interpretação. 

#1963

[Crónicas do vírus, DXXXV]

 

A peste

não é uma mentira 

– e dizê-lo não viola

o código do dia das mentiras.

31.3.21

Biografia

Pedes sol

dou-te estrofes.

 

Pedes verbos

dou-te a planície.

 

Pedes hoje

dou-te árvores.

 

Pedes sede

dou-te lugares.

 

Pedes mar

dou-te o meu corpo.

 

Pedes luar

dou-te páginas.

 

Pedes um panteão

dou-te os nós

que desatámos.

#1962

[Crónicas do vírus, DXXXIV]

 

Repatriamos altivez

em vez das encomendas

de fragilidade.

30.3.21

Oriental

Não se compram

os pseudónimos vilões.

Maldita estratosfera

que conspira com o vinho

e nenhum dos pseudónimos escapa.

Não se perdoam

os piratas sem bandeira.

Oxalá houvesse mar

e um sextante profissional

rodasse as marés a preceito. 

#1961

[Crónicas do vírus, DXXXIII]

 

Na vizinhança do pesadelo

gastando trunfos

até ficar gasta a manga. 

29.3.21

Vacina (contra o excesso de sapiência)

Do tumulto

em forma de lápis

sobra uma montra,

o edificado de palavras

que se sublevam

no tirocínio dos cientistas.

Não se contêm,

as vírgulas e os adjetivos,

no mote da sobre-palavrosa lápide

onde costumam ter poiso

os grandes eruditos.

 

[Instrução de leitura: 

prolongar o som da primeira sílaba

na palavra “grandes”.]

#1960

[Crónicas do vírus, DXXXII]

 

Apenas silhuetas

ou mortalhas

sem nada por dentro.

28.3.21

Extinção da espécie

Repito-me.

Não tenho mais nada

para dizer.

O ferro solto

espera pelo selo abraseado

enquanto a fogueira se excita

e o amordaçado ferve de medo

(disfarçado de brio).

Não se estilhaçam 

os verbos exauridos:

os carrosséis amadores

não se agigantam 

no avesso das dores

e as palavras repetidas

podem não ser matéria gasta.

Repito-me.

Talvez

por não ter nada mais

para dizer;

ou talvez

porque essas palavras

resumem o medo do amordaçado

antes de ser marcado

com o brasão dos estultos. 

Repito-me:

o brasão lacrado na pele

é a pior das tatuagens perenes.

#1959

[Crónicas do vírus, DXXXI]

 

O hálito descarnado transpira

na caverna onde a peste

gravou a devastação.

27.3.21

#1958

[Crónicas do vírus, DXXX]

 

Uma espada

perpendicular,

sem saber se abate

sobre as inocentes cabeças. 

26.3.21

Metáforas disfarçadas de anjos

Ao canto da mesa

escondem-se vultos

disfarçados de anjos, 

imberbes.

 

Falam.

 

Sobre eles

adejam caixas de diálogo

com as legendas do que dizem.

 

Nota-se a profusão de onomatopeias.

 

Ninguém apurou

se os querubins falavam

por interposta metáfora

ou se eram literais 

– termos em que

seriam disfarces de anjos

ou os anjos neófitos 

ganharam autorização

(superior)

para o vernáculo.

 

Falta o apuramento dos factos

sem o qual

o sono não deixa de produzir efeitos

e os demais

não são destinados ao desamparo de causa.

#1957

[Crónicas do vírus, DXXIX]

 

Exortação:

não percamos de vista

o juízo 

(na forma do siso, que nem sempre há).

Como se adolescentes 

fôssemos todos.

25.3.21

#1956

[Crónicas do vírus, DXXVIII]

 

(Variante do #1955)

 

Somos contramestres

da originalidade

quando menos dela

precisamos.

Diurese semântica

Estou zangado com as palavras

e atiro a matar

contra as claras que se acastelam

no hipotálamo da cisão.

Não sei se as rasuro,

às palavras dissidentes,

pelo topete de se agigantarem contra mim

e quererem colonizar o meu sangue.

É desigual

o terçar de armas:

as palavras nem sabem 

que com elas me zango

e não darão devida conta

do meu rasurar impenitente.

Mas essas palavras insubmissas

que torpedeiam o meu apenas estar

 

(não poderia dizer que é bem-estar)

 

colhem o lilás das bandeiras

e enfeitam as janelas com cadáveres de flores

povoando os lugares 

com pútrida

poluição.

Não viro a cara ao terçar de armas

com as palavras com que me zanguei,

por mais que elas esbarrem

fragorosamente

no conceito do meu rosto 

que parece

a carne para canhão

 

(como é na linguagem castrense).